O soldado reformado Valdemar Martins de Oliveira, 71 anos, serviu na Brigada Paraquedista, na Vila Militar, do Rio de Janeiro, e trabalhou, ao longo do ano de 1968, como um espião da ditadura militar e atuou com alguns dos agentes mais violentos das Forças Armadas no período. Em entrevista à coluna, ele relatou como presenciou a tortura e a execução a tiros de João Antônio e Catarina Abi-Eçab, militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Nos jornais, na época, a versão da ditadura era que o casal morreu no dia 8 de novembro de 1968, em um acidente automobilístico na rodovia BR 116, Km 69, na altura da cidade de Vassouras. No entanto, o que Oliveira presenciou é outra coisa.
O casal Abi-Eçab foi assassinado após quatro horas de violência num sítio em São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Ao discordar das ações dos superiores, Oliveira diz que, ele próprio, acabou perseguido pelos colegas de farda.
“A menina tomou choque na vagina, no ânus, na boca, nos lábios. Choque com um dispositivo que eles chamavam de pimentinha”, conta Oliveira à coluna. Ele havia revelado o que sabia em entrevista ao jornalista Caco Barcellos, em 2001. Depois disso, a família do casal fez exames que comprovaram a causa da morte.
Ao tomar conhecimento das declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) pedindo provas da tortura, o soldado, que foi da Brigada Paraquedista como o presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ), decidiu relembrar o episódio do qual foi testemunha.
“A tortura existiu e existiu mesmo. Eu assisti. Estou em perfeitas condições mentais aqui para falar e estar em qualquer foro devido para falar sobre o que eu disse”, conta Oliveira. “A verdade demora, mas vem”, completa, ao fazer referência aos áudios dos julgamentos do STM (Superior Tribunal Militar) nos quais os ministros citaram episódios de tortura de presos políticos.
“O brasileiro tem que pensar, de fato, nessa sede de poder que as pessoas têm. Não assumem o que fizeram”, afirma.
Oliveira trabalhou sob o comando dos então capitães Rubens Sampaio e Freddie Perdigão Pereira. Os dois oficiais estiveram lotados por vários anos no Centro de Informações do Exército (CIE) que funcionava dentro do gabinete do ministro do Exército, na época da ditadura, e foram agraciados com a Medalha do Pacificador com Palma, nos anos 1970, pelas ações de combate a opositores. Ambos também atuaram na Casa da Morte de Petrópolis, prisão clandestina usada para executar presos na Região Serrana do Rio, e ainda na Guerrilha do Araguaia. Perdigão também esteve envolvido na tentativa de um atentado no Riocentro, em 1981.
Início do trabalho como espião
O soldado é natural do Paraná, mas veio servir na brigada em janeiro de 1968. Alguns meses depois, foi recrutado pelo então capitão do Exército Rubens Paim Sampaio, também integrante da Brigada Paraquedista, para fazer ações de inteligência.
No início, segundo o soldado, ele tinha como tarefa se misturar no meio dos grupos opositores, fotografar pessoas em passeatas e monitorar suas ações. Em novembro de 1968, ele teve que monitorar o casal Abi-Eçab, que vivia em Vila Isabel, na zona norte do Rio.
Entre os dias 6 e 7 de novembro daquele ano, dois carros do Exército, uma rural Willys e uma DKW Vemag foram ao local prender o casal. Quem comandava a ação pelo Exército era o então capitão Freddie Perdigão Pereira, com fama de violento. Oliveira estava junto e acompanhou quando o casal foi levado com vida do apartamento onde estavam. O soldado, porém, conta que não sabia o que ia acontecer depois.
O grande objetivo das prisões naqueles dias era prender os guerrilheiros que assassinaram o capitão Charles Chandler, em 12 de outubro de 1968. No entanto, os envolvidos na ação que matou o militar americano foram Marco Antônio Brás de Carvalho (Marquito), Pedro Lobo e Diógenes Carvalho de Oliveira.
Após prender o casal em Vila Isabel, os militares começaram a agredir os dois e iniciaram o interrogatório em meio à mata da Estrada da Cascatinha, no Alto da Boa Vista, na zona norte do Rio. Depois, decidiram levar os dois para um sítio em São João do Meriti. Nesse local, segundo Oliveira, a violência chegou ao ápice e culminou na morte dos dois.
“Tinha uma pilha de tijolos que parecia uma pia com uma cava. Ali fizeram um pau de arara. Ela (Catarina) foi colocada ali nua. Tiraram a roupa e foi colocada lá e aquela sessão de pancadaria e perguntando sobre o capitão Chandler. Ela não falava e não falava porque calculo que não sabia porque uma pessoa apanhando daquela forma”, afirma Oliveira. “Depois o João Antônio foi trazido e ela foi tirada de lá e foi colocado ele (pau de arara)”, acrescenta.
Oliveira diz que ficou assustado com tudo que estava acontecendo e tentou falar aos superiores que eles não sabiam da morte do capitão. No entanto, acabou atacado.
“Quem estava no comando de tudo isso era o capitão Freddie Perdigão Pereira e eu disse que eles não sabiam nada. E foi uma bobagem eu falar aquilo. Eles eram uma força extrema diante da menina e do rapaz. Então esse Freddie me pegou pelo pescoço, me encostou na parede e me chamou de comunista”, afirma Oliveira. “Não concordei nenhum pouco com aquilo. Foi uma covardia muito grande”,
O soldado diz que, após quatro horas de tortura com choques e espancamento, o casal foi executado. “Eles ficaram desfalecidos e foram dispostos um do lado do outro no chão. Aí o Perdigão disse: ‘Esses aí não servem mais para nada e sacou uma pistola e deu um tiro na cabeça de cada um”, conta Oliveira. Depois do que ocorreu, o Exército decidiu simular o acidente em Vassouras para ocultar as agressões ao casal.
Segundo Oliveira, os comentários dele também fizeram com que seus chefes passassem a persegui-lo dentro do Exército. Pouco depois, de acordo com o soldado, o capitão Rubens Paim Sampaio teria forjado um informe de que ele era um desertor.
Hoje, Oliveira luta pelo reconhecimento da perseguição e por sua anistia política junto ao governo.
Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba