Com mais de quatro décadas de trabalho dedicados à filosofia e ao ensino, Roberto Romano, 72, está acostumado a reações adversas de seus leitores. Nunca havia, no entanto, tido retornos tão violentos como os que passou a receber quando começou a se manifestar sobre a campanha eleitoral deste ano.
O filósofo diz que recebeu ameaças via email após dar uma entrevista ao UOL, em setembro, comentando a facada sofrida pelo então candidato Jair Bolsonaro (PSL), eleito neste domingo (28) presidente do Brasil.
Para ele, os humores exaltados e o clima de hostilidade durante o período eleitoral “brotam do solo que é a sociedade brasileira”, extremamente violenta. Romano afirma que as explicações partidárias para a escalada da violência são simplórias, e ignoram essa realidade.
“Se nós mergulharmos na história da nossa sociedade, veremos que a violência aparece muito frequentemente nesta forma de conflito extremado de posições políticas”, diz o filósofo. “Você tem essa prática que nega totalmente a tese que o brasileiro é um povo pacífico. Muito pelo contrário. Essa ideia é muito mais uma propaganda para tentar esconder a realidade que é extremamente violenta.”
UOL – Como o senhor vê agora o atentado sofrido por Bolsonaro, após transcorrida a campanha?
Roberto Romano – Eu acho que foi um episódio que revela muito mais a violência que impera na sociedade brasileira. E teve um desfecho que ajudou, de certo modo, o candidato Bolsonaro a conquistar mais votos. É um ponto importante, da capacidade que têm os políticos em transformar o sentido de um ato de alguma coisa profundamente complicada em um elemento positivo de propagação de uma candidatura.
Qual é o mecanismo que permitiu que esse episódio fosse transformado dessa forma?
Essa primeira entrevista que dei ao UOL me trouxe muitos aborrecimentos, inclusive ameaças por email e tudo o mais. Fui ameaçado de morte por email por causa de minha resposta. Vou lhe dar uma resposta e eu peço por gentileza que anote palavra por palavra.
Um dos sentimentos mais importantes do ser humano é justamente o mimetismo. A capacidade de indicação e de partilhar afetos. Quando você tem uma liderança social, política e religiosa, que recebe uma ameaça ou um ataque físico, como foi o caso, é evidente que boa parte das pessoas tendem a se solidarizar com ela. Não por motivos de ordem racional, científica, mais por motivos de base afetiva.
O mimetismo é um dos elementos mais importantes da ação humana. Se você vir que alguém foi atacado, você tende a se solidarizar com ele, tende a simpatizar com ele. Se aquela pessoa move o sentimento de indignação contra quem fez esse ato e atribui esse ato à parte contrária, é evidente que isso é um mecanismo importantíssimo no jogo das paixões. Quando alguém, em um processo eleitoral como esse que nós vivemos, sofre um ataque dessa magnitude, é evidente que isso mexe com os afetos e com a estrutura psicológica das pessoas. Esse é um fato conhecido em termos de psicologia de massa.
O senhor já tinha tido esse tipo de reação violenta a declarações que fez ou ao seu trabalho?
Olha, ao longo de 30, quase 40 anos de colaboração com a imprensa, para mim, já era normal receber críticas e ameaças e tal. Mas nunca como dessa vez.
O que o senhor acha que levou à escalada da violência nessa campanha em particular?
É muito complexo. Você não tem apenas um elemento. Normalmente, as explicações puramente partidárias tendem a reduzir a explicação a uma causa.
Se você for antipetista, a causa foi o PT ter procurado a hegemonia absoluta no Estado e na sociedade e ter instaurado a política do nós contra eles. Essa é uma causa única e muito simples, eu diria até mesmo simplória.
Por outro lado, você tem aqueles que dizem que a culpa toda está na direita. Que a direita, insatisfeita com a situação econômica, com a situação política, com a corrupção, a insegurança que vem da ineficácia das políticas brasileiras, está gerando esse clima de confronto. Acho que também é uma explicação muito pobre para explicar o que ocorre no Brasil.
Se nós descermos um pouco mais ao fundo, veremos que esses fatos de radicalização etc. sempre existiram no país. Você sempre teve desde o século 18, do século 19 e, sobretudo, do século 20, que levou a dois regimes autoritários, essa separação de lados. Essas posições extremadas brotam de um solo que é a sociedade brasileira, que é extremamente violenta.
O senhor diria então que essa violência sempre existiu, só não estava evidente?
Ela sempre existiu e sempre veio à tona em momento de crise econômica e política. É como a questão da corrupção. Gradativamente, você vê que muitos políticos que surgem para combater a corrupção são tragados pela corrupção do Estado.
