Quando Michel Temer nomeou, em junho de 2017, Raquel Dodge para o cargo de procuradora-geral da República houve reclamações. Alguns diziam que o então presidente estava quebrando uma tradição, ao escolher a segunda colocada da lista formada pela Associação Nacional dos Procuradores da República, que organiza votação interna e indica três nomes ao chefe do Poder Executivo. Como se a lista fosse simples, não tríplice.
Mas nada se compara ao alvoroço iniciado semana passada, após Augusto Aras, que não figurou na lista da vez, ser nomeado por Jair Bolsonaro. Entre protestos presenciais e virtuais, destaca-se a nota pública feita pela ANPR:
“A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) recebeu com absoluta contrariedade a indicação do subprocurador-geral da República Antonio Augusto Brandão de Aras para o cargo de procurador-geral da República (PGR), ação que interrompe um costume constitucional de quase duas décadas, de respeito à lista tríplice, seguido pelos outros 29 Ministérios Públicos do país. A escolha significa, para o Ministério Público Federal (MPF), um retrocesso institucional e democrático.”
Já Blal Dalloul, procurador da República que ficou em terceiro na lista, esbravejou:
“Não ficaremos calados se vermos que a PGR possa vir a ser um balcão de negócios. Não vamos aceitar. Ele tem que respeitar a Constituição Federal. A sociedade espera um PGR comprometido contra a corrupção”.
E não são poucos os equívocos dos protestos, entre eles a afirmativa da escolha representar um “retrocesso institucional e democrático”. Contudo, o que deixam de lembrar é que não há, na Constituição Federal do Brasil, tampouco em lei, sequer menção à “lista tríplice da ANPR”. As declarações são um paradoxo, pois esse apelo dito constitucional viola a própria Carta Política de 1988.
É de se lembrar que a ANPR organiza, desde 2001, a chamada lista tríplice, ignorada em seu primeiro ano pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, que preteriu os “indicados”, reconduzindo Geraldo Brindeiro ao cargo por mais um biênio.
Com relação ao processo de nomeação do Procurador Geral da República, prescreve a Carta Magna:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
[…]
XIV – nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei;”
“Art. 128. O Ministério Público abrange:
I – o Ministério Público da União, que compreende:
a) o Ministério Público Federal;
b) o Ministério Público do Trabalho;
c) o Ministério Público Militar;
d) o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios;
II – os Ministérios Públicos dos Estados.
1º O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução.
[…]
3º Os Ministérios Públicos dos Estados e o do Distrito Federal e Territórios formarão lista tríplice dentre integrantes da carreira, na forma da lei respectiva, para escolha de seu Procurador-Geral, que será nomeado pelo Chefe do Poder Executivo, para mandato de dois anos, permitida uma recondução.
Como se vê, a Constituição só exige a lista tríplice para a nomeação dos Procurador Gerais de Justiça dos Estados e do DF (§3º). É daí que os procuradores extraem o suposto “costume constitucional” de vincular a nomeação da figura máxima do Ministério Público da União às indicações da ANPR.
Mas o que seriam os questionáveis costumes em matéria jurídica?
São uma fonte do direito traduzida na reiterada prática de um uso. Diferenciam-se dos meros hábitos por serem entendidos conscientemente como obrigatórios. E, mais importante, servem para suprir as chamadas “brechas da lei”; ou seja, sem lacunas, os costumes não passam de hábitos e não devem ser observados. Assim é a lição ponderada de Anna Candida da Cunha Ferraz:
“A inadimissibilidade do costume derivaria tanto do princípio da soberania nacional como do conceito de Constituição formal. A vontade do povo só se manifestaria através da feitura da Constituição em assembléia constituinte (ou em órgão equivalente), não através de qualquer outra forma; e a superioridade da Constituição e a sua função própria seriam vulneradas se pudesse haver normas constitucionais à sua margem”.
Já para o célebre Jorge Miranda, essa denominada fonte do direito é inadmissível em matéria constitucional:
“A inadimissibilidade do costume derivaria tanto do princípio da soberania nacional como do conceito de Constituição formal. A vontade do povo só se manifestaria através da feitura da Constituição em assembléia constituinte (ou em órgão equivalente), não através de qualquer outra forma; e a superioridade da Constituição e a sua função própria seriam vulneradas se pudesse haver normas constitucionais à sua margem”.
Quero dizer que, em todo caso, não há costume que limite uma atividade privativa prevista no texto constitucional, como querem os procuradores quanto à nomeação do PGR.
Claro que há o costume previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 4o: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Tal dispositivo se refere apenas a lei (ato normativo escrito pelo Legislativo), não à Constituição, que está acima de qualquer a lei. Certamente não é o caso da nomeação feita pelo presidente, que cuida de ato administrativo discricionário.
Evidente, também, que a elaboração de listas tríplices para os chefes dos Ministérios Públicos é importante e vem de longa data.
Mas sua ausência no procedimento de nomeação do PGR não é mero capricho do constituinte de 1988. Embora a escolha seja privativa do presidente da República, o aspirante a mandachuva do Parquet não toma posse antes de passar pela sabatina do Senado Federal, o que não acontece nas nomeações do chefes do MP dos Estados nas Casas Legislativas locais.
