As mulheres têm o privilégio de possuir o único órgão humano com a exclusiva função de proporcionar prazer. “O pênis serve também para a emissão de urina e a procriação. Mas o clitóris existe somente para o prazer, o que o torna muito interessante”, diz a ginecologista Reyes López. Interessante também porque oferece um gozo supremo: “Acho fascinante que suas terminações nervosas por milímetro quadrado sejam muitíssimo mais numerosas que as da glande do pênis”, diz López. Mais precisamente o dobro: 8.000. Um emaranhado elétrico extremamente denso, pronto para ser ligado até atingir o orgasmo.
Tão precioso recanto do corpo foi esquecido, repudiado, menosprezado e, ainda hoje, mutilado. Todo um símbolo da história feminina. Quem resume isso é a mulher que provavelmente mais se aprofundou na história e na anatomia do clitóris, a urologista australiana Helen O’Connell, que em 1998 o revelou sob a luz da ciência: “Negamos completamente seu significado como órgão, o extirpamos deliberadamente”, diz com veemência do seu consultório em Melbourne, por videoconferência. “A sexualidade feminina esteve encerrada na vergonha e na ignorância desde o começo dos tempos. Portanto, não é surpreendente que não se conheça sua anatomia. É nossa herança cultural”, insiste.
“NÓS O NEGAMOS COMO ÓRGÃO, O EXTIRPAMOS DELIBERADAMENTE”, DIZ A CIRURGIÃ QUE O DESCREVEU
A sexóloga Laura Morán, autora de Orgas(mitos), afirma que a maioria das mulheres, 70%, não a conhece realmente. “Só a pontinha”, diz, “e às vezes não têm certeza”. Quando sua colega Francisca Molero, também ginecologista, começou a exercer a medicina, quase 40 anos atrás, a maioria das pacientes no seu consultório não tinha orgasmos. “Gostavam, mas não se tocavam, e os outros não sabiam onde tocar.” A hoje presidenta da Federação Espanhola de Sociedades de Sexologia constata que o gozo feminino, em contraposição ao masculino, continua muito mais cercado de dúvidas. É evitado até como parte dos xingamentos, como destaca a professora britânica Kate Lister em Curious History of Sex. “Ignorar o prazer clitoridiano”, diz, “é algo entremeado à linguagem sexual genuína”.
Mergulhar na elusiva biografia sobre o clitóris pode prejudicar a libido. Quinhentos anos antes de Cristo, o poeta Hipônax de Éfeso o batizou com o nome do bago violáceo do mirto. É a primeira menção encontrada pela pesquisadora e engenheira francesa Odile Fillod, que criou em 2016 um modelo em 3D do clitóris que pode ser baixado e impresso a partir do seu site. Ela conta que Sorano de Éfeso, grande ginecologista da Antiguidade, assim o descreveu no século II: “Esta pequena formação carnosa se dissimula sob os lábios como as noivas se ocultam sob o véu”. Por isso, a chamou de “ninfa”. Seu contemporâneo Galeno julgava que sua função era ajudar a manter o útero aquecido. Sorano causa calafrios quando detalha como fazer uma ablação no caso de encontrar uma “ninfa masculinizada”, maior, à qual se atribuía quase até nossos dias ser causa de lesbianismo e de apetite sexual desmesurado. Medicamente, a hipertrofia do clitóris é uma doença rara, mas as abundantes alusões nos textos históricos denotam uma obsessão cultural. “Dado o fascínio por fatiar os ‘clitóris ofensivos’, talvez não seja estranho que o pobre órgão tenha tratado de se esconder ao longo da história”, escreve Lister. No século XVI, três anatomistas italianos, Eustachi, Colombo e Falópio, publicam as primeiras descrições de sua parte oculta. Georg Ludwig Kobelt o desenhou profusamente no século XIX, mas sem considerar todas as suas partes como um só órgão.
O clitóris, órgão oculto. Oculto também e proibido em países da África onde é mutilado, mutilando também as mulheres em sua sexualidade.
CARMEN CALVO (Valência, 1950), Prêmio Nacional de Artes Plásticas
Sigmund Freud proclamou em 1905 que o prazer clitoridiano era próprio de uma sexualidade imatura, e que com a evolução psíquica das jovens se transformava em vaginal. Uma mensagem que se espalhou nas décadas posteriores entre os terapeutas psicanalíticos. O famoso biólogo Alfred Kinsey, na década de 1950, já assinala que a principal via de prazer feminino é a estimulação do clitóris, algo referendado posteriormente por Masters e Johnson, o casal que descreveu as fases da resposta sexual humana.
