A caixa era quadrada, com cerca de 1,5m de altura, forrada por isolamento acústico. Dentro dela, as temperaturas variavam entre um calor absurdo e um frio congelante em poucos segundos. Luzes piscavam em ritmo frenético. E sons estridentes ameaçavam romper os tímpanos de quem estava ali dentro. Foi nessa pequena estrutura que alguns presos políticos do período da ditadura ficaram confinados por alguns dias, sem qualquer comunicação, água ou comida, impossibilitados sequer de esticar as pernas. De acordo com o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a caixa, vinda da Inglaterra, ficava na antiga sede do DOI no Rio de Janeiro. Pelo menos duas vítimas reconheceram à CNV o local onde o objeto, chamado de “geladeira”, ficava guardado.
Além da “geladeira”, pelo menos mais trinta formas de tortura foram inventariadas pela Comissão Nacional da Verdade. A lista inclui violências já conhecidas, como a aplicação de choques elétricos e palmatórias, cadeira do dragão (assento que dava choque), “pau de arara”, afogamento, telefone (tapas nos dois ouvidos ao mesmo tempo) sufocamento e espancamentos. Muitas vezes eram combinados vários deles, como relatou Antônio Pinheiro Salles, em depoimento em de setembro de 2013, à CNV:
“Este Nilo Oliveira (torturador), muitas vezes quando eu estava pendurado no pau de arara, foi inúmeras vezes chegar em cima de mim, lá no local onde o meu pescoço estava caído, abria a calça, tirava o pênis e urinava na minha cara. Ele fez isso várias vezes. ‘Eu estou com vontade de urinar, vou urinar aqui nesta latrina.’ Pegava e urinava.”, contou Salles ao detalhar sua situação durante a tortura:
“A gente fica com a cabeça para baixo, pois durante um tempo você resiste, fica com a cabeça ainda levantada, depois de algum tempo você não exerce mais nenhum domínio sobre o corpo. É tudo assim, amortecido. O resto está amarrado, mas o pescoço, ele cai”.
Há ainda formas de tortura menos conhecidas. Os militares lançaram mão de animais vivos para aterrorizar suas vítimas. Cachorros, cobras, ratos, jacarés e baratas eram lançados contra os torturados, ou até mesmo colocados dentro de seus corpos. É o que relata a cineasta Lucia Murat em depoimento à CNV: “Eles estavam histéricos, eles sabiam que precisavam extrair alguma coisa em 48 horas, se não perderiam o meu contato. Gritavam, me xingavam, me puseram de novo no pau de arara. Mais espancamento, mais choque, mais água e dessa vez entraram as baratas. Puseram baratas passeando pelo meu corpo, colocaram uma barata na minha vagina. Hoje parece loucura, mas um dos torturadores, de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes e através do barbante ele conseguia manipular as baratas pelo meu corpo”, relatou.
Outro objeto de tortura citado é chamado de coroa de cristo. Consistia em um fita de aço colocada ao redor do crânio e apertada por uma tarraxa. O instrumento, apertado em excesso, teria provocado a morte da famosa militante Iara Iavelberg por esmagamento do crânio. O relatório menciona também a aplicação de injeções subcutâneas de éter, que provocavam o necrosamento dos tecidos, queimaduras por cigarro e outras mais.
A CNV dedicou um capítulo específico do relatório à violência sexual aplicada especialmente contra as mulheres. Estupros e violações eram práticas sistemáticas do regime e configuram, na avaliação da CNV, crime contra a humanidade. Comumente as presas sofriam choques nos mamilos, na vagina e no ânus. Traços de feminilidade e maternidade eram frequentemente ridicularizados e usados para humilhar as vítimas. Um exemplo é o de Karen Keilt, levada com o marido para o Departamento Estadual de Investigações Criminais de São Paulo (DEIC-SP), maio de 1976. Ambos só foram libertados no início de julho, após o pagamento de um “resgate” de 400 mil dólares, segundo a CNV. Karen vive hoje nos Estados Unidos. À CNV, em testemunho inédito, ela contou:
“Começaram a me bater. Eles me colocaram no pau de arara. Eles me amarraram. Eles me deram batidas, deram choque. Eles começaram dando choque no peito, no mamilo. Eu desmaiei. Eu comecei a sangrar. Da boca. Sangrava de tudo quanto era lugar. Da vagina, sangrava. Nariz, boca… E eu estava muito, muito mal. Veio um dos guardas e me levou para o fundo das celas e me violou. Ele falou que eu era rica, mas eu tinha a b***** igual a de qualquer outra mulher. Ele era horrível [choro]. Oh God! [choro]”.
Parte dos relatos que fundamentam as denúncias da CNV, no entanto, não são inéditos e foram reciclados de trabalhos feitos pela Anistia Internacional e pelo Brasil: Nunca Mais. Integrantes da CNV afirmam que a investigação poderia ter ouvido muito mais vítimas para embasar as denúncias e fortalecer politicamente os resultados obtidos. Ainda assim, o relatório tem o mérito de trazer novidades e reunir informações já conhecidas.
A Comissão dá ainda um passo a frente ao responsabilizar o Estado por oito suicídios cometidos por ex-presos políticos. Alguns se mataram no exílio, outros no período democrático. Na interpretação dos comissionados, as mortes foram provocadas pelas torturas e violências sofridas na época da ditadura. Para as vítimas, teria sido penoso demais viver carregando consigo aquelas lembranças. O relatório tenta transformar essas lembranças pessoais tão doloridas em memória coletiva do país.
Fonte: O Globo
Créditos: O Globo