Sem se identificar totalmente como homem ou mulher, o escritor ou a escritora Juno Cipolla —que gosta que o tratamento que lhe dão seja no feminino e no masculino– conta como se descobriu um transgênero não-binário, há três anos. Em meio a mudanças físicas e emocionais, Juno diz ser uma figura ambígua, que gosta de ter peito e barba. Aos 25 anos, tem uma rede afetiva com 7 namorados trans. A seguir, Juno relata sua trajetória.
“Eu fui designado (a) mulher quando eu nasci, isso é, como viram que eu tinha uma vagina, disseram que eu era mulher. Na infância, não tinha essa noção de gênero, só sei que de alguma forma me identificava com algo que não era o feminino estereotipado e projetava em mim uma figura considerada masculina. Gostava de brincar com os carrinhos dos meus irmãos mais velhos e ser o personagem masculino nas brincadeiras, mas também tinha muitas bonecas.
Eu sentia que algo estava fora, não conseguia me encaixar em um lugar, mas como me diziam que eu tinha que ser mulher, eu tentei ser uma na adolescência. Comecei a sair com um grupo de amigas que ia para a balada, se maquiava e usava vestido. Entrei na onda e passei a imitar tudo o que elas faziam, mas não gostava, aquilo me bloqueava. Apesar do desconforto, eu não questionava, não sabia que podia ser de outro jeito.
Uma namorada ajudou com seus desejos
Ao perceber que eu não era uma mulher cisgênero [que se identifica com seu gênero de nascença], ela me dava sinais e me incentivava a fazer coisas que até então eu não tinha coragem, como a vontade de ter barba. Ao tratar os meus desejos com naturalidade, ela despertou em mim um questionamento sobre quem eu era.
“Tem gente que não é homem nem mulher, é isso que eu sou”
O segundo momento foi quando eu reencontrei um amigo de infância nas redes sociais e soube que ele tinha se descoberto transgênero não-binário [que não se identifica com o masculino ou feminino]. A gente começou a conversar, ele me colocou em grupos no Facebook sobre o assunto e na hora bateu, eu falei: ‘Tem gente que não é homem nem mulher, é isso que eu sou’.
Eu sempre achei que fosse menina porque me falavam isso, mas a partir do momento que tive consciência de que muitas coisas que eu fazia era porque me mandavam e não porque eu acreditava, eu passei a ver outras maneiras de existência, como ser uma mulher com barba ou um homem que se depila. Eu não tenho gênero, o que eu vivo da minha transição tem a ver com quem eu sou como pessoa e com as minhas relações no mundo.
Testosterona e as transformações
Eu me afirmar como trans não-binário me ajudou a lidar com questões que eu tinha dificuldade. Hoje, gosto de me maquiar, fazer as unhas e estou aprendendo a usar salto alto. No guarda-roupa, tenho peças masculinas e femininas, visto o que bonito e confortável. Não me depilo mais, para mim meu corpo faz muito mais sentido tendo pelos.
Desde a transição, tenho passado por muitas transformações. Como gosto que me tratem no feminino e no masculino, adotei o nome social Juno, por ser neutro e por manter o apelido Ju, do meu nome de registro.
Homem, mulher, ‘viado’ e até travesti
Também tenho vivido várias mudanças físicas. Há dois anos, comecei a tomar testosterona: meus pelos cresceram, minha voz engrossou, meus seios e bunda diminuíram, estou mais forte e parei de menstruar. Quero parar com a injeção antes de chegar a uma aparência masculina, porque não quero ser homem. Na verdade, o que eu quero mesmo é que o mundo não associe minha imagem a um homem nem a uma mulher.
Me sinto uma figura ambígua, gosto de ter vagina e nunca quis ter pênis. O corpo é muito mais versátil do que ter esses dois órgãos. Na sociedade, já fui lida de várias maneiras: homem, mulher, ‘viado’ e atétravesti.
Preconceito e medo de estupro
Já sofri preconceito dentro do próprio meio trans, onde tem gente que diz que quem é trans não-binário não é transgênero de verdade. Existe aquela pressão de que você sempre tem que escolher um lado. Sofro julgamento porque não me encaixo em um gênero.
Nunca sofri agressão física, mas a agressão verbal existe. Quando saio pelo centro da cidade, algumas pessoas me xingam e perguntam se eu quero ter relações sexuais. Tenho medo que alguém descubra que eu não tenho um pênis e resolva me estuprar.
Revelação para os pais
Demorei para contar aos meus pais sobre minha condição. Sem coragem para enfrentá-los, escrevi um post no Facebook fazendo a revelação. Eles leram o texto e me chamaram para conversar. Minha mãe perguntou se eu queria ser homem, eu respondi que não. Ela afirmou que meu visual estava agressivo e que ela não entendia. Meu pai me alertou que eu sofreria bastante, mas disse que me apoiaria.
Minha mãe acredita que só vou ser feliz casando com um homem e tendo filhos. Ela tem um pouco de vergonha de ter uma filha trans, porque acha que errou em algum ponto da minha criação. Eu me ofendo quando ela fala isso, pois não entendo como ela pode achar que eu sou um erro.
Até hoje eu explico que não quero ser homem, mas quero me sentir mais confortável comigo. Eu me sinto bem do jeito que sou e estou feliz com as minhas escolhas. Nós duas estamos fazendo terapia e nossa relação está melhorando.
Tenho 7 namorados
Ao me descobrir trans não-binário, eu me encontrei em muitos aspectos da minha vida que eram uma bagunça: um deles foi na minha sexualidade. Houve uma época em que achei que fosse ‘sapatão’, que ia casar com uma mulher e ter uma relação única. Hoje, sou bissexual, panssexual, pois eu me atraio por pessoas, independentemente de gênero, e demissexual, por que sinto atração depois de desenvolver algum tipo de vínculo ou confiança.
Há dois anos, desenvolvi uma rede afetiva e tenho 7 namorados transgêneros. Às vezes, saímos eu, um dos meus namorados e o namorado dele. É ótimo, fazemos tudo que um casal faz, vamos ao cinema, ao restaurante. Relacionamento romântico não está necessariamente ligado a sexo. Eu já cheguei a transar com quatro pessoas, mas também acontece de namorar alguém e não ter relações sexuais.
Ter essa rede afetiva se encaixa muito bem nesse momento em que sou uma pessoa com um corpo e uma vida que não são considerados padrão. Minha transição começou quando eu me descobri trans não-binário e percebi que não era 100% homem nem 100% mulher. Foi um estado que eu entrei e o qual considero que é para sempre, não tem um ponto final onde eu quero chegar”.