O Brasil tem assistido a um aumento no número de escolas cívico-militares não apenas no ensino público.
Há também um avanço de colégios particulares de inspiração militar, administrados por ex-policiais, agentes da reserva do Exército ou mesmo por gestores que veem no avanço do conservadorismo no país e na “busca dos pais por mais disciplina” uma oportunidade de negócio.
A reportagem identificou mais de uma dezena de unidades particulares distribuídas entre Ceará, Brasília e Paraná.
Assim como tem acontecido em escolas por todo o país, por conta da pandemia as aulas presenciais foram interrompidas e o modelo de ensino, adaptado para lidar com a necessidade do isolamento social.
No Paraná, uma associação de policiais militares lançou um colégio particular há dois anos e, atualmente, já conta com outros seis espalhados pelo Estado.
No Ceará, sócios de uma universidade lançaram a proposta em 2020 com o intuito de atrair pais interessados em uma educação “mais rígida”.
Já a capital federal assistiu em 2019 ao surgimento e desmobilização de uma rede de escolas de “ensino militarizado”, que vendeu parte das unidades e fechou outras após passar por uma série de problemas financeiros.
O termo “cívico-militar”, no caso das escolas particulares, não é reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) ou pelo Exército, restringindo-se às escolas públicas no âmbito do programa lançado pelo governo federal em 2019. A gestão Jair Bolsonaro tem apostado no aumento de unidades públicas que utilizam o modelo, prometendo 216 delas em 26 Estados nos próximos anos.
Só no ano passado, de acordo com os dados disponíveis no site do programa, foram instaladas 54 em 23 Estados e no Distrito Federal.
Assim como as públicas, as escolas particulares que aderiram ao modelo militar costumam impor regras rígidas de conduta a seus estudantes, como corte de cabelo padrão, uso de uniforme similar ao da PM e obrigatoriedade de cantar o hino nacional todos os dias.
As instituições afirmam que incentivam a “disciplina e o respeito à hierarquia” como método para melhorar o desempenho e a educação dos alunos.
Por outro lado, críticos afirmam que a imposição de condutas rígidas e de disciplina não é a responsável por possíveis melhorias em notas e no desempenho de alunos — e sim uma boa estrutura do colégio, a qualidade dos professores e um programa pedagógico bem feito.
‘Queria um colégio com mais disciplina’
No Estado do Paraná, as escolas particulares que se intitulam “cívico-militares” vinham avançando rapidamente. Pelo menos sete delas, administradas pelo mesmo grupo, surgiram nos últimos dois anos.
A primeira, o Colégio Vila Militar, em Curitiba, estreou em 2018 e hoje já tem 668 alunos matriculados do 6º ano do ensino fundamental até o 3º do médio.
Essa primeira unidade pertence à Associação Vila Militar, entidade de classe dos policiais militares do Paraná que conta com mais de 20 mil sócios.
As outras seis, espalhadas por cidades do interior, já existiam antes, mas mudaram o “método de ensino” para o cívico-militar por meio de uma parceria com a instituição de agentes.
Nesses casos, a associação indicou policiais da reserva para assumir a direção e a administração dos colégios.
Segundo Nelson Soares Júnior, diretor-comandante do Colégio Vila Militar e coronel da reserva remunerada da PM do Paraná, apesar de o foco inicial terem sido filhos dos sócios da associação, a unidade particular passou a ser procurada por pais interessados em dar aos filhos uma educação “com mais disciplina e respeito ao próximo”.
Um desses pais é a instrumentadora cirúrgica Soeli Zanella, de 52 anos, mãe de dois alunos da unidade de Curitiba.
Ela conta que um dos filhos, de 14 anos, tentou entrar no colégio oficial da PM, mas não passou na prova. Foi então ela que ouviu falar da rede particular.
“Eu queria um colégio que fosse militar, com mais disciplina. Antes, meus filhos não gostavam de fazer o dever de casa, por exemplo, sempre deixavam para depois. Agora, eles fazem na hora, estão mais responsáveis e mais focados nos estudos. Eles sabem que podem ser punidos e receber memorandos caso não cumpram as tarefas ou se comportem mal”, explica.
O padrão de conduta da escola tem regras para o corte de cabelo dos meninos, por exemplo, que deve ser sempre da máquina 2 à 4; as meninas precisam usar o cabelo preso em um coque. As unhas devem estar sempre cortadas e o uniforme (farda e boina) também é obrigatório.
