No início do ano, a Netflix lançou a segunda temporada de uma série que teria tudo para ser apenas mais um clichê adolescente, como American Pie e tantos outros filmes do gênero. Porém, se o sucesso que a série tem alcançado pode ser explicado, por um lado, por conseguir explorar cada um dos seus personagens para além da superficialidade padrão desses clichês adolescentes, por outro lado, ela tem sua origem também na identificação (atual ou saudosista) do público com os dramas afetivos e sexuais que se desenvolvem ao redor de cada personagem.
Para além disso, o sucesso da série – que embora se passe centralmente em uma escola do ensino médio, não se resume apenas ao universo de adolescentes de 16 anos -, evidencia que, diferente do que Foucault preconizava, ainda que avançamos para uma sociedade em que o consumo do sexo tem sido cada vez mais popularizado (banalizado), a sociedade se mantém profundamente reprimida e ignorante (carente) sexual e afetivamente.
É essa contradição cada vez mais gritante para a juventude entre uma aparente liberalização sexual com um aumento da carência das condições de um suporte social e de capacidade estrutural para lidar com essa situação, que faz aumentar problemas como a gravidez indesejada na adolescência; o número de jovens mortas por abortos clandestinos; a violência trans e homofóbica nas ruas; a violência doméstica; o aumento no número de pessoas com IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis); o aumento dos casos de depressão, ansiedade e solidão; etc…
Enfim, quanto mais se aumenta a mercantilização e a oferta de sexo, de desejo e de corpos, e quanto mais se nega à juventude um suporte social e estrutural para lidar com essa realidade, mais se aumenta também a miséria sexual e afetiva da juventude e da sociedade de conjunto!
Enquanto o governo Bolsonaro e a ministra Damares propõe como solução reacionária para essa equação problemática que a juventude simplesmente pare de fazer sexo, a série da Netflix vem atuando na contramão e buscando apresentar – às vezes em chave dramática, às vezes em chave cômica – várias informações relevantes para que a juventude possa praticar um sexo com informação suficiente para que este seja seguro e prazeroso.
A série vai abordar desde dúvidas que causam ansiedade, angústia e traumas em inúmeros jovens quando estes estão iniciando sua vida sexual ativa – como se fazer um “boquete”, como estimular o clitóris, como fazer a “chuca”, etc -, até os temas que são verdadeiros dramas sociais – como a necessidade do aborto, o preconceito e a ignorância em relação a IST’s e os abusos sexuais em transportes públicos.
Enquanto a extrema-direita segue repudiando à educação sexual nas escolas, ela mantém a juventude na ignorância sobre seus próprios corpos e desejos e reféns das piores consequências sociais em relação a prática de um sexo desconhecido. Como se não bastasse o desserviço com essa política de falta de informação para a juventude, agora o governo chega ao absurdo de propor uma campanha ideológica pela abstinência sexual!
Em vez de informar e educar, a saída é proibir e estigmatizar. Isso sem falar de algo estrutural do capitalismo, que são os impeditivos econômicos que fazem com que a grande maioria dos adolescentes não tenham condições de construir e descobrir relações sadias com o seu sexo, seu corpo e seu afeto de maneira independente, profunda e íntima junto com outros adolescentes.
Ainda de acordo com a propaganda do governo, educação sexual não deve ser tarefa da escola mas sim tarefa da família. Nesse âmbito, a série da Netflix também tem a felicidade de apresentar a complexidade das relações parentais que permeiam os personagens da série, e a partir daí demonstrar como parte das contradições e dramas que afetam a vida afetiva e sexual de vários jovens está associada com as contradições intrínsecas da própria relação familiar.
Seja a jovem de aparência rebelde e o passado de relação com a mãe viciada e o irmão traficante; seja o jovem de aparência valentona e sua relação com um pai autoritário e uma mãe submissa; seja o jovem tímido e com ansiedade sexual e sua relação com uma mãe super-protetora e invasiva; ou o atleta popular cuja mãe transfere para ele suas vontades e desejos frustrados. Enfim, de inúmeras formas a série vai demonstrar a impossibilidade de que uma verdadeira e saudável educação sexual venha unicamente do núcleo familiar.