Se você pegar a história do Brasil desde 1930, você vê que os tenentes apareceram para combater a corrupção da República Velha, que eles consideravam insuportável. Não conseguiram esse intento. A instauração do Estado Novo iria supostamente corrigir todos os erros de corrupção da política brasileira. Deu no que deu, uma ditadura extremamente dura.
Você teve Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello, Luiz Inácio Lula da Silva, sempre, no começo de seus governos, prometendo que iriam acabar com a corrupção. E, no entanto, ou foram defenestrados, como no caso de Jânio Quadros, ou terminaram acusados e mesmo condenados em processos de corrupção.
Muitos eleitores de Bolsonaro dizem não concordar com o que ele diz, mas ainda assim votaram nele. O que justifica essa decisão?
A máquina do estado brasileiro, no plano das políticas públicas, sempre foi ineficaz e agora caminha para a falência. As massas urbanas não sabem para quem recorrer no sentido de conseguir recursos para a vida pública. Sobretudo, na questão da segurança. É claro que quem diz que vai resolver o problema da segurança pública, seja qual for o remédio que esteja propondo, vai ter adesão dessas massas. Não quer dizer que seja a melhor política ou a política mais adequada, mas é uma política que retoricamente consegue captar a adesão das pessoas.
O senhor falou das massas desassistidas, mas o melhor desempenho do Bolsonaro é na parcela mais rica da população. Por que essa camada não se comove pelas declarações controversas dele?
Tem a ver com aquilo que nós começamos a nossa conversa, a questão do mimetismo e da simpatia. É muito mais difícil você se comover com um tsunami nas Filipinas do que com um tiroteio no quarteirão ao lado da sua casa. É humano. Toca a extensão, a capacidade de captação de fatos que os humanos têm. Quanto mais próximo do seu corpo, maior a sua percepção e simpatia pelo corpo alheio.
Você aposta naquele candidato que supostamente não vai mexer com sua família. Não vai ter uma polícia truculenta com sua família, vai ser sempre a família alheia que será atingida. Se ocorre um excesso da polícia, você imagina que não vai ser com você.
Isso é uma coisa que aconteceu no regime Vargas e aconteceu no regime de 1964. As pessoas pensavam que a tortura, por exemplo, só aconteceria com as famílias de esquerda. Pouco a pouco, a tortura foi se generalizando e atingiu cada vez mais pessoas que estavam no centro político, famílias que tinham posição liberal. A imprensa imaginava que só a imprensa de esquerda seria censurada, e aí os grandes jornais conservadores também começaram a ser.
O senhor acha que a violência vai atingir setores da sociedade que não estão esperando por ela?
Na ditadura militar no Brasil, se dizia que o perigo era o guarda da esquina. Talvez o presidente da República não faça uso de perseguição, arbítrio e violência, mas quantos guardas da esquina você tem no Brasil? Esse é o ponto que as pessoas esquecem. A censura, a violência, são fatos que todo mundo conhece, mas ninguém espera que ocorra consigo mesmo. Às vezes, as pessoas não tomam consciência do fato, mas o fato se revela inesperadamente e você é surpreendido de forma negativa.
Bolsonaro deve formar um governo cercado por militares. O que essa volta de militares ao poder, pelo voto, significa?
Acho que é preciso, como tudo na vida, encontrar matizes. Tem várias correntes dentro das Forças Armadas e várias formações, inclusive do ponto de vista de consciência jurídica e constitucional. Você tem os velhos aposentados, generais aposentados, coronéis aposentados, que viveram o período de 1964 e querem, através dessa possibilidade do Bolsonaro, retomar o que era aquele regime.
Outro setor, mais jovem, que ascendeu ao generalato, ascendeu à oficialidade depois do final do período autoritário, tem visão mais ligada ao profissionalismo das Forças Armadas e tem a plena convicção de que o Exército, a Aeronáutica e a Marinha são instituições do estado brasileiro, e não de um partido ou de uma tendência ideológica. O que nós temos que saber é o que vai prevalecer.
Agora, me parece que têm surgido manifestações dos generais que estão no comando das Forças Armadas e que têm uma visão mais institucional e mais constitucional do poder de estado. Então, precisamos saber como cada setor vai se manifestar e como vai agir, e isso não temos dados ainda, porque vai depender da ação concreta deles depois da posse do presidente.
Qual é o seu balanço final dessas eleições?
Acho que não há balanço final. Acho que a politica e a vida social são sempre um processo. O que você pode fazer é um levantamento básico, para saber se caminhamos para o melhor ou para o pior. Por enquanto, todos os indícios mostram que, em vez de nos mostrarmos tolerantes, abertos à democracia, respeitosos às leis, nós nos tornamos evidentemente intolerantes, violentos e desrespeitosos da lei.
Fonte: Uol
Créditos: Uol