Sem a perspectiva de imunizar toda a população de uma vez só, o Ministério da Saúde já discute critérios para priorizar determinados grupos numa eventual vacina contra a Covid-19 . Especialistas apontam que, para essa decisão ser tomada, é preciso considerar que pessoas com mais risco devem estar no começo da fila. Essa estratégia, porém, diverge da divulgada pelo governo nesta semana.
Segundo o secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Arnaldo Medeiros, o governo usará a mesma ordem de vacinação da gripe causada pelo vírus Influenza. No entanto, os grupos de risco das duas doenças não são completamente idênticos.
“É um absurdo as possíveis vacinas contra Sars-Cov-2 seguirem a mesma lógica de vacinação da Influenza. É um erro. Doenças diferentes requerem estratégias diferentes. Na estratégia contra Influenza, as crianças estão entre os grupos prioritários, o que é diferente da Covid-19”, avalia Fernando Hellmann, doutor em saúde coletiva e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina.
“Quando a vacina chegar, ela deve ser dada para que se restabeleça a igualdade de oportunidades em sobreviver à Covid-19 entre todos brasileiros. A gente sabe que ela mata mais a população idosa, doentes crônicos, indígenas, negros e pobres. E por isso eles devem ser a prioridade”.
A definição dos grupos prioritários para a vacinação da Influenza foi feita em 2010 para o combate da pandemia que surgiu em 2009 e atingiu o mundo numa escala muito menor do que a Covid-19.
“Para definir os grupos prioritários, reunimos um comitê de especialistas. Hoje tem projeto de lei para decidir essa ordem. Isso é um absurdo. É a demonstração da falta de liderança do Ministério da Saúde na pandemia. Essa é uma decisão do Executivo, amparado por cientistas”, afirma José Gomes Temporão, ministro da Saúde à época.
O projeto de lei que tramita no Congresso é do deputado Wolney Queiroz (PDT-PE), que pretende estabelecer procedimentos e ordem de prioridade para vacinação contra a Covid-19. A ordem de prioridade seria: profissionais da saúde; idosos com mais de 60 anos; pessoas com comorbidades; profissionais da educação; atendentes de público em órgãos públicos e empresas privadas; jornalistas; e, por fim, pessoas saudáveis de idade inferior a 60 anos.
Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, avalia que a classificação de grupos prioritários também deveria ser combinada com uma hierarquia de áreas em que as epidemias estejam fora de controle.
“Dependendo da disponibilidade da vacina, também será preciso determinar as regiões com mais transmissão e casos graves”, afirma o especialista.
Outro grupo que deverá receber logo na primeira leva são os voluntários que se disponibilizaram a testar a vacina e receberam placebo. Segundo Hellmann, isso faz parte dos compromissos éticos de qualquer pesquisa do tipo.
Escassez de recursos
A aposta do governo federal é a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, com a farmacêutica AstraZeneca. Ainda não há a confirmação de que ela protege contra o vírus. Caso seja comprovada sua eficácia no tempo planejado, a previsão é de que as primeiras 15 milhões das 100 milhões de doses sejam disponibilizadas em janeiro de 2021. Já o governo de São Paulo investe, através do Instituto Butantan, na tentativa de vacina da chinesa Sinovac. A distribuição de 120 milhões de doses também ficará a cargo do Ministério da Saúde.
“A escassez de vacinas é uma realidade mundial. Nenhuma estrutura fabril é capaz de construir o que precisa para imunizar todo mundo de uma vez só”, analisa Flávio Guimarães da Fonseca, virologista do Centro de Tecnologia de Vacinas (CT Vacinas) e pesquisador do Departamento de Microbiologia da UFMG.
Falta de recursos médicos não é novidade na rotina hospitalar. Nesta pandemia, o mundo se chocou com relatos de médicos italianos que precisavam escolher quem viveria e quem morreria, já que não havia respiradores para todos. No Brasil, estados como Amazonas e Ceará viveram situações semelhantes.
Na história mundial, um marco da bioética é a invenção da hemodiálise, nos EUA da década de 1960. Um comitê foi formado para decidir quem receberia primeiro esse tratamento.
“Quem cuidava da saúde também teria prioridade sobre pessoas fumantes, por exemplo, ou que não tinham práticas tão saudáveis”, lembra Hellmann, da UFSC. “A decisão de alocação de recursos é um problema que vários gestores no Brasil já precisam enfrentar por causa dos recursos escassos”.
“O debate de priorização de vacinas começou em 2003, com a epidemia da Sars, e se aprofundou em 2009 porque a demanda era bem maior que a oferta”, diz Alexandre Navarro, diretor assistente do Centro de História da Medicina da Universidade de Michigan.
“A partir dali, bioeticistas passaram a repensar estratégias para distribuição equitativa de vacinas para novas cepas de doenças durante grandes surtos — explica o pesquisador”.
Especialista em história das epidemias na Bahia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Christiane Maria Cruz de Souza conta que nem sempre as escolhas de grupos a serem vacinados no Brasil foram baseadas em critérios éticos.
“Entre o final do século XIX e o início do XX, a distribuição da vacina contra a varíola era limitada porque obedecia a determinados interesses de grupos. Os jornais da época denunciavam situações em que a pessoa encarregada de vacinar só vacinou as pessoas do seu círculo”, conta.
“Não havia produção em larga escala, como se vê hoje. Faltava também, em alguns lugares, médicos para fazê-lo, então a vacina era aplicada pelo ‘coronel’, ou pelo engenheiro, ou pela professora, enfim, pela pessoa mais graduada do lugar”.
A discussão de priorização dos grupos a receberem as vacinas já acontece em diversos partes do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o debate é feito no Comitê Consultivo para Práticas de Imunização, do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), e por especialistas em ética e vacinas da Academia Nacional de Medicina.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a OMS também está trabalhando em uma proposta com o Estados Membros.
Imunidade de rebanho
Com as 100 milhões de vacinas produzidas na primeira etapa, o Brasil não atinge a imunidade de rebanho, segundo Márcio Sommer Bittencourt, médico e pesquisador do Hospital Universitário da USP.
“Se precisar de duas doses, como parece ser o caso, essa quantidade imuniza perto de 50 milhões de pessoas (porque nem todos vão tomar as duas doses). Isso é um quarto da população. Não imagino que atingiremos a imunidade de rebanho nesse patamar, já que não sabem se quem pegou precisará tomar também”, explica.
Segundo ele, a quantidade de população imunizada para chegar a este patamar — e, assim, evitar grandes surtos — depende da eficácia da vacina.
“Algumas pessoas podem não desenvolver a resposta imunológica. Por exemplo, vacina de gripe é 50% eficaz. Ou seja, só metade dos que tomam criam resposta imunológica”, diz. “Mas, mesmo quando chegar a imunidade de rebanho, é preciso seguir vacinando até que todos estejam imunizados”.
Segundo o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, o país continuará produzindo vacina após as primeiras cem milhões de doses e, de acordo com ele, “existe a possibilidade concreta de que a população brasileira possa ser efetivamente vacinada.
Fonte: IG
Créditos: IG