Os alunos são proibidos de falar palavrões, devem diariamente cantar o hino nacional, andar em fila indiana do pátio até as salas de aula e se levantar quando um professor entrar na classe. Os estudantes que têm notas acima de 8 recebem um certificado bimestral de “honra ao mérito”.
Para o coronel Nelson Soares Júnior, diretor da escola, o método tem dado certo.
“Nosso colégio não é um quartel. É uma instituição pautada no respeito e na disciplina. Do ponto de vista pedagógico, temos o compromisso de construir uma escola de alto desempenho”, explica.
Segundo ele, não existe a possibilidade de relaxamento das normas de conduta caso um estudante não se enquadre e queira, por exemplo, deixar o cabelo crescer ou desistir de cantar o hino nacional todos os dias.
“Somos uma instituição privada e de cunho comercial. Os pais têm toda a liberdade para trocar de colégio caso seus filhos não queiram seguir as normas”, diz o coronel, que é doutor em geografia e já comandou o colégio da PM paranaense.
O diretor afirma que o conteúdo das aulas não tem viés ideológico — nem à esquerda nem à direita. “Nós apresentamos todos os lados de uma questão. O foco de uma escola não deve ser doutrinar ninguém”, diz ele, citando que 80% dos professores são civis.
Oportunidade de negócio
Em Fortaleza, o Colégio Cívico Militar – Batalha do Riachuelo estreou em 2020 com 1.030 alunos.
Três anos atrás, contudo, quando o empresário Francisco Pessoa Furtado resolveu diversificar os negócios até então focados no ensino superior e entrar na educação básica, o modelo inspirado nas escolas militares não era a primeira opção.
A ideia inicial era abrir uma escola “premium”, que funcionaria dentro de um shopping center da capital cearense. O professor temia, contudo, que a mensalidade — algo entre R$ 4 mil e R$ 5 mil — fosse cara demais e prejudicasse a demanda.
“Aí vieram as eleições” e ele e os colegas que posteriormente se tornariam seus sócios tiveram a ideia de apostar em um modelo focado “na disciplina e na segurança”.
O resultado das urnas no Estado — em que o então candidato Jair Bolsonaro obteve apenas 29% dos votos válidos no segundo turno — levantou dúvidas sobre o futuro do negócio no Ceará, mas o grupo resolveu apostar mesmo assim.
Com bolsas de 50% na mensalidade de R$ 2,4 mil para os alunos do primeiro ano de funcionamento da escola, as vagas foram preenchidas em dois meses.
Segundo Pessoa, que também é sócio da faculdade Fatene, a administração foi procurada, antes da pandemia de covid-19, por gestores escolares em outras regiões do país interessadas em replicar o modelo. A expectativa naquele momento era operar em “5 ou 6 Estados” no próximo ano — em cidades como Ananindeua, no Pará, João Pessoa, na Paraíba, e Recife e Caruaru, em Pernambuco.
Enquanto o conteúdo pedagógico da escola é responsabilidade de um “civil”, o lado “militar” fica a cargo de cinco coronéis da reserva, que cuidam das áreas de “disciplina e segurança”.
A inspiração militar está presente principalmente nas regras de conduta: os alunos devem se levantar batendo continência quando alguém entra na sala, só podem se sentar quando o professor ordenar e devem guardar os celulares no armário.
Parte delas, entretanto, estava em “período de adaptação” antes das aulas se tornarem completamente virtuais por conta do decreto de quarentena na capital cearense — como a exigência do corte de cabelo mais curto para os meninos e do coque para as meninas.
Questionado sobre o conteúdo programático, se também havia sido desenhado para agradar setores mais conservadores da sociedade, inclusive aqueles que questionam teorias comprovadas pela Ciência, como o evolucionismo, o professor responde:
“Nós não temos viés esquerdista, mas também não estamos fazendo doutrinação (à direita).”
Escolas sem credenciamento
A capital federal é outro dos locais onde as escolas cívico-militares particulares têm aparecido com mais força, embora uma delas tenha enfrentado problemas.
O Colégio Marechal Duque de Caxias estreou em 2019 com o slogan “disciplina, civismo e conhecimento”.
Além da proposta do militarismo, o valor da mensalidade, em torno de R$ 600, também atraiu muitas famílias, como relatou o pai de dois ex-alunos que preferiu não se identificar.
À reportagem, ele disse ter optado pela escola por ser a única na região que “tinha a ideologia do nosso atual presidente”.
A rede chegou a contar com quase dez unidades, entre parcerias com escolas pré-existentes e novos colégios.
