Em março deste ano, a equipe de especialista do Imperial College London previu que, no melhor cenário, 44 mil brasileiros morreriam em decorrência da pandemia de COVID-19. [2] Àquela época (parece que já estamos há uma eternidade em distanciamento social), empresários, como Roberto Justus, Luciano Hang e Junior Durski, vieram a público fazer pouco caso das previsões, acusando-as de alarmistas. Em entrevistas e pronunciamentos oficiais em rede nacional, o Presidente Jair Bolsonaro minimizou a doença, referindo-se a ela como uma mera “gripezinha”. Poucos meses depois, porém, a realidade parece ter dado conta de dobrar a língua dos negacionistas. No momento que escrevo este texto, em junho de 2020, as curvas estatísticas da epidemia no Brasil, mesmo sem contar os casos subnotificados, romperam a marca prevista pelo Imperial College e continuam em ascensão. [3] O mundo inteiro assiste atônito ao fiasco de Bolsonaro na condução da crise do coronavírus.
Além da COVID-19, o Brasil ainda tem que lidar com uma crise econômica que já se delineava antes mesmo da pandemia [4], uma disputa entre Governo Federal e Governos Estaduais e Municipais [5] e uma crise institucional em que o Palácio do Planalto se contrapõe e ameaça o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) [6]. Isso sem falar nas investigações envolvendo a fabricação e divulgação de notícias falsas por aliados próximos ao Presidente da República [7], nas ligações da família Bolsonaro com as milícias cariocas [8], nos escândalos de corrupção envolvendo os filhos de Bolsonaro [9]e nas acusações de tentativa de interferência na Polícia Federal para proteger familiares e aliados do Presidente. [10] Esse caldo de crises e escândalos escancara a total incompetência e inabilidade de Bolsonaro. Ainda assim, seu núcleo de apoiadores continua irredutível em não reconhecer o desastre de seu governo. Na última pesquisa XP/Ipespe, realizada entre os dias 9 e 11 de junho deste ano, 28% dos entrevistados ainda avaliavam o governo como ótimo e bom. [11] Como isso se explica? Estariam 28% dos brasileiros tão cegos a ponto de se recusarem a ver o óbvio ululante?
Talvez um pequeno trecho da obra “Homo Deus”, de Yuval Harari [12], quando ele lembra um conto de Jorge Luis Borges [3] e as condições da Campanha Italiana na Primeira Guerra Mundial, contenha uma chave de interpretação que possa nos auxiliar a compreender fenômeno tão estranho.
No conto “Um problema”, Borges se pergunta como Dom Quixote reagiria se, no meio de seus delírios, ele houvesse realmente matado um homem. O próprio Borges propõe três respostas possíveis: ou Quixote continuaria vivendo em seu mundo alucinatório, como se nada houvesse acontecido; ou o terror do assassinato o despertaria de sua loucura para sempre; ou, enfim, não podendo negar a morte do homem, ele buscaria, em sua narrativa imaginária, razões que dariam sentido àquele acontecimento fatídico, aprofundando-se ainda mais em sua loucura. Harari sustenta que essa terceira resposta é comum no ambiente político, onde ela é conhecida como síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”. E aqui entra a questão da Campanha Italiana.
A Itália entrou na Primeira Guerra Mundial com o objetivo glorioso de recuperar os territórios de Trento e Trieste do Império Austro-Húngaro. Contudo, ela perdeu as doze batalhas que ali travou. Cada batalha lhe custava mais vidas italianas, e, a cada derrota, seu ímpeto bélico apenas aumentava. Afinal, como os políticos italianos poderiam abandonar o campo de batalha após perderem tantas vidas? Como admitir para as famílias dos mortos que a guerra tinha sido um erro? Seria como se todos aqueles homens tivessem morrido por nada, e isso seria insuportável. Então, ao invés de assumir derrota, os italianos reforçaram sua narrativa de glória patriótica. Para que os primeiros rapazes não tivessem morrido em vão, mais rapazes tiveram que morrer. Por um lado, os reforços de narrativa após cada derrota levaram os italianos a uma tragédia ainda maior. Por outro lado, eles dotaram aquela tragédia de um sentido que a tornava mais palatável.
