A farmacêutica Maria da Penha, 71 anos, que dá nome à lei de combate à violência doméstica, disse que no início viu com bons olhos o projeto que busca mudar o texto da legislação. Depois, ao se inteirar, afirmou que se preocupa com a mudança “inconstitucional” e pede que o presidente Michel Temer (PMDB) vete parcialmente o projeto. Entidades do judiciário e de direitos humanos também pediram o veto.
O Senado aprovou, na última terça-feira (10), o projeto que altera a Lei Maria da Penha ao permitir que delegados concedam medidas protetivas de urgência a vítimas da violência doméstica. Atualmente, apenas os juízes podem definir as medidas.
“Eu me inteirei de que não pode haver confronto entre os poderes. E a questão da proteção tem que ser dada pelo poder judiciário. Então, eu estou realmente interessada de que essa polêmica seja resolvida, que o poder judiciário assuma seu papel, porque se houver uma mudança, com certeza vai prejudicar muitas mulheres. A lei vai ficar muito fragilizada”, disse.
Para Maria da Penha, pode haver o enfraquecimento da lei porque a defesa do autor do crime pode alegar inconstitucionalidade, por exemplo.
“Pode ser colocado pelo advogado que é inconstitucional aquela conduta. Porque a conduta é especifica do poder judiciário e é a polícia que está determinando essa punição”, afirma.
Maria da Penha defende que a aplicabilidade da lei seja aprimorada, não o texto. “Até hoje, tem tanta coisa para ser feita e eles estão pegando em um item que pode fragilizar a lei. Vamos dizer o seguinte: por que todos os municípios brasileiros não colocam políticas públicas para atender a mulher? Hoje, em dia, todas as capitais brasileiras têm seu centro de referência, a casa abrigo, a delegacia da mulher e o juizado, que são os alicerces de aplicação da lei. Mas os municípios próximos das capitais não têm ao menos o centro de referência da mulher”, exemplifica.
Ela, que esperou 19 anos e seis meses para ver seu agressor punido, quer investigações mais completas e rápidas e celeridade da Justiça.
“A gente quer é que a segurança pública consiga fazer os relatórios e boletins de ocorrência com mais rapidez para quando chegar ao juiz ele já esteja bem embasado. A polícia conseguiu enviar o relatório sobre o caso. Tempo para se dedicar à investigação. A polícia acata a denúncia, mas o inquérito policial não acompanha essa rapidez. É necessário que isso aconteça para dar condições que todas as etapas da Lei da Maria da Penha sejam cumpridas”, afirma.
“Se houver necessidade de mudança, que seja feita através das ONGs que criaram a lei. Junto com o poder judiciário, junto com juizado, com um consenso em geral, para que a lei não enfraqueça e nem seja considerada inconstitucional. Quando a lei foi sancionada, sugeriu-se a hipótese de que era inconstitucional dizendo que homem e mulher eram iguais perante a lei. Até hoje, sabemos que quando a mulher é recebida por homens, as mulheres são debochadas, são aconselhadas a não denunciar porque existe o machismo interferindo nessa situação”, completa.
Mudanças sugeridas no projeto
Segundo o projeto, a medida concedida pelo delegado só será admitida em caso de risco real ou iminente à vida ou à integridade física e psicológica da mulher e de seus dependentes. A proposta prevê ainda o direito a atendimento policial especializado e ininterrupto, realizado preferencialmente por profissionais do sexo feminino.
O deputado Sergio Vidigal (PDT-ES), autor do texto, diz que o objetivo do projeto é dar agilidade na aplicação das medidas protetivas diante do aumento da violência contra a mulher.
“Há centenas de mulheres que, ao aguardar as medidas protetivas, foram violadas e assassinadas. Não adianta ter lei moderna, ter que ser aplicada”, disse.
Para Vidigal, o judiciário é muito lento. O parlamentar lembra que o texto está sendo discutido há mais de um ano e que passou por diversas comissões. “Deveriam [Judiciário] ter interferido antes”, disse.
O deputado defende que o delegado está mais perto da vítima e que o juiz pode demorar muito. “Nós queremos reduzir o índice de violência contra a mulher. Que designem um juiz de plantão, então”, afirmou.
Entidades pedem veto a Temer
ONGs e o Judiciário se manifestaram contrários ao projeto de lei e pedem o veto parcial de Temer.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), entidade que congrega mais de 16 mil membros dos ministérios públicos dos Estados, Distrito Federal e Territórios e Militar, divulgou nota pedindo o veto parcial do projeto de lei, especificamente sobre o delegado poder aplicar medidas protetivas.