Com a mesma velocidade com que cresceu, o grupo se desmobilizou. Após uma série de problemas financeiros, que culminaram na falta de pagamento de aluguel e dos salários dos professores, parte das unidades foi fechada e outra, “devolvida” aos antigos donos.
Atualmente, alguns pais têm tentado entrar em contato com a escola, sem sucesso, em busca do histórico escolar dos filhos, para que possam matriculá-los em outros colégios.
A Secretaria de Educação do Distrito Federal disse ter recebido 17 reclamações relacionadas ao Sistema Colégio Marechal Duque de Caxias em 2019 e outras três neste ano.
A maioria dizia respeito ao fato de que algumas unidades funcionavam sem credenciamento ou autorização. Segundo a secretaria, esse é o caso de duas escolas, da Asa Sul e Asa Norte.
“Dessa forma, os estudos dos alunos matriculados não têm validade, salvo se houver deferimento por parte do Conselho de Educação do Distrito Federal validando-os”, informou a pasta.
A reportagem tentou entrar em contato com a rede, mas não conseguiu localizar nenhum dos responsáveis pelo grupo.
‘Princípios cristãos, civismo e patriotismo’
Também em Brasília, o capitão Davi Lima, da reserva do Exército, tem feito parcerias com colégios locais para ampliar a presença dos “cívico-militares” na rede particular.
“Como o número de escolas militares públicas ainda é reduzido, muitos pais querem colocar os filhos em particulares. Por isso a rede está crescendo”, diz ele, que preside a Associação Brasileira de Apoio às Entidades Cívico Militares (Abemil).
Mesmo sem formação na área de educação, o capitão tem participado de eventos em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais para tentar fomentar a criação de novas escolas do modelo. No site da Abemil há fotos e vídeos antigos de Lima ao lado de Jair e Eduardo Bolsonaro.
Em Brasília, três escolas particulares fizeram parcerias com a entidade comandada por ele — as unidade já se intitulam “cívico-militares” e, nas redes sociais, mostram fotos de alunos cantando o hino nacional e vestindo uniformes parecidos com o do Exército.
O capitão Davi Lima, que afirma ter novas parcerias com outros quatro colégios privados, diz que a Abemil treina militares da reserva para atuar como monitores e inspetores nessas escolas.
“Prezamos pelos princípios cristãos, civismo e patriotismo, valores que perdemos há muito tempo. Além disso, nós damos segurança para o professor entrar na sala e dar sua aula tranquilamente”, diz.
À BBC News Brasil o Exército brasileiro afirmou que não autoriza que militares da ativa ou da reserva usem o nome da instituição para criar ou administrar colégios particulares — também disse que só reconhece as escolas “cívicos-militares” administradas pela Corporação.
Já o capitão Davi Lima diz que sua entidade não tem relação com o Exército e que migrou para a reserva há poucos meses com o objetivo de se dedicar exclusivamente à educação.
Disciplina x pedagogia
Para o diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação, João Marcelo Borges, o aumento das escolas cívico-militares do país, sejam elas públicas ou privadas, reflete uma visão equivocada de que a gestão da escola e a parte pedagógica são duas coisas dissociadas.
Segundo ele, é “perfeitamente aceitável a busca por mais disciplina” que leva muitos pais a procurarem essa linha de ensino. A disciplina, porém, também é um atributo do ensino regular, ele acrescenta.
É algo que faz parte do trabalho de “professores e gestores bem qualificados”.
“Faz parte das funções desses profissionais criar um ambiente em que a disciplina é vista como algo benéfico, e não uma ordem, uma imposição.”
Um gestor de escola militar que preferiu não se identificar disse ver com preocupação a tendência.
“Os exemplos que temos assistido de militarização nas escolas se baseiam na face mais evidente dos colégios militares: as formaturas, a cobrança da disciplina, o uso correto dos uniformes… Mas param por aí.”
Segundo ele, a excelência das 13 escolas do Exército que existem hoje no país se deve a fatores que vão muito além dessas características – entre eles, o foco no ensino integral, em que os alunos são estimulados a se dedicar a atividades extracurriculares, como esporte, robótica, dança, astronomia, a dedicação à parte técnica, pedagógica, didática, metodológica e o preparo profissional dos agentes de ensino.
“Nos colégios militares, os índices de capacitação dos profissionais são altíssimos. A grande maioria possui mestrado ou doutorado, mesmo os praças”, destaca.
Fonte: G1
Créditos: Polêmica Paraíba