Outra grande sacada da série – em tempos em que o governo faz propaganda contra a discussão da fluidez do gênero e da sexualidade com os jovens – é conseguir explorar de maneira muito sensível a diversidade sexual e as descobertas e experimentações afetivas da juventude não apenas em relação ao gênero oposto, mas também com o seu próprio gênero. Na segunda temporada a série vai apresentar a assexualidade, a pansexualidade e relacionamentos afetivos e sexuais de gays e lésbicas de uma maneira extremamente natural.
Ainda sobre esse tema, a série vai quebrando, de maneira paulatina durante as duas temporadas, a imagem homofóbica por trás das atitudes de Adam, o filho do Diretor, com um dos protagonistas da série, Eric, assumidamente gay. Para além do superficial clichê de que “todo homofóbico é um gay enrustido”, a série vai se aprofundar no personagem de Adam, relacionando suas atitudes com uma inveja latente diante da coragem e autenticidade do outro e do próprio afeto e apoio que o pai de Eric possui pelo filho em contraste com o autoritarismo com o qual seu próprio pai lhe trata. Adam não se identifica enquanto gay (muito pelo contrário, ele seria o esteriótipo do que se chama hoje de “hétero-padrão-topzera”), mas isso não impede a série de ir construindo sobre sua personagem e a de Eric uma complexa – e mais comum do que se costuma imaginar – relação homoafetiva.
A série ainda aproveita para mostrar pra Damares algo que já é científica e estatisticamente estudado e comprovado pelo menos desde Freud: que mesmo em ambientes unicamente masculinos – colégio militar, presídio, monastério, etc… – é impossível impor uma abstinência sexual. A série vai mostrar uma cena de “brotheragem” (masturbação ou felação entre homens) de dois estudantes do Colégio Militar para onde Adam é mandado pelo pai. O homoerotismo e as práticas sexuais entre dois homens (ou duas mulheres) é muito mais comum do que se imagina, e vai muito para além da necessidade de assumir ou não uma identidade gay/lésbica. A série finaliza de maneira brilhante essa situação com a declaração do Sargento sobre o tema de que “muitos de nós somos nessa instituição. Mas é melhor ignorar certas coisas.” Uma afirmação que facilmente ultrapassa a ficção.
Ainda que os dilemas e dramas afetivos e sexuais que a série traz também estejam presentes em grande medida na série animada Big Mouth (inclusive a construção de alguns de seus personagens), Sex Education tem a vantagem de trazer maior grau de realidade e identidade entre os personagens e o público.
É em toda essa perspectiva que a série Sex Education tem o seu mérito em trazer a tona não apenas dramas clichês adolescentes (ainda que haja isso também na série), mas trazer problemas, dúvidas, soluções e reflexões em torno da sexualidade, da afetividade e das contradições na construção de relações dentro dessa sociedade, sugerindo ao público pensar e repensar valores, determinações e preconceitos.
Ao contrário da abstinência sexual compulsória incentivada pelo governo Bolsonaro e a ministra Damares, e ao contrário da imposição cada vez maior do Estado, da Igreja e da família de controle sobre o corpo e o desejo da juventude, é necessário que os estudantes se organizem com os professores pela defesa de uma educação sexual livre e emancipadora nas escolas. É necessário que se fortaleçam os espaços de debate entre a juventude e o operariado sobre sexualidade e política; que se garanta o direito ao aborto legal, seguro e gratuito; que se possibilite ao máximo as condições de independência financeira para a juventude em relação aos pais e para as mulheres em relação aos maridos; e que se garanta espaços seguros e gratuitos para a juventude ter o direito ao prazer e ao conhecimento do seu próprio corpo.
Somente compreendendo a função social por trás de toda e cada repressão sexual, é que se faz possível construir uma política realmente revolucionária para a libertação sexual. Pois ainda que esta não se alcance automaticamente com a tomada das ruas ou do poder pela juventude e pela classe trabalhadora, é somente uma política que se proponha a destruir e transformar radicalmente todo esse sistema capitalista de exploração e opressão que pode ser capaz de dar livre vazão para todas as expressões de afetividade e sexualidade humana.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba
Fonte: Esquerda Diário
Créditos: Esquerda Diário