Com o mercado caro e quatro filhos para alimentar, a saída de Jucélia da Silva, de 37 anos, tem sido garantir o básico na mesa de casa: arroz, feijão e mistura. Feira aos finais de semana nem pensar, conta a dona de casa. A cada 15 dias, porém, ela consegue incluir os hortifrutis no cardápio da família, graças a um programa da prefeitura de Santo André, na grande São Paulo, que troca material reciclável por fruta e verdura: o Moeda Verde.
Na iniciativa da gestão municipal, itens como papelão, latinha e plástico viram batata, alface e cenoura. O programa foi “importado”, pela cidade paulista, de Curitiba (PR), onde existe desde 1991, para que Santo André possa cumprir metas da chamada Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), que prevê uma série de ações em 17 áreas para acabar com a pobreza extrema e proteger o meio ambiente.
Depois do ABC Paulista, outras seis cidades procuraram Santo André para conhecer a implantação do projeto, duas delas fora do Estado de São Paulo. Ao Estadão, o prefeito Paulo Serra (PSDB) disse que a troca de experiências entre municípios tem sido a solução encontrada diante da falta de coordenação e clareza nos planos de metas ambientais do governo federal.
“Há organismos que ajudam nesse intercâmbio, como a Frente Nacional dos Prefeitos, entre outras entidades, que acabam até certo ponto substituindo uma coordenação macro que poderia ocorrer caso houvesse uma mudança no Pacto Federativo”, disse Serra, que conseguiu aumentar em 151% a quantidade de material reciclável na cidade desde que implantou o programa, há quatro anos, ainda no seu primeiro mandato. “É uma cadeia de sustentabilidade que se fecha.”
O município de Amparo, no interior de São Paulo, seguiu o exemplo e também adotou o programa. Nos primeiros 40 dias, a cidade arrecadou 14 toneladas de recicláveis e distribuiu mais de 6 toneladas de alimentos, segundo o administrador Hilário Piffer Junior, responsável por importar o projeto para o município e coordená-lo até 2020. “Fui buscar exemplos de sucesso para mostrar que era fácil minimizar o custo do lixo e ao mesmo tempo atender às necessidades da população carente”, contou ao Estadão.
Além da troca de material reciclável por hortifrútis, outros programas que se enquadram nas metas da ONU têm sido compartilhados entre cidades. Um deles é o IPTU Verde, iniciativa da Prefeitura de Salvador, de 2013, que prevê descontos para empreendimentos que realizarem ações e práticas de sustentabilidade em suas construções. O mesmo sistema foi adotado em Belo Horizonte a partir da interlocução entre gestores das duas cidades. “É fundamental esse aprendizado mútuo. Ele proporciona atalhos”, disse o ex-secretário de Sustentabilidade de Salvador André Fraga.
No Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades, ferramenta do Instituto Cidades Sustentáveis que monitora o cumprimento das metas da ONU, apenas 4 das 770 cidades analisadas aparecem com uma pontuação acima de 70 (sendo 100 o máximo): Morungaba (SP), Pedreira (SP), Jumirim (SP) e Corumbataí (SP). Jorge Abrahão, diretor presidente do Instituto, disse que o índice reflete “a necessidade de haver uma inversão das prioridades no investimento da cidade, voltado para cumprir, sobretudo, os desafios socioambientais.”
Parte desses empecilhos enfrentados pelas cidades está associado à ausência de um “caráter amplo e estratégico”, disse o cientista político Humberto Dantas, gestor de educação do Centro de Liderança Pública (CLP). “Faltam instrumentos que exijam mais compromisso para os municípios atuarem.” Segundo ele, seria importante garantir soluções e respostas mais perenes, que não deixem de existir com mudanças na gestão municipal. Em Amparo, por exemplo, o projeto de troca sustentável acabou sendo descontinuado em 2021.
Diego Conti, professor do Programa de Pós-graduação em Sustentabilidade da PUC-Campinas, disse que não há, atualmente, governança multinível para a realização e consolidação da Agenda 2030 no Brasil. “Seria preciso criar um sistema de articulação e deliberação entre o Governo Federal, Estados, Municípios e até mesmo entes não governamentais, como Organizações da Sociedade Civil e Empresas, para o cumprimento das metas e materialização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.”
Apesar das pautas ambientais serem as mais lembradas quando se fala em tornar uma cidade sustentável, a busca pelo trabalho decente e crescimento econômico também está prevista nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Foi para isso que a pequena Bananeiras, cidade de 20 mil habitantes no interior da Paraíba, criou a Casa do Empreendedor, projeto que prevê apoio financeiros a micro e pequenos empreendedores, além de suporte administrativo, jurídico e contábil para a abertura de uma empresa.
