Vera* estava vulnerável, deitada em uma maca de hospital, anestesiada, quando tomaram por ela uma importante decisão. A paciente deu à luz sua terceira filha, aos 27 anos, em 21 de fevereiro de 2008, por meio de cesariana. Em seguida, a responsável pelo parto, no Hospital Materno Infantil (HMIB), fez nela uma laqueadura de trompas sem consultá-la.
A informação consta em laudo pericial do Processo nº 2013.01.1.103681-8, transitado em julgado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), com decisão favorável a Vera, quatro anos depois do seu pedido à Justiça.O Metrópoles teve acesso às 284 páginas do conteúdo.
A criança nascida dez anos atrás não resistiu a uma doença genética e morreu após 8 meses. Vera já tinha duas filhas e queria mais um bebê com o segundo marido. Sem saber da infertilidade, tentava engravidar.
O filho esperado não veio e ela iniciou tratamentos com hormônios, em 4 de fevereiro de 2011. Um exame de videolaparoscopia, em 4 de março de 2012, revelou a inutilidade de qualquer tentativa, ao apontar a realização de uma até então desconhecida laqueadura tubária.
Vera procurou o centro de saúde onde havia passado pela última cesariana, mas não encontrou qualquer registro do procedimento de ligadura. Em seu prontuário, está escrito que “o parto ocorreu sem intercorrências” (leia o documento abaixo). O caso é narrado na ação judicial, que tem como objetivo um pedido de acesso prioritário ao tratamento para fertilidade na rede pública do DF.
A conclusão do relatório médico aceito como prova pericial atesta a realização da cirurgia sem a autorização da paciente:
“A laqueadura tubária (esterilização cirúrgica) foi realizada sem o consentimento da autora ou de seu companheiro. E pela técnica empregada com fimbriectomia o único tratamento disponível no momento é a fertilizaçãoin vitro. E, considerando que a autora está inscrita no programa de reprodução assistida do HMIB desde 24 de janeiro 2012 e no momento está com 35 anos de idade deve ser realizado o mais rápido possível para aumentar as chances de sucesso.”
Batalha judicial e drama familiar
Após descobrir o motivo das dificuldades para engravidar, Vera cadastrou-se para fazer fecundação artificial no mesmo hospital onde tornou-se infértil compulsoriamente. De acordo com os advogados dela, essa seria a maneira do próprio Estado reparar o erro, constatado por juízes e desembargadores, que deram parecer favorável à paciente.
Moradora de Ceilândia e dona-de-casa, ela não tinha recursos para pagar pelo tratamento que custa cerca de R$ 30 mil na rede particular. No processo também há informação sobre a morte das duas meninas mais velhas de Vera, em um acidente datado de janeiro de 2013, o que teria deixado-a sem nenhum filho e piorado o quadro de depressão.
O HMIB é o único lugar a fazer ciclos de fertilização pelo Sistema Único de Saúde no DF. Há uma extensa fila de espera, com tempo médio de duração de 5 anos. Ela entrou na Justiça em 2013 e só quatro anos depois recebeu resposta definitiva favorável a seu pedido, em 2017.
“Ante a impossibilidade de a apelada autora produzir prova de fato negativo, ou seja, de que não autorizou a laqueadura tubária, incubia ao DF apresentar o seu prontuário contendo a descrição cirúrgica da última cesárea e comprovar a existência de consentimento, como prevê o artigo 10 da Lei nº 9.263/96”, escreveu a desembargadora Vera Lúcia Andrighi, do TJDFT.
GDF retardou pedido de fertilização
A Procuradoria-Geral do Distrito Federal (PGDF) recorreu das decisões judiciais e se recusou a conceder a prioridade, até ser estabelecida última sentença favorável à autora do processo, assinada pela desembargadora.
Em sua argumentação, o advogado do GDF afirmou não haver qualquer justificativa para que a paciente fosse atendida na frente das outras. Escreveu também que “beira o absurdo admitir um pretenso e alegado erro médico como critério suficiente a, nos termos da sentença, possibilitar à autora o direito de passar na frente dos outros inscritos no programa de assistência”.
No Parecer nº AS009.675/2013, assinado pela gerência de perícias da PGDF, o perito resgatou o histórico médico de Vera. Ela já havia passado por 7 gestações, com 6 intercorrências: 3 abortos, 1 óbito fetal por hidrocefalia, 1 óbito neonatal e 1 parto prematuro. “Por esse passado obstétrico justificaria a realização de laqueadura… mas não há registro formal no prontuário da autorização.”