Segundo Harari, a terceira resposta no conto de Borges e a experiência italiana na Primeira Guerra Mundial demonstram como nós, seres humanos, temos uma grande necessidade de dar sentido às nossas vidas, em especial aos nossos fracassos, dores e frustrações. É muito difícil admitir grandes perdas se elas não tiveram propósito nenhum. Por isso, nós conferimos propósitos aos nossos sacrifícios, via de regra através de narrações imaginárias, em que selecionamos experiências específicas, que se encaixam bem na história que queremos contar. E “quanto mais nos sacrificamos em benefício de uma história imaginária, mais forte ela se torna, porque desesperadamente queremos dar sentido ao sacrifício e ao sofrimento que causamos”. [14]
Essa é uma chave importante para compreender o dilema dos bolsonaristas hoje.
O apoio a Bolsonaro teve e continua tendo um alto custo. Pessoas investiram muito dinheiro, tempo e energia nas ações de promoção do bolsonarismo e de sua fábrica de notícias falsas. Alguns chegaram a abandonar seus empregos. Outros penhoraram sua credibilidade. Famílias inteiras estão cindidas, amizades de décadas estão desfeitas e princípios básicos de dignidade e decência tiveram que ser postos em suspenso. Enquanto o motor do bolsonarismo queima mentira, ódio e agressão, do seu escapamento solta-se uma fumaça espessa de sofrimento que atinge a todos ao seu redor, quer sejam apologistas, opositores ou desavisados.
Neste momento, o real da tragédia brasileira atesta o desastre anunciado que sempre foi Bolsonaro. A narrativa do herói nacional, que colocaria a economia nos trilhos, acabaria com a corrupção política e salvaria o país da ameaça dos comunista do Foro de São Paulo, já não encontra nenhum lastro na realidade – se é que algum dia o encontrou. É bem verdade que a própria alcunha de “mito” há muito indicava o caráter quimérico da figura que se construiu sobre o personagem Bolsonaro. Mas essa foi uma fábula em que seguimentos inteiros da população brasileira decidiram acreditar e ajudar a escrever. Ocorre que a tinta usada para registrar esse conto foi extraída de muita dor e sofrimento. Diante disso, admitir a mentira do bolsonarismo seria admitir também que os imensos sacrifícios e as aflições atrozes que ele causou não tiveram sentido e não serviram para nada. Para muitas pessoas, isso é insuportável. E, por essa razão, elas continuam agarradas à mentira. Repetem-na. Reforçam-na.
O reforço das narrativas bolsonaristas implica também um aprofundamento no delírio. Não é à toa que presenciamos sucessivas subidas de tom de Jair Bolsonaro, seus filhos, seus ministros e seus apoiadores. Manifestações reivindicando o fechamento do Congresso e do STF contam com a participação do Presidente. [15] Filho de Bolsonaro fala abertamente em AI-5 e ruptura institucional. [16] Ministros de Estado sonham com a prisão de Governadores, Prefeitos e Magistrados. [17] Tudo isso sob os aplausos efusivos da claque, que, reproduzindo o comportamento do ídolo, invade hospitais, agride profissionais de saúde [19] e atira fogos contra a Suprema Corte. [20] Todos foram longe demais na narrativa e no sofrimento que ela engendra. Comprometeram-se a tal ponto que não podem mais voltar atrás. Como gatos acuados, não tendo aonde fugir, ofendem e atacam.
Pode ser paradoxal, mas, “quanto mais doloroso o sacrifício, maior a crença na existência do imaginário receptor do sacrifício”. [21] As oferendas a Bolsonaro foram numerosas, feitas às custas de muito suplício. Se algo ainda sustenta a base de apoio bolsonarista é a necessidade de garantir que essas oferendas não tenham sido em vão, ainda que, para isso, mais sacrifícios tenham que ser feitos. Assim como na Campanha Italiana da Primeira Guerra Mundial, a exigência de manutenção do discurso bolsonarista já está cobrando seu preço em vida humanas. Mas, enquanto o drama italiano culminou com a ascensão de Benito Mussolini e do fascismo, aqui, apesar de todos os sinais, eu ainda espero que tenhamos melhor sorte.
Lucas de Melo Prado é mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor de Direito do Sinergia Sistema de Ensino (Navegantes – SC).
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba
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