Quem veio ligar os pontos foi O’Connell, a primeira urologista mulher da Austrália, enervada com a ausência do órgão no livro com qual preparava seu exame de cirurgia. “Isso me deu uma pista de que poderia existir um problema maior, e comprovei que efetivamente havia”, conta de Melbourne, onde é chefa de Cirurgia e Urologia de um hospital público do Estado de Vitória. “Muitos tratados modernos tinham erros manifestos ou carências”. Portanto, os médicos cresceram vendo nos atlas de anatomia o clitóris ser reduzido à glande, junto a páginas e páginas com pênis dissecados em todas as camadas e ângulos possíveis. Alguns aspirantes nem o estudaram, porque não aparecia. Por exemplo, o legendário tratado Anatomia de Gray (cujo nome inspira o da conhecida série sobre médicos), com o qual estudantes de Medicina continuam sendo instruídos, o fez desaparecer em sua edição de 1947. O clitóris protagonizou a tese de doutorado de O’Connell e grande parte de sua carreira. No artigo publicado em 1998 no The Journal of Urology, inclui no órgão o tecido erétil que envolve a uretra e a vagina (os bulbos cavernosos), e descreve a riquíssima inervação e vascularização do órgão, fundamental para preservar sua integridade ao praticar cirurgias. O estudo sugere que o famoso e prazeroso ponto G é na verdade o tecido do clitóris, anexo à uretra e à vagina.
“Não é surpreendente que não se conheça a anatomia do clitóris. É nossa herança cultural”
Entrevista (em espanhol) com a urologista australiana Helen O’Connell, que em 1998 descreveu a estrutura completa do órgão
A urologista australiana continua pesquisando. Também Pierre Foldes, cirurgião francês que inventou a técnica para devolver o prazer a quem o perdeu. Esses 200 milhões de mulheres de 30 países, a maioria africanos, que cresceram sem clitóris, inclusive com as genitálias costuradas. Mutiladas em sua infância, arrastando dor, incontinência, infecções. Às vezes, fadadas a morrer em nome da pureza.
CRISTINA DAURA (Barcelona, 1988), coautora de ‘Herstory: uma história das mulheres’
São 19h numa loja erótica no centro de Madri. Quatro mulheres estamos sentadas ao redor de uma mesa. Há um prato com bolachas de gengibre cuidadosamente colocadas e uma jarra de chá gelado. Um jovem sexólogo dá as boas vindas à oficina de orgasmo. Pede-nos que nos apresentemos e que contemos por que estamos aqui. A participante à sua esquerda, de meia-idade, explica que pesquisa sobre sexo energético (tântrico) e que seu interesse é sobretudo profissional. Sobramos três.
Fala com certo acanhamento uma mulher magra. Óculos dourados sobre olhos grandes, que arregala muito ao falar. Miúda e com o cabelo ondulado, veste jeans largo e casaco escuro. Poderia ser professora? Parece beirar os 50 e tem ar jovial:
– Quando me masturbo chego ao orgasmo sempre. Mas com meu parceiro me custa. Não desconecto.
Algo vai mal quando praticamente todos os homens heterossexuais conseguem o clímax acompanhados (95%), e as mulheres com a mesma orientação não (65%), segundo um estudo com 52.000 norte-americanos publicado nos Archives of Sexual Behaviour em 2018. Por outro lado, o percentual sobe entre as lésbicas (86%). As heterossexuais mais propensas a chegarem ao orgasmo são as que recebem mais sexo oral, estão satisfeitas com seus relacionamentos e desfrutam de encontros mais longos. A disparidade orgásmica é mais uma entre todas as disparidades de gênero. “Se ela existe até nos sintomas do enfarte, imagine no prazer sexual feminino, que está mal visto, não existe e não faz falta”, exclama Nerea Pérez de las Heras, autora de Feminismo para Torpes (“feminismo para atrapalhados”). “Há muitas jovens e jovens adultas que me consultam porque chegam ao orgasmo perfeitamente quando se tocam, quando se estimulam sozinhas, e com o parceiro lhes custa muito”, diz Molero. “Então começam a encanar com isso. Vivem isso como um problema, por isso é preciso tratá-las”.
Voltemos, pois, ao clitóris. A sexóloga Laura Morán afirma que o coito não é a melhor técnica para conseguir o clímax. “É como se você tiver uma coceira no braço e se coçar por cima do pulôver ou do casaco. É mais gostoso se você tocar a pele”. E isso é sabido, diz, desde o Relatório Hite. Esse best-seller publicado nos anos setenta pela sexóloga feminista norte-americana Shere Hite, com base em questionários com 3.000 mulheres, consagrava o orgasmo por estimulação do clitóris. Só 1,6% das mulheres chegavam ao clímax exclusivamente através da penetração. “Durante séculos, o prazer feminino não existiu”, continua Morán, “depois foi incluído na equação, sempre através do coito e sempre com o mesmo homem, que tem que ser o homem a quem se ama”. E essa sexualidade que segue a lógica de inserir uma chave na fechadura “implica não praticar um sexo que nos agrade”.
Fonte: El pais
Créditos: El pais