“É, portanto, flagrantemente inconstitucional que a restrição de direitos fundamentais sensíveis seja transferida da esfera judicial para a esfera policial, ao argumento simplório de que o Poder Judiciário seria lento ou omisso. Este PLC 07/2016 apenas aparentemente traz um avanço, que se inicia com propostas legítimas e com discurso de proteção às mulheres, mas, subrepticiamente, desfigura o sistema processual de proteção aos direitos fundamentais […] Assim, além da inconstitucionalidade do dispositivo supracitado, pelas razões acima expostas, é de se considerar ainda que a matéria contraria ao interesse público, na medida em que desatende aos anseios das principais destinatárias da norma, as mulheres vítimas de violência doméstica familiar”, dizem trechos da nota encaminhada ao presidente.
O Fórum Nacional de Juízes de violência doméstica e familiar contra a mulher (Fonavid) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) também se manifestaram contrariamene ao projeto de lei, “uma vez que o referido dispositivo do projeto viola frontalmente a Constituição Federal”.
Para o Instituto Patrícia Galvão, “em vez de ampliar a proteção às mulheres em situação de violência, a proposta pode aumentar a vulnerabilidade e colocar em risco a integridade emocional, física e a própria vida dessas mulheres. É amplamente sabido que as unidades policiais não dispõem de estrutura e de agentes capacitados que garantam a apreciação e encaminhamento adequados dos pedidos de medida protetiva de urgência”.
O promotor Thiago Pierobom, titular da 3ª Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher em Situação de Violência Doméstica de Brasília e coordenador do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do MPDFT, afirmou que “quem não conhece o sistema de Justiça pensa que é algo positivo”. Segundo ele, “a mulher vai à delegacia, registra a ocorrência e já sai com a medida de proteção de urgência. Mas na prática não vai ser dessa forma. Não basta ter um papel na mão. É essencial que essa decisão seja comunicada ao agressor. Então, o que vai acontecer na prática, é que a polícia vai ter que parar o seu trabalho de polícia, que é realizar a investigação criminal, para cumprir mandados de intimação ao agressor. O problema que temos hoje no sistema de Justiça é que a polícia não está conseguindo cumprir a função de fazer investigação criminal. O que em um primeiro momento parece ser uma maior proteção, a médio e longo prazo vai se transformar em impunidade”.
Pierobom afirmou ainda que “o grande receio que nós temos é que já foi uma luta histórica constituir a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Inclusive, essa proposta dos delegados foi trazida em 2005 quando estavam construindo a Lei Maria da Penha. E naquela época, o movimento de mulheres recusou essa possibilidade porque sabia que era inconstitucional. Se eu coloco uma norma inconstitucional dentro da lei, daqui alguns meses, o STF vai considerar inconstitucional essa norma. Isso a médio prazo tem o sério risco de enfraquecer a Lei Maria da Penha”.
Segundo Leila Linhares Barsted, diretora da Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia) e uma das redatoras do texto da Lei Maria da Penha, “o projeto não foi discutido com o movimento de mulheres, foi debatido a portas fechadas. Todo grupo que discutiu a Lei Maria da Penha, e que vem há anos defendendo a implementação dessa lei, sequer foi chamado para essa discussão”.
“A lei dá à polícia [prerrogativas] que estão constitucionalmente previstas para o Poder Judiciário. A outra questão é que ao receber a medida protetiva na polícia, na sede policial, a mulher deixa de ter acesso às instituições da Justiça, basicamente à Defensoria Pública e o Judiciário. Já existem muitas experiências, aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, sabendo que há um risco de vida para a mulher, imediatamente contata o Poder Judiciário e em poucas horas pode dar essa medida protetiva”, completou ela.
Ainda de acordo com Leila, há várias propostas que buscam “descaracterizar a Lei Maria da Penha, todas elas com perspectivas de esvaziar a sua amplidão e, inclusive, a questão de gênero que a lei incorpora”.
Medidas protetivas
As medidas protetivas podem ser o afastamento do agressor do lar ou local de convivência com a vítima, a fixação de limite mínimo de distância que o agressor deve manter em relação à vítima e a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, se for o caso.
O agressor também pode ser proibido de entrar em contato com a vítima, seus familiares e testemunhas por qualquer meio ou, ainda, deverá obedecer à restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço militar. Outra medida que pode ser aplicada pelo juiz em proteção à mulher vítima de violência é a obrigação de o agressor pagar pensão alimentícia provisional ou alimentos provisórios.
“Essa norma específica é inconstitucional: regras estabelecem claramente que restrições relacionadas ao domicílio de uma pessoa ou à liberdade de uma pessoa só podem ser feitas mediante decisão judicial. A polícia não pode violar o local que a pessoa mora e nem restringir a liberdade de uma pessoa. E as medidas protetivas de urgência, elas acabam carregando um forte caráter de restrição. Tanto o local onde a pessoa mora, porque a pessoa tem que sair de casa, e a liberdade, porque restringe a liberdade da pessoa especialmente não se aproximando da mulher vítima de violência doméstica. Portanto, dar poderes jurisdicionais à polícia retirando do Poder Judiciário é uma medida que é inconstitucional”, diz Pierobom, do Núcleo de Gênero Pró-Mulher do MPDFT.
Fonte: G1