O bordão “achei que fosse morrer”, em geral usado por sobreviventes de acidentes, nunca foi tão adequado para o casal Kamila Novaes Deó e Caio Henrique de Souza Novato, ambos com 28 anos, como há dez dias.
Moradores da antiga cracolândia, na alameda Dino Bueno, e usuários da ‘nova’, na praça Princesa Isabel –as duas, na região da Luz, centro histórico de São Paulo –, eles sobreviveram à demolição parcial da pensão onde viviam quando uma escavadeira da Prefeitura de São Paulo atingiu o imóvel durante a derrubada de prédios na área. As demolições eram parte da ação da gestão do prefeito João Doria (PSDB) na região após operação conjunta com o governo do Estado, dois dias antes, pela desocupação e revitalização do local.
De volta à pensão parcialmente atingida, Kamila e Caio improvisaram outro quarto pelos mesmos R$ 500 mensais de hospedagem. Além deles, um terceiro hóspede também se feriu na ação e precisou, na ocasião, ser hospitalizado. Naquele dia, Doria chegou a passar pela cracolândia para promover as ações da prefeitura, mas saiu logo após a queda de parte do muro da pensão.
“De repente, acordei com aquela tralha vindo para cima da gente, com o teto do lado, que era de ferro, caindo no meu pé. Quando senti que um pedaço do concreto desabaria, consegui correr e puxar a Kamila –que só salvou todo mundo porque gritou demais que tinha gente dentro da pensão. Caso contrário, tinham posto tudo abaixo com a pensão cheia”, lembra Caio.
Ainda assustado com a situação, o casal recebeu o UOL na pensão e mostrou os escombros que permanecem nos cômodos atingidos pela demolição. No quarto em que estavam, por exemplo, tijolos antigos (bem mais pesados que os modelos mais novos), pedaços de concreto e estacas de madeira estão sobre o colchão em meio aos objetos pessoais deles, como roupas, sapatos e mochila. No alto, na direção de onde ficavam os travesseiros, lâminas metálicas do forro e vigas ainda estão suspensas, ameaçadoras, dez dias depois da ação.
Caio tem as costas, pernas, rosto e pés machucados. Kamila ficou com escoriações nos braços. Ele faz bicos como garçom e tem familiares na Vila Maria, zona norte da capital. Mora na região da antiga cracolândia há um ano, conta que aprendeu a fumar crack “trabalhando em um resort bacana em Florianópolis”, mas diz ter o vício sob controle, consumindo duas pedras por dia.
“Em Santa Catarina, vi um amigo meu fumando. O efeito nele foi tamanho que bateu uma curiosidade –fumei e não parei mais. Meu patrão me contratou para ser garçom, com direito a moradia: eu subia para meu quarto nos intervalos, fumava, escovava os dentes, passava um perfume e voltava a atender, sem nenhum problema”, relata. “Mas isso me custou um relacionamento de dez anos que foi para o ralo. Acabei voltando para São Paulo e me ajeitei aqui na Dino Bueno porque é onde dava para pagar uma pensão.”
Kamila está há sete anos na região da cracolândia antiga. Ela diz que morava com a mãe e o padrasto até engravidar –a mãe, com quem o relacionamento já era ruim, não aceitou; o namorado pediu que ela abortasse e até sugeriu um medicamento para isso, relata. “Tive que sair de casa para ter minha filha”, diz. Um dia, acompanhou uma amiga que compraria crack em uma favela, experimentou e não parou mais. A filha foi tomada para adoção (“foi o pior dia da minha vida, moça”), e Kamila usa crack atualmente “o dia todo”. O companheiro a interpela: “Mas estou fazendo de tudo para ela diminuir, pelo menos. Uma hora, vamos conseguir parar. Os dois.”
Sobre a demolição em que ele, Kamila e um amigo se feriram, Caio diz não entender “como que a Prefeitura não avisou ninguém antes sobre o que seria feito”. A administração municipal editou decretos de utilidade pública para fazer as demolições, mas a Justiça de São Paulo concedeu liminar à Defensoria Pública do Estado, no dia seguinte, e proibiu que elas prosseguissem sem aviso.
“O que me deixa tão incrédulo quanto uma ação dessas é que não tivemos respaldo de ninguém desde então. Ninguém da prefeitura nos procurou para saber se estamos bem, se precisamos de algo, e olha que não estou falando de dinheiro. Fizeram uma baita de uma burrada não seguindo certinho o tal programa Redenção [proposta de Doria para tratamento a dependentes químicos, em substituição ao ‘De Braços Abertos’, da gestão Fernando Haddad] –e quando foi que veio alguém aqui nos dizer que saíssemos, porque iriam demolir?”, questiona o garçom.