A defensoria pública, responsável por representar Vera, classificou a fala do perito sobre o passado como “uma tentativa débil de mascarar a existência de um grave erro médico, que tirou da autora a possibilidade de ser mãe”. E ressaltou que a lei proíbe esterilizar uma mulher sem autorização expressa em qualquer situação.
“O estado não pode se valer da própria torpeza — considerando a falta de eficiência na gestão da saúde e falta de adoção de políticas públicas — para afirmar que a demanda individual da autora, pleiteando a realização da fertilização in vitro, cria risco de prejuízo à saúde de toda a coletividade”, argumentou a defensoria.
Consta nos autos que, antes da decisão sair, a vez de Vera na fila do programa no HMIB chegou e ela passou por três ciclos de fertilização, tendo aborto espontâneo no final das tentativas. A médica que assina o prontuário da paciente não é citada no processo nem foi investigada.
“Tortura de estado”
A antropóloga, professora na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética –, Débora Diniz classifica a prática de esterilização involuntária como tortura de estado. “Essa mulher foi submetida a uma mutilação do corpo por agentes estatais. Ela só descobriu isso em um exame de rotina. Há uma perversão nesse silêncio. Por que nunca se falou nesse processo?”, questiona a especialista em direitos reprodutivos.
Vera não foi localizada pela reportagem, apesar de várias tentativas. A Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde – Pró-vida, do Ministério Público do DF e Territórios, também não a encontrou e, por esse motivo, arquivou a averiguação sobre esterilização não autorizada.
Outro lado
O Metrópoles procurou a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) e questionou se houve investigação sobre a esterilização sem consentimento. A pasta enviou a seguinte resposta:
“A Secretaria de Saúde informa que V. passou por três sessões de transferência de embriões, sem passar à frente de nenhuma paciente que já estava na fila, ocorridas nas seguintes datas:
– 1ª transferência realizada em 28/6/2017 — dois embriões;
– 2ª transferência realizada em 4/9/2017 — dois embriões;
– 3ª transferência realizada em 8/11/2017 — dois embriões. Essa terceira tentativa resultou em gravidez que, infelizmente, foi finalizada por abortamento espontâneo. As condições de saúde da paciente estão sendo avaliadas pela equipe médica para a possibilidade de uma segunda tentativa”
V. não apresentou à pasta nenhuma denúncia sobre o ocorrido. Dessa forma, não tramita nenhuma investigação interna sobre o assunto. A SES reitera que a decisão judicial em favor da paciente foi plenamente atendida. Atualmente, V. está inserida no Programa de Fertilização in vitro do Hospital Materno Infantil.
A médica citada (por assinar o prontuário da paciente) está aposentada.
Desrespeito à autonomia
Esse é o terceiro caso de esterilização não autorizada divulgado em um mês pela imprensa. Janaína, mulher em situação de rua e usuária de drogas, tem seis filhos e a Justiça a considerou incapaz de tomar as próprias decisões.
“Não há dúvidas de que somente a realização de laqueadura tubária na requerida será eficaz para salvaguardar a sua vida”, escreveu o promotor Frederico Liserre Barruffini, de Mococa (SP). O juiz Djalma Moreira Gomes Junior então condenou, em outubro de 2017, o município a fazer o procedimento em Janaína, logo após o parto do sexto filho.
A mesma dupla de promotor e juiz também determinou a laqueadura em Tatiana, uma pessoa com deficiência. Nesse caso, o promotor afirmou que “tanto a curadora quanto os órgãos da rede de proteção de Mococa entendem ser imprescindível que a requerida seja submetida à esterilização (…)”. A ação judicial foi iniciada logo após o segundo parto de Tatiana, que, mesmo sendo considerada incapaz, assinou termo de consentimento.
Com isso, veio à tona debate nacional sobre direitos reprodutivos e a respeito da autonomia feminina com relação ao próprio corpo. A Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, entrou com representação no Ministério Público Federal questionando a atuação do promotor e do juiz. Também acionou o Conselho Nacional de Justiça e avalia levar a questão à Organização dos Estados Americanos (OEA). Gomes e Barruffini não quiseram se manifestar sobre os casos.
*Nome fictício para proteger a identidade da vítima
Fonte: Metrópoles
Créditos: Leilane Menezes