Meia verdade?

O erro do PT foi ter insistido na verdade: Por Cláudio Oliveira

Desde o resultado das últimas eleições presidenciais com a vitória de Jair Bolsonaro, muitas tentativas de entender o cenário político atual foram feitas.

Desde o resultado das últimas eleições presidenciais com a vitória de Jair Bolsonaro, muitas tentativas de entender o cenário político atual foram feitas. Estranhamente, em sua maioria, essas tentativas são esforços que visam entender mais a derrota do PT do que a vitória de Jair Bolsonaro. O que já é um dado bastante significativo. Em outras palavras, como se o objetivo fundamental das últimas eleições não tivesse sido eleger Bolsonaro ou quem quer que seja, mas derrotar o PT. Venceu o antipetismo. O que quer dizer que no cenário político atual só existe uma configuração política positiva, o petismo. Todas as outras não têm uma configuração própria. Só se definem negativamente em relação ao petismo.

Antes de abordar propriamente esse aspecto da questão, gostaria, no entanto, de chamar atenção para o fato de que, nessa oposição, há um único indivíduo, Jair Bolsonaro, contra um partido político, o PT. Nenhum analista político ousou falar de uma vitória do PSL sobre o PT, o que, obviamente, não foi o caso. Mas certamente isso teria sido formulado dessa maneira se, por exemplo, tivesse ocorrido uma vitória de Geraldo Alckmin. Nesse caso, sem dúvida alguma, todas as análises teriam falado de uma vitória do PSDB sobre o PT, e estaríamos num regime político normal de sucessão partidária. Há, portanto, na vitória de Jair Bolsonaro contra o PT algo além de uma simples vitória do candidato de um partido sobre o candidato de outro partido. Ao vencer as últimas eleições presidenciais, Jair Bolsonaro não derrotou apenas Fernando Haddad, o outro candidato. Derrotou, sobretudo, o PT. Com que estranho fenômeno estamos lidando aqui?

Talvez possamos dizer que, sob certo aspecto, algo semelhante se passou, tomadas as devidas proporções, com as últimas eleições presidenciais estadunidenses, nas quais a vitória de Donald Trump representou muito mais a vitória de um indivíduo do que propriamente a vitória de um partido. O fato que foi destacado em toda a imprensa internacional foi menos a vitória do Partido Republicano e muito mais a vitória de Donald Trump. A vitória do Partido Republicano não teria causado nenhum escândalo. A vitória de Trump é um escândalo até hoje para os próprios americanos. Já durante a campanha presidencial, alguns políticos do Partido Republicano americano, de modo inédito, teriam negado apoio ao então candidato. Trump já tinha tentado receber a nomeação presidencial do Partido Reformista em 2000, mas retirou-se antes do início da votação. Foi só em junho de 2015 que anunciou sua candidatura para a presidência como um republicano. Em maio de 2016, todos os seus rivais republicanos haviam suspendido suas campanhas. Em julho de 2016, Trump foi formalmente nomeado candidato a presidente na Convenção Nacional Republicana. Mas sua vitória significou bem mais do que uma volta do Partido Republicano à Presidência dos Estados Unidos.

Aqui, creio, já temos um primeiro ponto a ser destacado: na política atual, figuras individuais se lançam em disputas eleitorais sem uma inserção político-partidária muito clara. É o caso de Trump, que não pode ser considerado um político republicano tradicional.

Algo semelhante aconteceu também nas últimas eleições presidenciais francesas, em que Emmanuel Macron anunciou oficialmente sua candidatura em novembro de 2016, poucos meses após fundar seu próprio partido político, o Em Marcha! Antes disso, Macron tinha tido apenas uma breve passagem como membro do Partido Socialista francês, entre 2006 e 2009, e participado dos governos de François Hollande, em 2012, e de Manuel Valls, em 2014. Após a eleição de Emmanuel Macron como presidente da república, o Em Marcha!, na ocasião das eleições legislativas de junho de 2017, elegeu a maioria dos deputados franceses, assim como, entre nós, o PSL de Jair Bolsonaro elegeu a segunda maior bancada na Câmara dos Deputados.