“O que o pessoal fez aqui foi desumano”, resume Kamila. Indagada se ela aceitaria tratamento contra o vício –a Justiça autorizou, mas depois cancelou autorização à Prefeitura para remover usuários de droga das ruas e encaminhá-los para avaliação médica, antes de se decidir pela internação compulsória –, a cabeleireira diz que não.
“Não aceitaria me tratar pelo que se propõe. Porque aqui mesmo [na região da antiga cracolândia] é assim: você pode ir nas tendas, conversar com médico, psicólogo, assistente social, mas sai dali e o que tem? Gente com cachimbo e crack. Qual o nexo de eu me tratar assim?”, ela indaga. “Eu aceitaria algo que já não tivesse tentado. Mas algo que desse certo, o que não é o caso de um atendimento dentro da cracolândia”, completa o companheiro.
Sobre isso, e em avaliação a respeito do programa De Braços Abertos, o médico Drauzio Varella afirmou esta semana, em entrevista à Folha, que “usuário de crack, como de cocaína, não pode ver a droga”. “Não pode ver alguém sob o efeito da droga, não pode ver o lugar onde usava a droga. Isso é básico na dependência química”, salientou ele, que disse não ser “possível acabar com a cracolândia”. “A cracolândia não é causa de nada, é consequência de uma ordem social que deixa à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas periferias”, declarou ao jornal.
Tanto Caio quanto Kamila frequentam a cracolândia formada na praça Princesa Isabel, para onde se deslocaram os usuários após a ação do Estado e da Prefeitura no domingo de Virada Cultural. Se lá eles têm bom trânsito e conhecem boa parte dos usuários, como acham que o restante da cidade –e da sociedade, como um todo –os vê?
“Se as pessoas de fora nos vissem como um problema de saúde, enxergariam o que de fato acontece aqui. Mas a verdade é que somos discriminados por todos, principalmente quando acham que usuários de crack são só criminosos –tem muita gente que pega material reciclável e que faz bicos por aí que usa crack. E gente criminosa, você há de convir, existe inclusive na política”, avalia Caio. “Os sentimentos mais bonitos que podem haver são os de amor e respeito. É só isso que eu gostaria que tentassem ver em relação à cracolândia”, sugere.
“Se não fosse eu gritar no dia demolição vários ‘Tem gente aqui’, eu não estaria viva agora, e inclusive pagando o aluguel da pensão onde moro, para contar que eu existo”, diz Kamila. “Eles nos tiraram aquele dia pelos fundos da pensão, quando poderíamos ter sido retirados pela frente –ajudado, por exemplo, eu sairia até andando para entrar na ambulância. Mas sobrevivemos para contar a nossa história e para dizer que não somos bandidos, somos doentes e não adianta tentar nos esconder, que não vai resolver.”
Ao final da entrevista, já fora e a meia quadra da pensão, a reportagem é abordada por Kamila, que pede caneta e papel para anotar os nomes da repórter e do fotógrafo. “Vocês não têm um cachê para eu comprar um café?”, quer saber. Diante da negativa, a cabeleireira se despede: “Então me dá um abraço. Dinheiro a gente até dá um jeito, mas é muito difícil ganhar um abraço por aqui.”
Prefeitura disse não saber que pensão tinha moradores
No dia das demolições, a gestão Doria alegou que não sabia que havia pessoas dentro do prédio. “Essas pessoas entraram por uma passagem clandestina. Foi uma situação inusitada. Daqui para frente, tomaremos medidas adicionais para evitar que isso ocorra novamente”, afirmou, na ocasião, o secretário municipal de Infraestrutura e Obras, Marcos Penido. De acordo com ele, a prefeitura havia avisado que a área estava isolada e que as demolições iriam começar, o que acabou contestado por moradores do pensão no mesmo dia.
No dia em que a Justiça proibiu as demolições sem aviso, a Prefeitura disse concordar com a decisão ao alegar que “nunca foi intenção fazer intervenções em edificações ocupadas sem que houvesse arrolamento prévio de seus habitantes. O cadastramento das famílias já está sendo feito. As pessoas que aceitarem desocupar os imóveis serão encaminhadas para opções de habitação social. Aqueles que não aceitarem deverão ser objeto de ações judiciais. A liminar, portanto, será respeitada integralmente, porque já é o que determina a lei”, informou o Município, em nota.
Procurada agora sobre as críticas do casal de feridos nas demolições, a administração informou que vai apurar o caso.
Fonte: UOL