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Pesquisa revela que 69% de infratores graves voltam às ruas em 6 meses

Estudo mostra ainda que apenas 24% dos adolescentes chegam a ficar um ano inteiro internados

A estudante Ana Beatriz Frade tinha 17 anos quando foi baleada e morta durante um arrastão num dos acessos à Linha Amarela. A tragédia que abalou o Rio — a menina estava no carro do padrasto, a caminho do aeroporto, para buscar a mãe, que chegava de viagem — completou um ano no último mês. Também em maio, a vida de cinco dos seis envolvidos no crime mudou. Quatro deles, maiores de idade, foram condenados a mais de 20 anos de prisão, em regime fechado, pelo latrocínio. Um dos adolescentes que participou da ação continua internado, mas o outro, que fez 18 anos, ganhou direito à semiliberdade. Isso significa que ele poderá sair durante o dia para estudar, fazer cursos ou trabalhar. Terá apenas que se apresentar espontaneamente a um Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente (Criaad) e dormir na unidade. O caso do jovem, que ganhou o benefício 12 meses após ser detido, não é exceção. Com uma média de dez mil apreensões por ano e apenas mil vagas nas oito unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), o tempo que os infratores passam cumprindo medidas socioeducativas tem sido cada vez menor.

Enquanto a Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) do Senado acaba de aprovar o projeto de lei que estende para oito anos o prazo máximo de internação em casos de crimes graves, hoje nem mesmo o período de três anos de internação estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é praticado no estado. Levantamento feito pelas Promotorias de Execução de Medidas Socioeducativas do Ministério Público estadual, com base em dados da capital, de fevereiro passado, revela que, em 69% dos casos, os infratores saem em até seis meses.

CASO JAIME GOLD FORAGIDO

O tempo médio de internação é de 5,2 meses. O estudo mostra ainda que apenas 24% dos adolescentes chegam a ficar um ano inteiro internados. Ninguém fica mais do que dois anos e meio. Mesmo em casos de latrocínio ou homicídio, o tempo médio de internação na capital é de 8,4 meses. Um dos adolescentes envolvidos no brutal assassinato do médico Jaime Gold, morto a facadas em maio de 2015, na Lagoa, recebeu o benefício em março passado, um ano e nove meses após ser internado. Ao voltar às ruas, o jovem jamais pisou no centro de atendimento e já é considerado foragido. Por causa do episódio, um outro adolescente que participou da morte de Gold, e que tinha parecer favorável do Degase para também ganhar a semiliberdade, teve a progressão adiada.

A evasão também é frequente. Uma equipe do GLOBO levantou a situação de 12 casos graves envolvendo latrocínio, homicídio, tráfico e roubo com violência que receberam progressão de medida. Dos nove jovens que receberam a semiliberdade, apenas quatro estão ainda cumprindo medida. Os outros cinco já são considerados foragidos. Entre eles, está um dos adolescentes envolvidos no assassinato brutal do médico Jaime Gold, morto a facadas em maio de 2015, na Lagoa. O adolescente recebeu o benefício em março passado, um ano e nove meses após ser internado. Ao voltar às ruas, ele jamais pisou no centro de atendimento e já é considerado foragido.

Outro caso de benefício que resultou em fuga foi o do menor envolvido na tentativa de linchamento de José Francisco Costa Vieira, de 34 anos. No ano passado, no dia de seu aniversário, ele foi atacado por cinco rapazes que o cercaram a caminho de casa, em Curicica, e, num ataque homofóbico, o agrediram a pauladas, socos e pontapés. José Francisco levou três meses para se recuperar. Internado em dezembro por decisão judicial, um de seus algozes ganhou a semiliberdade em abril.

— Tive afundamento de crânio, perdi o olfato, quebrei o braço. Cinco meses depois, vi uma foto deles postada no Facebook, em uma comemoração numa lanchonete. Eles escreveram “as crias estão soltas” — contou José Francisco.

A procuradora Flávia Ferrer, que atua nos processos em segunda instância explica que os foragidos também só são recapturados quando flagrados cometendo outros crimes. Segundo ela, a Lei 12.594, de 2012, que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) impossibilita que o juiz que examina o processo e ouve as partes possa estipular o prazo de cumprimento da medida:

— A lei do Sinase (regulamenta a execução das medidas socioeducativas) determina que a internação seja reavaliada em, no máximo, seis meses. E essa lei tem um dispositivo que diz expressamente que o juiz não pode considerar nem a gravidade do ato que o adolescente praticou nem os antecedentes. A gravidade, os antecedentes e o tempo não são fatores que possam impedir a progressão da medida.

O levantamento do Ministério Público estadual, feito com base em casos de 820 adolescentes que cumpriam medidas de internação em fevereiro, revelou ainda que não há situações envolvendo crimes leves nas unidades de regime fechado. Em 54% dos casos, os internados respondem por crimes de roubo majorado (com violência), e outros 30%, por tráfico.

De acordo com a pesquisa do MP, no caso de roubo qualificado, a média de tempo de internação é de 4,6 meses. E é essa é a previsão de internação para um jovem de 16 anos, que teve seu crime julgado na última quarta-feira, até que ele consiga algum benefício. Ele participou de um bonde do tráfico em abril do ano passado, em Cascadura e Vila Isabel. A sala de audiências do Juizado da Infância e da Juventude ficou pequena para receber 22 das dezenas de vítimas do processo. Com fuzis e pistolas, usando dois carros e duas motos roubadas, ele era parte de um bando que atacou pelo menos dois bares em Vila Isabel. Uma das vítimas foi esfaqueada.

— Um deles pegou meu celular no bolso da minha calça e, quando já estava saindo, enfiou uma faca na minha perna — contou uma das testemunhas do processo.

Outra vítima relata o susto que levou com a abordagem:

— Estava levando minha mulher que passava mal para o hospital, quando vi duas motos caídas na rua e pensei que se tratasse de um acidente. Quando diminui a velocidade, eles vieram para cima com fuzis. Ficamos no meio da rua, sem os celulares, sem carro, sem documentos. Foi um trauma tão grande que minha mulher passou um tempo que não queria mais sequer sair de casa. Passou a sofrer de pânico. É um absurdo que eles possam ficar em liberdade tão rapidamente.

Para promotores que atuam no Juizado da Infância e da Juventude — responsável pelos processos de jovens em conflito com a lei — a situação pode agravar ainda mais. Para acabar com a superlotação nas unidades do Degase — hoje 1.913 internos ocupam 986 vagas, a juíza Lúcia Glioche, responsável pela execução das medidas socioeducativas, homologou acordo firmado entre a Tutela Coletiva do MP, a Defensoria Pública e o estado para a criação da Central de Vagas, que institui uma fila de espera para o cumprimento de medidas de internação e semiliberdade, que deveria entrar em vigor a partir deste mês. A Promotoria da Infância e da Juventude recorreu à justiça, conseguindo a suspensão da medida.

— A Central de Vagas apenas humaniza a internação. Hoje, com a superlotação, o adolescente não é sequer ouvido por técnicos que permitam que a reflexão sobre o ato praticado ocorra. A família não é acolhida. Ele não estuda. Não sai do alojamento para refeições, beber água, nada. É um confinamento, no qual a atividade praticada é a “troca de experiências”. Os agentes e profissionais que trabalham na unidade estão apenas preocupados com a segurança e os riscos que o excesso de jovens causa. A Central de Vagas visa a humanizar a internação. Há juizes que ainda internam por fatos que não são roubo, homicídio e latrocínio. Na hora da execução, esses adolescentes superlotam a unidade — defende Lúcia Glioche.

A titular do Juizado da Infância e da Juventude, juíza Vanessa Cavalieri, discorda:

— Essa medida não vai solucionar nenhum dos problemas que temos hoje no sistema e vai agravar ainda mais a situação. Em 2006, quando foram apreendidos em flagrante 1.800 adolescentes infratores, o estado se comprometeu a construir novas vagas de internação, através de um termo de ajustamento de conduta celebrado com o Ministério Público. Nada foi feito pelo estado, e em 2016 foram apreendidos dez mil adolescentes infratores.

Segundo Cavalieri, com a Central de Vagas, o estado se isentará de qualquer obrigação:

— Não precisa mais criar nenhuma vaga. Os adolescentes que precisam ser internados não serão internados em sua totalidade. Eles vão ficar livres, inclusive para cometer novos atos infracionais, colocando em risco a vida da população e, o mais grave, sem receber qualquer tratamento do estado.

Para a Coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública, Maria Carmen de Sá, no entanto, a Central de Vagas irá melhorar a situação:

— A central permite que quem tem que estar internado fique o tempo necessário, recebendo uma intervenção socioeducativa adequada para ele. E tira das unidades os adolescentes que deveriam cumprir medida em meio aberto, como determina a lei. Como está hoje, o adolescente que cometeu um ato grave não recebe nenhum atendimento e acaba saindo da unidade de internação antes do que deveria devido à superlotação. E, mesmo os que cometeram infrações menos graves, saem ainda mais violentos. Estamos criando monstros.

O procurador de Justiça Márcio Mothé, que trabalhou durante 15 anos à frente da Promotoria da 2ª Vara da Infância e da Juventude, garante que nada mudou:

— As unidades são quase as mesmas, com total falta de vagas, apesar da evidente escalada da violência. O estado tem que construir novas unidades, e não criar filas e pontuação para dificultar a internação. Imagina um juiz num plantão atendendo um doente cardíaco, em vez de obrigar o plano e o hospital a realizar uma cirurgia de emergência, colocar o infartado na fila, atribuindo pontuação para a sua doença? É surreal. Já passou da hora de o estado assumir a sua responsabilidade. A população não pode ser punida pela omissão dos governantes.

Fonte: O Globo