Para especialistas, protagonismo da interferência da Justiça na política teria começado no STF, que cobre vazio deixado pelo Legislativo
A figura do super-herói de capa salvando a população do mal aos poucos vai conquistando magistrados, além de membros da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MP). Intencionalmente ou não, nos últimos anos sentenças e investigações alcançaram políticos importantes do Executivo e do Legislativo e já quase não há mais quem acredite que o Judiciário vá ser apenas um observador das eleições deste ano.
Para especialistas, esse processo de interferência do Judiciário na política começou há mais tempo e se consolidou em 2018. O mais recente exemplo é o caso do habeas corpus “ioiô” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que gerou um embate de togas envolvendo o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), a Justiça Federal no Paraná e o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Numa análise que considera desde o currículo do desembargador Rogério Favreto, que foi filiado ao PT por quase 20 anos, até a forma como os magistrados Sérgio Moro e João Pedro Gebran Neto atuaram para impedir a soltura de Lula da cadeia da PF no Paraná, especialistas deixam claro que todos os envolvidos cometeram erros, desrespeitando o processo legal.
Os possíveis excessos de magistrados são criticados pelo jurista Ives Gandra Martins. Para ele, quando juízes extrapolam o que está escrito na lei, o resultado sempre será político. “Há duas correntes no Judiciário. Uma é a de que eu faço parte, do poder negativo, que afirma que o Judiciário não pode legislar, apenas cumprir o que está na lei”, afirma. “Há ainda a dos neoconstitucionalistas, que acreditam que, nas omissões do Legislativo, o Judiciário pode e deve legislar. Se vão suprir as funções do Congresso, é claro que haverá um ato político.”
A batalha no TRF-4 terminou com Lula ainda preso e os três magistrados tendo que prestar esclarecimentos ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O caso foi visto como um reflexo do que ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF), onde ministros batem boca e decidem de forma monocrática sobre temas já discutidos em plenário, como a prisão em segunda instância.
Eduardo Grin, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas, aponta que foi no próprio STF que começou esse protagonismo do Judiciário. “Desde 2004 temos um processo avançado de delegação de responsabilidades. O Legislativo, que deveria legislar, não o faz e deixa para o Judiciário fazer. Na política não existe vazio, porque sempre alguém ocupa esse espaço”, diz o professor. “Nos últimos anos o STF decidiu sobre assuntos que vão de pesquisas sobre células-tronco ao casamento de pessoas do mesmo sexo. O poder deles foi crescendo, e hoje não temos apenas um Supremo, temos 11”, afirma.
Grin ainda cita as operações de investigação da PF e do MP que ocupam manchetes de jornais. Para ele, o discurso de que a política é feita de corruptos acaba dando espaço para figuras vistas como salvadores da pátria em vez de políticos com propostas concretas.
“É comum ver promotores e delegados falando da política como algo ruim. A população entende que aspectos morais vão superar os problemas do país, e a consequência disso é o surgimento de candidatos sem qualquer tipo de preparo, que ganham simpatizantes com um simples discurso contra a corrupção. É uma ideia salvacionista, o Brasil passou por algo semelhante com o tenentismo [nos anos 1920 e 1930] e o udenismo de 1950”, explica Grin.
Um Poder com um pé na política
Dos atuais 11 ministros do STF, apenas dois têm carreira na magistratura. No STJ e nos tribunais regionais federais, o número de magistrados de carreira é um pouco maior que 50%. Ao contrário dos outros tribunais, que têm regras mais claras sobre nomeação de ministros, a Constituição exige apenas que o ministro a ser indicado ao Supremo tenha “notório saber jurídico”. Para críticos, essa liberdade de nomeação pode ser usada para presidentes indicarem juízes próximos a partidos políticos.
“O Brasil copiou o modelo americano de nomeação de ministros para o STF. O que defendo é que essa decisão seja feita por operadores do Direito, como o Conselho Federal da Ordem, o MP e tribunais superiores, que passariam uma lista tríplice para o presidente decidir”, sugere Gandra Martins.
Procedimento similar de lista tríplice com posterior escolha do presidente existe para o mandato de procurador-geral da República. Além disso, os candidatos necessariamente devem ser de carreira do Ministério Público.
Na Câmara, há 21 projetos de emenda à Constituição, e no Senado, outros dez em tramitação com propostas para mudar a forma de nomeação de ministros do STF. Alguns estipulam até um prazo de dez anos para o “mandato” do magistrado. Grin discorda do modelo proposto.
“Não acho que vá ajudar estipular um prazo curto no STF. Um ministro pode atuar de forma diferente justamente porque sabe que tem data de validade. O que deve mudar é o que chega ao nosso Supremo”, diz o cientista político. “Nos EUA, a Suprema Corte é constitucional. No Brasil, além de constitucional, é também última instância recursal, então já se espera que casos relacionados a políticos sejam decididos no STF.”
Dos tribunais para as urnas
A atuação do Judiciário pode ser indireta, com decisões e operações; ou direta, com a candidatura de algumas figuras nacionalmente conhecidas após grande exposição na mídia. Delegados da PF já iniciaram um movimento batizado de “bancada da Lava Jato”, com 13 candidatos para o pleito de outubro.
Outro exemplo que quase se concretizou este ano foi a candidatura de Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF, para a Presidência. Bastante conhecido por causa do julgamento do mensalão, Barbosa se aposentou do STF em 2014.
Em outubro de 2016, um juiz do interior do estado do Pará foi punido pelo CNJ com aposentadoria compulsória. Entre outras irregularidades, o juiz foi acusado de praticar “atividade político-partidária”.
Desde 2004, quando foi criado, o CNJ puniu cerca de cem magistrados. O caso paraense é o único a relacionar a atividade de um magistrado à política, algo proibido e passível de perda de cargo de acordo com a Lei Orgânica da Magistratura (Loman). Como os processos são sigilosos, a busca se limita a notas no site do CNJ e matérias publicadas na imprensa brasileira.
Mesmo com a proibição, há um movimento de magistrados que pretende lançar candidatura nas próximas eleições. A estratégia é usar candidaturas avulsas, sem filiação partidária, para driblar a limitação do Judiciário. No entanto, candidaturas avulsas também são proibidas pela reforma eleitoral de 2017. Casos de magistrados que conseguiram liminar em primeira instância federal para disputar a eleição este ano ainda devem ser julgados em tribunais superiores.
“O conflito só existe quando há ligação partidária. Países como Itália, Espanha e França admitem candidaturas de juízes. Nós vamos para essa guerra e teremos, sim, juízes candidatos”, afirma o juiz Federal Eduardo Cubas, presidente da União dos Juízes Federais do Brasil (Unajuf). Segundo Cubas, a entidade conta com mais de cem juízes federais cadastrados.
Ministros do Supremo, como Gilmar Mendes, já declararam publicamente que, para se candidatar, o magistrado precisa pedir demissão do cargo. Em nota, a assessoria do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou que candidaturas avulsas são proibidas até que o STF decida sobre o caso.
Fonte: Carta Capital
Créditos: Carta Capital