Um paciente com covid-19 chega a uma unidade de pronto atendimento em Pernambuco. Em estado grave, precisa de ventilador — mas não há equipamento para todos. Na frente de médicos que assistem sem poder ajudar, ele morre.
Médicos locais relatam cenas como essa, em especial nas UPAs (unidades de pronto atendimento), porta de entrada para as emergências, onde pacientes ficam esperando por uma vaga em hospitais. “As UTIs de campanha até que estão conseguindo atuar no limite da capacidade, mas a gente está com gargalo muito difícil nas UPAs. Elas ficaram esquecidas”, diz o médico generalista Joabe Oliveira Vasconcelos. “Não tem ventilador suficiente para todos. Já tive que escolher entre dois pacientes.”
O sistema de saúde do Estado tem dado demonstrações de que não aguenta o número de pacientes na crise do coronavírus. Pernambuco teve 15.588 casos confirmados de coronavírus e 1.298 mortes até quinta-feira (14). Segundo a Secretaria de Saúde do Estado, a taxa de ocupação dos leitos de enfermaria era de 87% e a de leitos de UTI, 96%.
O secretário de Saúde de Pernambuco, André Longo, já disse que há fila por leitos de UTI no Estado, que é “extremamente dinâmica” e pode ter, em determinado momento do dia, mais de cem pessoas. Segundo a Secretária de Saúde do Estado, “todo dia entram dezenas de pacientes e outras dezenas saem transferidos para hospitais de referência”. “Além disso, os pacientes que estão aguardando, momentaneamente, a transferência para centros de referência do novo coronavírus são assistidos em unidades de saúde que geralmente contam com estrutura de salas de estabilização, inclusive com pontos de oxigênio e respiradores.” A pasta informou também que em dois meses o governo abriu 1.180 leitos, sendo 551 de UTI, para pacientes suspeitos ou confirmados de covid-19.
Cinco municípios da região metropolitana de Recife tiveram quarentena decretada pelo governo do Estado, começando neste sábado (16), até dia 31 de maio.
A BBC News Brasil colheu relatos de cinco médicos sobre a difícil situação que têm enfrentado no dia a dia.
‘Já vi pacientes chegando perto da morte sentados em cadeira dura durante 48 horas por falta de leito’ – Joabe Oliveira Vasconcelos, 28 anos, médico generalista de UTIs e UPAs em Recife
“Estou trabalhando 72 horas por semana em UTIs e UPAs. As UTIs de campanha até que estão conseguindo atuar no limite da capacidade, mas a gente está com gargalo muito difícil no atendimento primário, na porta de entrada para a emergência, que são as UPAs. Elas ficaram esquecidas.
Não tem ventilador suficiente para todos nas UPAs. Já tive que escolher entre dois pacientes [sobre quem seria intubado e colocado no ventilador] e escolhi pelo que aparentemente tinha melhor chance de sobreviver. Já aconteceu em mais de um plantão, e continua acontecendo, porque o número de ventiladores não é suficiente.
“Um paciente de 56 anos disse a mim: ‘Eu tenho medo de ser intubado e nunca mais sair, doutor’. E eu soube que em 24 horas ele morreu. Para mim foi muito duro”
Fico com uma sensação de indignação com a falta de recursos para todo mundo receber o atendimento que precisa. É um direito básico.
Os pacientes são transferidos de UPAs para hospitais entre 24 horas e mais de 72 horas. Há pacientes que ficam 4 dias ou 5 dias intubados na UPA. A vida deles corre risco.
É muito comum ter pacientes na UPA — uns 10 pacientes no mínimo por plantão — recebendo oxigênio no cateter, mas sem terem leito para ficar, sentados em uma cadeira dura por 24 horas, 48 horas.
Ficam reclamando do desconforto, olhando para gente, e a gente sem ter como acomodá-los no leito. Isso é horrível, nossa. Ter uma pessoa 48 horas olhando para você lhe pedindo um leito e você não poder oferecer. Os mais velhos e idosos sofrem muito porque a doença agrava bastante, ficam sonolentos na nossa frente e não tem lugar para botar eles. É indigno. Já vi pacientes chegarem muito perto da morte assim.
Um dos maiores medos que os pacientes têm é de serem intubados e nunca mais acordar. Um paciente de 56 anos disse a mim: ‘Eu tenho medo de ser intubado e nunca mais sair, doutor’. E eu soube que em 24 horas ele morreu. Para mim foi muito duro porque quando eu o intubei eu dei a ele alguma esperança, eu respondi que aquela era a melhor chance que ele teria de sobreviver, e isso não aconteceu.
Na semana passada, atendi um paciente que tinha 33 anos. Quando cheguei no plantão ele tinha sido intubado havia cerca de 10 horas. Era um paciente obeso e a doença dele agravou-se absurdamente em 24 horas. Passei 30 min tentando reanimá-lo, mas infelizmente ele não sobreviveu. E dar a notícia para a família, e para o irmão, de que a pessoa que estava com eles há menos de 24 horas não estaria mais nunca, sem terem direito a ver o corpo e ter um momento de luto? Isso para mim foi o mais trágico.”