A propósito, o reconhecimento deste “costume” representaria nada mais que a restrição do poder do presidente da República, escolhido pelo povo justamente para tomar decisões, pois se veria limitado a três possíveis nomes, num universo de muitos outros de igual ou maior competência.
Esclarecedor é o que disse o Min. Barroso, do STF, sobre a nomeação de Aras:
“Eu, pessoalmente, prefiro respeito à tradição das listas. Como cidadão, gosto que se respeite algumas tradições, e a lista, acho que é uma tradição positiva, que vem sendo praticada de longa data… mas não está prevista na Constituição, é competência do presidente da República”.
Certa vez, Lenio Streck, ao lembrar a fala de uma personagem de série de TV, disse que “tudo que vem antes do mas não interessa”. Pode se entender que a votação interna tenha se tornado uma tradição, mesmo que breve; mas, como não está prevista na Carta Magna, tampouco em texto infraconstitucional, não possui observância obrigatória.
É de se questionar, ainda, a legitimidade da ANPR de realizar a malfadada lista tríplice.
Primeiro, são preteridos demais membros do Ministério Público da União – composto, conforme o art. 128, inciso I, também pelos MP’s do Distrito Federal e Territórios, do Trabalho e Militar. E não se diga que esse é um costume constitucional.
Lembremos que a Lei Complementar nº 75/93, que dispõe sobre organização, atribuições e o estatuto do Ministério Público da União – e nada diz a respeito da lista tríplice ora debatida – prevê, no artigo 45, que o Procurador-Geral da República é o chefe do MPF. Pode-se questionar se seria absurdo a chefia do MPF ser exercida por autoridade de outro ramo do MPU, mas é de se recordar, por exemplo, que compete ao PGR nomear e exonerar o Procurador-Geral do Trabalho e o Procurador-Geral da Justiça Militar (artigos 88 e 121, respectivamente, da LC 75).
Em segundo lugar, observemos o que consta no início do Estatuto da Associação Nacional dos Procuradores da República:
“Art. 3º – Constitui finalidade da Associação:
I – velar pelo prestígio, direitos e prerrogativas da classe;
II – propugnar pelos interesses de seus sócios, mediante adoção de medidas que incentivem o bom desempenho das funções e cargos do Ministério Público Federal;
III – colaborar com o Estado no estudo e na solução das questões relativas ao exercício das funções atribuídas aos Procuradores da República, bem como na definição, estruturação e disciplina da respectiva carreira;
IV – defender seus associados, judicial e extrajudicialmente perante autoridades públicas, sempre que desrespeitados em seus direitos e prerrogativas funcionais;
V – realizar ou promover cursos, seminários, conferências, estudos em geral e a publicação de trabalhos jurídicos, objetivando o aprimoramento profissional dos membros do Ministério Público;
VI – promover o congraçamento da classe e estimular o intercâmbio de estudos e trabalhos entre associados.
Não é difícil notar que se trata de entidade classista, instituída para defender os estritos interesses dos seus associados. Assim ocorre também com as associações de Magistrados, de Advogados, Servidores Públicos, Promotores e Procuradores de Justiça, dentre tantas outras categorias, que não podem ultrapassar suas finalidades estatutárias, mesmo com as mais nobres intenções.
O próprio estatuto citado diz:
“Art. 4º – A Associação não se envolverá em manifestações de natureza política ou religiosa, nem tomará qualquer iniciativa estranha à persecução dos seus objetivos”.
Ora, a celeuma criada pela entidade por conta da indicação do novo PGR contraria tanto a Ordem Constitucional quanto a própria normativa dos procuradores que subscreveram a nota pública.
É importante lembrar: o escolhido poderia ser Gonet Branco, Raquel Dodge, Vladimir Aras ou qualquer outro nome, bastando apenas que, no exercício do mister que lhe caberá, cumpra a Constituição Federal.
A nomeação de pessoa diversa dos que constam em lista tríplice não representa, de modo algum, retrocesso democrático. Ferimento da democracia seria a diminuição da escolha do Presidente da República, por decisão de uma entidade de classe, que busca meramente atender os anseios de seus associados. A escolha do povo brasileiro não pode se submeter à de poucos privilegiados.
Como a suposta vinculação à lista tríplice da ANPR não existe na Lei Maior brasileira, só pode estar na Constituição da República de Curitiba. Esta é promulgada por aqueles que querem impor suas vontades esfrangalhando as leis postas e a Constituição ainda em vigor em terras tupinambás, com projetos como “10 medidas contra a corrupção”, combate à lei de abuso de autoridade, execução de pena após condenação em segunda instância, dentre outras excentricidades.
Digo “Constituição ainda em vigor” porque desconhecemos a inteireza da Carta Magna curitibana e se há alguma previsão nela de ab-rogar a nossa trintagenária Carta Política. Talvez a ANPR tenha um exemplar e possa nos remeter.
Fonte: Poder 360
Créditos: Demóstenes Torres