A experiência foi compartilhada pelo ex-prefeito Douglas Lucena (PSB-PB) por meio da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), organização apartidária que estimula a interlocução entre mandatários de diferentes partidos. A partir daí, a ideia foi adaptada por ao menos outras duas cidades: Mogi das Cruzes (SP) e Caruaru (PE).
“Na busca de soluções rápidas e eficientes frente a situações emergenciais, como o cenário pandêmico que estamos vivendo, procurei primeiro modelos que já deram certo. Não é preciso inventar a roda”, disse o prefeito Caio Cunha (Podemos), de Mogi. “Sou entusiasta de redes de colaboração que permitem o encontro de pessoas que, embora estejam em regiões diferentes do País, pensam em soluções semelhantes”, afirmou Raquel Lyra (PSDB), prefeita de Caruaru.
A versão de Mogi foi adaptada para o momento de pandemia e recebeu o nome de Auxílio Empresarial Mogiano. Nele, contribuintes do Simples Nacional que atuam em áreas consideradas não essenciais podem receber R$ 300 por funcionário registrado, com limite de até 5 funcionários. O empresário Roberto Assi, de 64 anos, foi um dos beneficiários. Dono de uma papelaria, ele disse que o programa contribuiu para a preservação do emprego de todos os funcionários. “Em um momento extremamente difícil para os comerciantes, foi possível aliviar as contas e manter o funcionamento da loja.”
Trocas como a de Bananeiras, Caruaru e Mogi inspiraram a criação do Banco de Boas Práticas, uma plataforma de consulta aberta da Raps, rede apartidária que soma mais de 670 pessoas, das quais 141 estão no exercício de mandato eletivo – dois governadores, sete senadores, 32 deputados federais, 41 deputados estaduais, dois deputados distritais, 17 prefeitos e 41 vereadores.
Mônica Sodré, diretora executiva da entidade, disse que o objetivo da plataforma é deixar à disposição de todos iniciativas que já foram implementadas e testadas por líderes da rede. “Ali estão as sementes das soluções que queremos ver implementadas”, disse ela ao Estadão.
Para Sodré, que é cientista política, a descontinuidade de políticas públicas e o desconhecimento de gestores e legisladores a respeito da Agenda 2030 dificultam o avanço do tema no País. Tudo isso se soma ao pouco envolvimento do governo federal com a pauta.
A especialista lembra a extinção, em 2019, da Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (CNODS), em episódio que ficou conhecido como “revogaço”. “É mais um dos elementos que ajuda a colocar luz sobre a não prioridade do governo federal.” Hoje, segundo ela, o desenvolvimento de metodologias para acompanhar a implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em nível municipal fica a cargo da sociedade civil, que tem realizado um bom trabalho.
Embora não haja um incentivo nacional para atingir os objetivos, o governo de São Paulo prevê um prêmio para municípios paulistas que reduzirem as desigualdades regionais em quatro áreas previstas na Agenda 2030: educação, saúde, segurança e desenvolvimento socioeconômico. O montante de R$ 10 milhões para gastar com algum convênio com o Estado será distribuído entre 35 municípios que apresentarem melhores resultados.
“Há uma maior preocupação das cidades com o desenvolvimento sustentável. O oferecimento de graça às prefeituras de um ambiente de cooperação, com direito a cursos, capacitações, ‘lives’ e orientações contínuas tem funcionado”, afirmou o secretário de Desenvolvimento Regional, Marco Vinholi.
O município de Penápolis (SP), a 480 km da capital, resolveu dar um passo atrás antes de implementar qualquer política pública da Agenda 2030. Logo nos primeiros dias de gestão, o prefeito Caique Rossi (PSD) assinou um decreto criando a Comissão de Estudos para Implantação da Agenda de Desenvolvimento Sustentável na cidade. “O município nunca vibrou a ideia de sustentabilidade. Então, precisávamos criar uma cultura e fazer com que todo o secretariado conhecesse a Agenda”, afirmou ele.
A Comissão é composta por oito integrantes da equipe de governo e oito da sociedade civil e comunidade científica. A ideia é fazer um diagnóstico da cidade, mapeando quais iniciativas já existem e funcionam para, então, saber o que ainda precisa ser criado. “O resultado desse grupo de estudos será a elaboração de um relatório com as políticas públicas que a cidade teria condições de implantar.”
O Saneamento Solidário foi uma das ideias que surgiu a partir de discussões na comissão e deve começar a rodar em formato piloto ainda no primeiro semestre. O programa propõe melhorar a limpeza urbana a partir da ajuda da população. Em cada bairro, moradores vão se juntar em grupos para escolher quem serão os responsáveis por executar a limpeza urbana no local. Os escolhidos vão receber pela execução da limpeza de acordo com a metragem: a expectativa é que 5 km de limpeza feita gere uma renda de R$ 600 por mês.
Procurados, o Ministério do Meio Ambiente e o Itamaraty não quiseram comentar.
Fonte: Estadão
Créditos: Polêmica Paraíba