‘Não é fácil ver paciente morrer na sua frente por falta de ventilador’ – Médica generalista anônima, 30 anos, trabalha em UTIs e UPA em Olinda
“A UPA está chegando ao ponto em que está impossível dar conta da demanda. As salas estão ficando lotadas com pacientes graves. A gente não tem equipe suficiente nem ventiladores mecânicos para todos. Isso acaba gerando um ciclo de caos.
Os pacientes intubados ficam aguardando leito de UTI, mas tem uma fila gigantesca. Demora para sair a senha desse paciente [para ir para a UTI], demora para sair a transferência e os pacientes ficam mais graves. Às vezes, sai a senha de UTI e não tem transporte. Já é frequente o rodízio de fonte de oxigênio, já que são muito pacientes e fontes limitadas.
Já chegamos ao ponto de estarmos com todos os leitos ocupados, chegar paciente grave que precisa ser intubado, a gente não conseguir e paciente ir a óbito. E vai acontecer com mais frequência.
A equipe está entrando em estafa mental e emocional porque não é fácil ver um paciente morrer na sua frente, você com capacidade técnica para ajudar, mas falta ventilador mecânico e ele morre. Tristeza, desespero e choro da equipe. Pessoa idosa… jovem sem história de comorbidades.
[Um paciente] Chegou levado pela filha que achou estranho a desorientação em casa. Estava com saturação de oxigênio de 55% [o normal é entre 95% e 100%]. Não havia respirador disponível… Manejamos com o que tínhamos e fazendo medidas de conforto em paralelo. Ele faleceu após 3 horas, roxo por falta de ar, em frente à equipe. Caos para a saúde mental. Ninguém merece viver isso! Nem a pessoa doente nem o profissional que trabalha com o propósito de primar pela saúde das pessoas.
Não havia respirador disponível… Manejamos com o que tínhamos e fazendo medidas de conforto em paralelo. Ele faleceu após 3 horas, roxo por falta de ar, em frente à equipe
Eu e a colega de plantão ficamos sem chão, atendendo entre o choro mesmo. Tínhamos mais seis pacientes na sala e mais dois que em breve estariam em insuficiência respiratória. A gente segue, mas sente no corpo as consequências. A colega está com crises ansiosas. No dia seguinte apenas dormi, apaguei. Sonhei com aquilo — e pior, fica um pensamento persistente do que eu deveria ter feito, se nos esquecemos de algo… Cansa demais.
Ainda não surtei por algum motivo que só a bagagem de terapia e meditação devem explicar mais na frente. A situação realmente está ficando apertada. O cerco está fechando. A perspectiva é que seja uma grande catástrofe.”
‘Certo dia, falei pra uma mulher sobre a morte do marido e ela estava no meio da rua. Só ouvi a respiração dela ofegante e o barulho da cidade. Não tinha ninguém para abraçá-la’
‘Nunca vi tanta gente morrer ao mesmo tempo’ – Everton Abreu Lopes, 32 anos, médico clínico, trabalha em UTIs em Recife
“O meu dia inteiro é covid-19, do começo ao final, nos três hospitais em que trabalho. Em média, por dia, fico responsável por 30 pacientes em UTIs.
E eu garanto que o sistema de saúde de Pernambuco já está colapsado [a conversa com a reportagem da BBC News Brasil foi em 29 de abril]. Os números divulgados, que ficam entre 97% e 98% de taxa de ocupação, são completamente enganadores. Eu digo que é de 130%. O que está acontecendo é que muita gente fica represada nas UPAs, porque não tem transporte suficiente, não tem UTI.
E isso é uma das principais razões para alta de taxa de mortalidade no Estado. É determinante o momento em que o paciente chega à UTI. Os casos graves só chegam na minha mão muito tempo depois do que o necessário, quatro ou cinco dias. Eu não vejo o paciente no início do quadro, quando é possível fazer alguma intervenção mais bem-sucedida. Quando ele chega, já é tarde, muito difícil de reverter a situação.
Trabalho em UTI desde que me formei, por isso sou acostumado a ver gente morrer e dar notícias de morte, é minha rotina. Mas nunca vi tanta gente morrer ao mesmo tempo.
Eu trabalho em UTI desde que me formei, por isso sou acostumado a ver gente morrer e dar notícias de morte, é minha rotina. Mas nunca vi tanta gente morrer ao mesmo tempo. E o pior de tudo, para mim, é dar informação por telefone, já que os parentes não podem estar perto. Pessoalmente, é mais fácil criar empatia. A gente olha no olho, percebe as emoções, e até cria técnicas para conversar, fala pausado. Quando você dá a informação por telefone, as pessoas não estão preparadas. A gente não sabe onde a pessoa está, se tem alguém perto.
Certo dia, falei pra uma mulher sobre a morte do marido e ela estava no meio da rua. É muito angustiante não saber se ela ficou bem, só ouvi a respiração dela ofegante e o barulho da cidade. Não tinha ninguém para abraçá-la. Isso beira a frieza.
Eu nunca tive problemas para dormir, insônia. Mas, agora, não são poucas as vezes que acordo de madrugada, às 1h, 3h, sem conseguir mais fechar o olho.
‘Chego no plantão me perguntando para quantas famílias darei a terrível notícia de que não vão ver o parente nunca mais’ – Anésia Bezerra da Fonsêca, 31 anos, médica generalista de UTIs e UPAs em Recife
“Estou trabalhando 84 horas por semana. A gente sai de casa todo dia achando que vai ser ainda pior do que já tem sido. Colegas e técnicos de enfermagem estão nervosos, exaustos, cansados, por conta da carga de trabalho. Vemos o olhar assustado dos pacientes, que não sabem o que vai acontecer… Eles olham para o lado e veem alguém piorando, alguém que estava conversando há pouco tempo e que depois de alguns minutos precisou ser intubado. Às vezes testemunham mortes.
As famílias levam o paciente para a unidade e não sabem quando é que voltarão a vê-lo. Depois que entram para a unidade de covid, você não sabe quando que vai ver o paciente, muitas vezes você nunca mais vai ver.
“Paciente me disse: ‘Eu não aguento mais. Por favor, doutora, me intube’. Onde que você vê uma coisa dessas? Paciente pedindo para ser sedado, intubado e perder o controle sobre si”
Essa semana comuniquei alguns óbitos. A gente chega no plantão se perguntando: ‘Para quantas famílias eu vou ter que dar a terrível notícia de que aquela pessoa que ela já não vê alguns dias, não vai ver nunca mais?’
Teve um comunicado de óbito que a única coisa que a família conseguia dizer era ‘obrigado’
Em alguns casos, é preciso dar a notícia por telefone, e é terrível. Por mais que a gente tente ser o mais acolhedor, dizer as melhores palavras, fica aquele vazio da presença física, o olhar. É o ‘frio telefone’. Teve um comunicado de óbito que a única coisa que a família conseguia dizer era ‘obrigado’. Como é que pode ser assim? Eu estou dando a notícia de que o irmão daquela pessoa faleceu e ele está dizendo obrigado porque ‘pelo menos meu irmão teve uma chance aqui nessa UTI’.
Nas UPAs a gente pede vaga para um paciente que está estável e pode ir para a enfermaria, mas muitas vezes a demora de conseguir a vaga acaba com que ele piore e precise de leito de UTI. Daí é outra espera para leito de UTI. A gente fica ansioso, esperando que dê tudo certo e saia logo essa vaga. Muitas vezes não acontece, e eu já vi pacientes falecerem aguardando vaga na UTI.
Teve um paciente para quem fizemos tudo o que tinha que fazer na UPA e no fim ele disse: ‘Eu não aguento mais. Por favor, doutora, me intube’. Onde que você vê uma coisa dessas? Paciente pedindo para ser sedado, intubado e perder o controle sobre si.
Minha vida, assim como a de todo mundo, parou. Estou vivendo para trabalhar e trabalhando para viver. Me dispus a essa carga horária para poderem abrir mais leitos, mas vou diminuir porque isso realmente está me afetando. Às vezes, a gente tem que comunicar óbitos com maior frequência e não dá tempo nem de se recuperar.”
‘Sabe um funil? É assim. A quantidade de paciente que chega tem um volume muito grande, e a saída é pouquinha’
‘Vejo o povo na rua, não estão levando a sério, e há cada dia mais pessoas doentes’ – Médica generalista anônima, 32 anos, trabalha em UPA de Recife
“O volume de pacientes nas UPAs é muito mais alto do que a gente consegue dar saída. Quando começou toda essa história de pandemia, o Estado abriu leitos de enfermaria e UTI porque deve ficar bonito para a imprensa, mas não estruturou as UPAs, a porta de entrada, que é para onde o paciente corre, para atender a demanda. A UPA é um serviço que tem que ser temporário. O paciente tem que chegar, ser avaliado e transferido para outro serviço.
Mas demora mais de um dia para transferir pacientes internados na UPA. Não tem respirador e fonte de oxigênio suficiente para todos. A gente tem paciente que precisa de respirador, mas seguramos na fonte de oxigênio porque não tem respirador disponível.
Às vezes, a gente tem pacientes que estão precisando da fonte de oxigênio, mas ficam sem porque não tem suficiente. A equipe médica está muito desfalcada, há muita gente doente. Os plantões que deveriam ter quatro plantonistas, estamos segurando em dois.
Sabe um funil? É assim. A quantidade de paciente que chega tem um volume muito grande, e a saída é pouquinha.
Cada plantão é uma angústia muito grande. Fora o medo de ficar doente, se contaminar.
É uma doença que provoca sofrimento muito grande no paciente. Chegam cansados, precisam de oxigênio. Os que vão a óbito vão por insuficiência respiratória. É algo muito triste de se ver. É extremamente angustiante, a gente dá suporte, mas ficamos com muita sensação de impotência.
Não estou acompanhando mais notícias porque fico ansiosa. Vejo o povo na rua… Não estão levando a sério, e há cada dia mais pessoas doentes.”
Fonte: BBC Brasil
Créditos: BBC Brasil