Bolsonaro foi anunciado como pré-candidato à Presidência do Brasil em março de 2016 pelo Partido Social Cristão. Em janeiro de 2018, no entanto, anunciou sua filiação ao Partido Social Liberal, o nono partido político de sua carreira desde que foi eleito vereador em 1988.

Como não há comparação possível entre o Partido Republicano e o minúsculo PSL, no momento em que Bolsonaro se filiou ao partido, talvez a figura no Brasil que mais corresponda a Donald Trump seja João Doria, que, em março de 2016, venceu as prévias do PSDB, um partido tradicional, para ser o candidato à prefeitura de São Paulo nas eleições municipais de 2016, as quais venceu no primeiro turno, mesmo sem nunca ter participado antes de um processo eleitoral. Depois de dois anos como prefeito, renunciou ao cargo para se lançar candidato ao governo do Estado, após ter flertado com a possibilidade de uma candidatura à presidência. Venceu a disputa no segundo turno contra Márcio França, do Partido Socialista Brasileiro, mas encontra resistências até hoje, como Trump no Partido Republicano dos Estados Unidos, dentro do próprio PSDB.

Também sob esse aspecto, a figura de Ciro Gomes, por mais afastado que seja ideologicamente dos exemplos anteriormente citados, faria parte desse grupo de candidaturas mais individuais do que partidárias, já que o político cearense jamais se identificou claramente com nenhum partido político, nem tenha participado de nenhum movimento social, sendo sempre uma figura que escolhe (ou é escolhido por) uma legenda de ocasião para lançar-se a uma candidatura.

Ciro foi deputado estadual pelo PDS (atual Democratas), prefeito de Fortaleza pelo PMDB, governador do Ceará pelo PSDB. Filiou-se, em 1997, ao recém-criado PPS (antigo Partido Comunista Brasileiro), para concorrer à Presidência da República em 1998. Em 2002, disputou novamente as eleições presidenciais pelo PPS. Em outubro de 2006, foi candidato a deputado federal pelo PSB, tendo sido eleito como o deputado proporcionalmente mais votado do Brasil. Em 16 de setembro de 2015, após breve passagem pelo Partido Republicano da Ordem Social (PROS), filiou-se ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), pelo qual concorreu às últimas eleições presidenciais.

O percurso de Marina Silva, desde sua saída do PT, tem tido o mesmo sentido. Ela saiu de uma experiência política fundamentalmente partidária para apostar num percurso individual, que passou por candidaturas pelo PV, pelo PSB, até, como Macron, criar seu próprio partido, tendo, no entanto, menos sucesso que o político francês (embora tenha chegado bem perto da vitória nas eleições de 2014). Pouco tempo após a criação da REDE, vários políticos que participaram de sua fundação se desvincularam do partido com críticas ao personalismo de Marina Silva na condução das decisões partidárias.

Trump, Macron, Bolsonaro, Doria, Ciro, Marina, por mais distantes que estejam entre si do ponto de vista político-ideológico, representam o avanço de uma política feita por indivíduos que se utilizam de uma estrutura partidária de ocasião para se lançar em disputas eleitorais. Há aqui a ideia de uma relação direta, não mediada por partidos políticos, com os eleitores, mesmo que, formalmente, todos esses candidatos tenham que estar filiados a um partido político para participar de um processo eleitoral. Digamos que, no caso deles, pouco importa o partido. O eleitor está votando exclusivamente no indivíduo, que se apresenta como uma solução individual para os problemas da população, a partir de seus méritos próprios e não de sua atividade como político partidário.

O que está em jogo aqui não é sem relações com um tema já clássico do nosso tempo: a crise da representação política. Mas também com um outro aparentemente mais recente: a criminalização da política através de escândalos de corrupção. São dois aspectos de origens diferentes mas com o mesmo objetivo e interesse: gerar no eleitor uma desconfiança em relação aos políticos e aos partidos políticos.

A crise da representação política tem a ver com a crise da própria democracia. É evidente, para muitos, que os processos eleitorais democráticos não são muito democráticos, na medida em que aqueles que concorrem, os candidatos, não chegam ao processo eleitoral em condições de igualdade para a disputa. Há, no próprio processo eleitoral, a reprodução dos privilégios e desigualdades que constituem a sociedade em que se dão esses processos eleitorais. Em outras palavras, não existe efetiva democracia política onde não há democracia econômica. Aqueles que têm a preferência da mídia e dos setores empresariais terão um maior apoio, financeiro e midiático, no convencimento dos eleitores, que se deixam mais facilmente seduzir por esse convencimento. Os parlamentos, embora eleitos pela população como um todo, representam em sua maioria interesses não da população como um todo, pela qual foram eleitos, mas dos empresários que os apoiaram em sua campanhas, aí incluídos os empresários da mídia e das igrejas evangélicas (que, no caso, por exemplo, da Rede Record, são a mesma coisa).

A proibição do financiamento empresarial de campanhas, que já passou a valer, no Brasil, nessas últimas eleições, não alterou esse quadro, já que, embora empresas não possam mais financiar campanhas eleitorais, os empresários continuam podendo fazer doações individuais, respeitados determinados limites. Os candidatos mais ricos, além disso, continuam podendo financiar as próprias campanhas, o que já gera de cara uma vantagem para os mais ricos. Não é, portanto, um acaso se o maior número de deputados eleitos na última eleição, como nas anteriores, sejam empresários. Mesmo com a proibição do financiamento empresarial das campanhas eleitorais, o Congresso eleito nessas últimas eleições é majoritariamente representante dos interesses dos empresários (aí incluídos os empresários das mídias e das igrejas evangélicas).

Quanto à criminalização da política, é um fenômeno produzido por uma certa aliança entre a mídia oligopólica e conservadora dos grandes meios de comunicação representando os interesses da elite econômica e o Poder Judiciário (Ministério Público, Polícia Federal, STF, tribunais superiores, juízes de primeira instância etc). Os representantes das instâncias do Judiciário atuam como classe, num processo que já foi muito bem descrito pelo sociólogo Jessé Souza. Há uma tentativa de criar a ideia de que o grande problema do Brasil é a corrupção dos governos e da classe política, enquanto uma investigação simples mostra que a grande corrupção, aquela que tira realmente dinheiro da população, acontece no mundo dos empresários e da iniciativa privada.

Sempre houve corrupção na política, mas a criminalização recente da política começa, no Brasil, com o escândalo do mensalão. Ela é, na verdade, o retorno de uma estratégia que já tinha acontecido antes, com Getúlio e Juscelino. Todo avanço da esquerda no Brasil gera necessariamente o fenômeno da criminalização da política, que é sempre, óbvio, uma criminalização dos políticos de esquerda como último recurso para deter um movimento de chegada ao poder da esquerda por meio do voto. E quando essa criminalização não é suficiente, ocorrem golpes de estado, como o de Jango em 1964, e o de Dilma Rousseff em 2016.

No caso do golpe de 2016, como não foi um golpe militar e não gerou uma ditadura, foi necessário dar continuidade à criminalização da política com a acusação, julgamento e prisão do ex-presidente Lula, notório favorito à eleição para presidente em todas as sondagens. O fenômeno ainda está em marcha. A criminalização da política é na verdade a criminalização do PT. É o único modo que restou às classes dominantes de deter o partido e o processo de transformação das relações sociais que este introduziu nos três mandatos consecutivos na presidência do país. Nesse processo, no entanto, mesmo partidos tradicionais da direita e da centro-direita foram atingidos (foi o preço a pagar), dando margem ao aparecimento e vitória de uma ultra-direita descolada da política tradicional e sem lugar nos partidos tradicionais, o que permitiu o surgimento de uma candidatura como a de Jair Bolsonaro. A tentativa de destruir o PT acabou respingando em quadros de outros partidos: PMDB e PSDB foram os mais atingidos. Do PSDB, só sobrou João Doria, exatamente a parte do PSDB que se identifica com o fenômeno Bolsonaro, e que atua contra a política, enaltecendo o indivíduo empreendedor. Doria é o paradigma do empresário no poder.

Para pôr fim ao extermínio de jovens negros e conter o avanço de Bolsonaros (Arte Andreia Freire)
A vitória de Jair Bolsonaro é a vitória de um indivíduo contra um partido (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Mas voltando ao meu ponto de partida, a vitória de Jair Bolsonaro contra o PT, não é por exemplo a vitória de Jair Bolsonaro contra Fernando Haddad. Porque, ao contrário de Bolsonaro, Haddad não é o indivíduo contra a política, mas é a encarnação da própria política enquanto uma atividade política partidária. Haddad é o PT.

A vitória de Jair Bolsonaro é portanto a vitória de um indivíduo contra um partido, contra o partido mais “partido” que talvez já tenha existido na história brasileira. A vitória de Jair Bolsonaro contra o PT é a vitória de um indivíduo conta a política partidária e, para resumir ainda mais, a vitória de Jair Bolsonaro contra o PT é a vitória de um indivíduo contra a política. É como se o eleitor de Bolsonaro quisesse derrotar a própria política, tal como ela é entendida por esses eleitores: a política é apenas uma prática de corruptos, de defensores dos direitos das minorias, dos direitos humanos etc. O PT, então, mais do que nenhum outro partido, virou sinônimo de política e de políticos e de tudo de ruim que pode estar relacionado a eles.

É pela mesma razão que a derrota do PT e da política se deu sobretudo em espaços “não políticos”, não públicos. Sem debates na televisão e no rádio, sem debates promovidos por jornais e associações culturais. Em seu lugar, entraram os lives para os seguidores no Facebook e no Twitter, as mensagens por WhatsApp. Há aqui uma modificação do próprio sentido do que é a dimensão “pública” da política, uma confusão, galopante, entre público e privado. Contra a política, a família. Contra os políticos, os empresários. E não é por acaso que Jair Bolsonaro não indicou até agora nenhum quadro do seu próprio partido político para compor seu ministério, e que tenha como seus principais assessores apenas seus filhos. Há um falecimento da própria política.

Mas o que há de surpreendente é que, nesse campo do falecimento da própria política, o PT e um partido que nasceu do PT, o PSOL, partidos em que se pode falar de uma atividade político-partidária em sentido forte, tiveram um excelente desempenho nas eleições para a Câmara dos Deputados: o PT elegeu a maior bancada e o PSOL praticamente dobrou o seu número de deputados.

A resiliência do PT e o avanço do PSOL mostram que a política e a política-partidária não estão mortas no Brasil. Apesar de tudo. No caso do PT, sua resiliência se deve ao fato de que sua atividade política, desde o seu nascimento, deve-se à existência de uma parte da sociedade brasileira politicamente organizada e boa parte dessa organização se deve ao próprio PT.

O PT nasce do movimento sindical, dos militantes de oposição à ditadura militar, dos intelectuais, dos artistas e dos católicos ligados à Teologia da Libertação. O PT não é só o PT. O PT é o MST, é a CUT. O PT são os mais de 20% da população, segundo as últimas pesquisas, que o indicam como partido de sua preferência, muito à frente dos outros partidos, raramente citados. O PT também são os milhões de eleitores mais pobres e menos letrados que foram beneficiados pelos programas sociais implantados pelo partido a partir da chegada de Lula à Presidência da República em 2003.

É essa massa, que está envolvida não com indivíduos mas com uma luta coletiva, estruturada, articulada, organizada, que deu 45% por cento dos votos válidos a um candidato que era um desconhecido para a maior parte da população, mas que era o candidato de um partido muito bem conhecido pela maior parte da população: Fernando Haddad. Parece-me um feito muito destacável que Haddad – substituindo Lula, um ex-presidente julgado e condenado em segunda instância, preso – tenha conseguido obter um número tão significativo de votos. Significa no mínimo que há uma parte muito considerável da população que não acredita na mídia e no Judiciário brasileiro, e que entende que o julgamento e condenação de Lula foram políticos.

É nesse sentido que eu acredito que houve um trabalho muito efetivo feito pelo PT e pelas esquerdas nas últimas eleições, dadas as condições absolutamente adversas que encontraram e que eram muito mais difíceis e complexas do que aquelas que Lula e Dilma encontraram nas duas vezes em que venceram as eleições presidenciais.

Numa entrevista publicada recentemente em Carta Capital, o filósofo francês Alain Badiou, que acompanha a situação política no Brasil e na América do Sul com grande interesse, afirma: “Sim, interesso-me muito pelo que se passa na América do Sul, sobretudo porque durante um momento houve uma ideia de que aconteciam coisas muito interessantes na América Latina. E a catástrofe atual nos atinge também, não somente porque representa um enfraquecimento mundial, mas também por sua violência e radicalidade. É impressionante ver o que se passa com Lula e com sua política atualmente no Brasil. É uma inversão brutal de algo que acompanhávamos com simpatia, mesmo se tivéssemos críticas aqui e ali. Víamos com simpatia alguém tirar uma parte da população brasileira da miséria extrema. O que se passa no Brasil, na Argentina e na Venezuela tem um alto significado mundial.”

Perguntado na mesma entrevista sobre o que seria a nova esquerda, ele responde: “Honestamente, não saberia citar um só exemplo no mundo inteiro. São períodos vazios, que já existiram na história. São momentos de esvaziamento, em face de uma ofensiva do inimigo muito violenta e diante de uma espécie de enfraquecimento das velhas ideias, das velhas maneiras de fazer. É preciso propor coisas simples para começar, fazer uma descrição precisa dos interesses que estão em jogo, quem representa o quê. Por que no Brasil houve a possibilidade de uma contraofensiva tão brutal, tão violenta da casta dirigente mais reacionária?”

As duas respostas de Alain Badiou me parecem fundamentais. A primeira reconhece que, no campo da esquerda, o que havia de novo, nos últimos anos, se passava na América do Sul, com vários projetos progressistas chegando ao poder no subcontinente. Mas também o reconhecimento de que, com o fim desse movimento, não há mais nada de novo acontecendo no mundo (ele por exemplo não cita os novos partidos de esquerda surgidos na Europa nos últimos tempos, na Grécia, na Espanha e na Alemanha).

Mas tentando responder à sua última pergunta (“Por que no Brasil houve a possibilidade de uma contraofensiva tão brutal, tão violenta da casta dirigente mais reacionária?”), creio que essa contraofensiva já vem se produzindo, no Brasil, desde o primeiro governo do PT, com o mensalão. Ali se cria essa aliança entre Judiciário e mídia, que foram decisivos para a contraofensiva brutal e violenta ao PT, igualmente determinante na últimas eleições. Foi difícil para essa casta dirigente mais reacionária impedir a reeleição de Lula em 2006, porque em seu último ano de governo o PIB brasileiro cresceu 7,5%. É impossível vencer um candidato nessas condições. Mas já no primeiro mandato de Dilma Rousseff, mesmo que três meses antes de junho de 2013 ela tivesse índices recordes de popularidade, a manipulação midiática das manifestações ocorridas então e a apropriação das mesmas pela direita mais radical (aquela antipartidária), associada à crise econômica que abateu a economia brasileira, criaram o cenário para que essa mesma casta dirigente mais reacionária fizesse de tudo para retornar ao poder. Mas mais uma vez o PT demonstrou uma resiliência impressionante e Dilma foi reeleita, mesmo que tenha sido deposta menos de dois anos depois.

Portanto, o PT está resistindo bravamente desde que assumiu o poder em 2004, mas depois de um impeachment e da condenação do seu principal líder político, o cenário tinha ficado praticamente impossível.

De qualquer modo, acredito que nem mesmo assim o PT teria sido derrotado pela direita nas últimas eleições. Foi preciso que as classes dominantes se associassem à extrema-direita (a entrada do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro é a prova cabal disso) para que finalmente a derrota do PT fosse possível.

O confronto com a extrema direita é uma novidade na nossa experiência política. Nós nunca tínhamos tido nenhuma experiência nesse sentido. Sobretudo porque essa extrema direita vem associada ao fator que a tem levado a vitórias no mundo todo: o modo como ela opera através de redes sociais. Ninguém estava preparado para isso, nem o PT, nem a esquerda, nem a direita. Mesmo candidatos de direita tradicionais, como Antonio Anastasia, em Minas Gerais, e Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, também foram demolidos por candidatos desconhecidos até então e que foram eleitos de última hora graças a uma campanha ocorrida no submundo do WhatsApp.

Cabe à esquerda e ao PT entender esse processo e se preparar para os próximos pleitos. A estratégia de desmentir as mentiras se mostrou ineficaz. A mentira tem um eficácia que independe da dinâmica da verdade. Uma mentira desejada é muito mais eficaz do que uma verdade indesejada. Como todos sabem, a verdade não é bonita. Trabalho de base é muito bom e importante, e isso o PT sempre fez, mas a verdade não vencerá as fake news. É preciso que aprendamos a contar a verdade de outro modo, como se contam mentiras, porque no mundo atual, só a mentira convence. Na primeira eleição vitoriosa de Lula, o PT compreendeu que um bom marqueteiro era mais importante que um bom programa de governo. Venceu quatro eleições seguidas. Só que o mundo mudou. Marqueteiros não servem para mais nada. A campanha de Bolsonaro nas redes sociais foi toda conduzida por seus filhos. A televisão não define mais nada.

Acho que algo na mesma direção do que estou dizendo aqui foi proposto por Tatiana Roque e Fernanda Bruno em artigo publicado no último domingo na Folha de S.Paulo,“Fenômeno da pós-verdade transforma os consensos já estabelecidos”. Em determinado momento do artigo, as autoras afirmam, ecoando minhas colocações iniciais aqui sobre a ausência de mediação característica da política atual: “Imprensa, professores, intelectuais, especialistas e mesmo políticos profissionais costumavam ser aceitos como mediadores confiáveis. Entretanto, parece estar em curso uma destituição desses lugares, fenômeno que alguns chegam a identificar como o fim das mediações, numa fragilização do regime democrático par além do terreno estrito da política representativa”.

As autoras também apontam para o limite da estratégia de tentar combater as fake news com a verdade: “Vem crescendo a percepção de que a melhor maneira de combater a adesão a afirmações falsas – do ponto de vista científico – não é a verdade. Ou seja, o fenômeno da pós-verdade vem transformando consensos estabelecidos sobre a própria efetividade da argumentação científica e sobre a pertinência social de seus critérios. (…) A indiferença em relação à veracidade, ou a ausência de conflito em repassar um conteúdo possivelmente falso, são facilitadas pela certeza de que é preciso defender determinados valores. De acordo com nossa hipótese, as pessoas podem estar fazendo uma aposta ao repassar a mensagem: mesmo se a notícia for falsa, estarão ajudando a proteger o mundo das ameaças contra seus valores mais caros”.

Inspirando-me nas autoras, eu diria, para os que buscam encontrar os motivos para uma derrota do PT nas últimas eleições (embora eu insista em que, dadas condições do pleito, o desempenho do PT foi uma grande vitória), que o erro do PT foi ter insistido na verdade. O psicanalista francês Jacques Lacan disse certa vez que “entre nós e o real, existe a verdade”. Para atingirmos o real, é fundamental que ultrapassemos também a verdade, e com ela a pós-verdade. Esse real é mais facilmente capturável pelo imaginário posto em ação pela nova extrema-direita mundial do que pelo exercício da palavra que caracteriza a política tradicional de esquerda. Se, como disse Miguel Lago, diretor da ONG Nossas, Bolsonaro é um youtuber (e eu concordo com ele), é preciso que o PT e a nova esquerda aceite esse jogo e comece a produzir youtubers de esquerda. Como concluem Tatiana Roque e Fernanda Bruno, “no embate contra a banalização da democracia, mais vale fortalecer crenças e valores mais favoráveis à vida coletiva do que contra-atacar com a lupa da objetividade”.


Cláudio Oliveira é filósofo, tradutor, professor associado do Departamento de Filosofia da UFF

Fonte: Revista Cult
Créditos: Revista Cult