Para professor de filosofia da Unicamp, escolha do juiz foi “golpe de mestre” do presidente eleito, mas também lhe traz riscos
Deixar as diferenças de lado e governar para todos será um dos grandes testes para o presidente eleito, Jair Bolsonaro, que toma posse daqui a 51 dias. Na avaliação do filósofo Roberto Romano, professor de ética e política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as semelhanças de Bolsonaro com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que tem governado “apenas para quem o sufragou” — é um exemplo negativo, que não deve ser seguido pelo futuro chefe de Estado brasileiro. Do contrário, poderá ver resistência de opositores e o enfraquecimento do apoio vigoroso que recebeu do eleitorado.
A escolha do juiz Sérgio Moro para ministro da Justiça é, na avaliação do professor, um sinal positivo em vários aspectos. À sociedade, traz garantias do respeito a direitos que alguns grupos veem como ameaçados no novo governo. À gestão de Bolsonaro, proporciona maior força e respeitabilidade. “Foi um golpe de mestre”, resume. Mas também embute riscos: Moro pode se mostrar um rival do próprio presidente eleito. A seguir, os principais trechos da entrevista que Romano concedeu ao Correio.
A eleição de Jair Bolsonaro surpreendeu?
Não. De maneira nenhuma. Está perfeitamente dentro do previsível, dadas as sedimentações sucessivas que nós temos na ordem política brasileira desde o século passado, quando tivemos duas ditaduras, dois governos autoritários, entremeados de governos autoritários civis, por exemplo, o de Juscelino Kubitschek. Não foi uma tempestade em dia claro. Foi previsível, analisadas as estruturas da sociedade e do Estado brasileiro, muito pouco democrático, republicano e federativo.
Por que o governo JK foi autoritário?
Em cima de uma ideia de país, interiorização do desenvolvimento e de planejamento, ele se impôs em relação à sociedade e, para isso, precisou de muito autoritarismo, da presença forte do presidente. Inclusive, enfrentou revoltas militares, como a de Aragarças, e teve de usar toda a força que tinha junto às Forças Armadas. Não foi tipicamente liberal. Havia um plano determinado a ser imposto, tanto econômico quanto social.
E o governo Bolsonaro? Espera que terá um viés autoritário?
Com certeza. Não vejo no horizonte grandes expectativas de diálogo, o que seria muito desejável. Não vejo planos de um fortalecimento do Estado de direito. Vejo no horizonte muita tensão entre os três poderes e os setores da sociedade. Mesmo no plano das elites econômicas, boa parte dos acenos que Bolsonaro fez durante a campanha não está podendo ser cumprida. E são notáveis alguns interesses predominantes no Congresso Nacional. As famosas bancadas BBB (Bala, Bíblia e Boi)… Acho que é muito difícil conciliar interesses contraditórios num país com tantas carências tecnológicas, de pessoal, entre outras.
Qual é a avaliação dos primeiros dias de Bolsonaro como presidente eleito? Confirmou expectativas? Teve surpresas?
As duas semanas foram mais suaves do que o programa apregoado durante a campanha. Ele fez um ato importantíssimo de propaganda e legitimação ao contratar Sérgio Moro para o Ministério da Justiça. Foi um golpe de mestre. Mas, como vários analistas observam bem, ele pode ter trazido para dentro do governo um rival que pode fazer sombra. Pode divergir em certos aspectos do programa ou dos mandados em relação, por exemplo, às manifestações do MST (Movimento Sem Terra). Ficou claro, na entrevista do Moro, que ele não compactua com a tipificação desses movimentos como terrorista. Isso pode trazer problemas para Bolsonaro.
Para Bolsonaro, pode ser um problema. Mas, para a sociedade, é vantagem ter Moro em vez de outro nome?
Não sou adepto do “menos ruim”, mas conheço muitos juristas, juízes e promotores que, se tivessem no Ministério da Justiça, causariam um dano bem maior à vida pública do brasileiro do que Sérgio Moro.
Com a chegada de Bolsonaro à Presidência, fechamos um ciclo de governos que tinham uma certa semelhança?
Sim. Chegamos à perfeição do modelo. No período getulista, tivemos uma ditadura imposta de cima para baixo, com forte ajuda das Forças Armadas. Depois, o Golpe de 1964, com apoio das elites econômicas e de todo um setor mais conservador da sociedade. Mas, ambos os movimentos foram de cooptação de massas e não de eleição desses sistemas. Nem Getúlio nem os generais foram eleitos por voto popular. Hoje, temos um militar eleito por voto popular, por maioria. Isso faz com que esse modelo de governo autoritário não seja apenas um governo imposto verticalmente, mas, de fato, surge de baixo para cima.
E por que isso aconteceu? Quais mudanças na sociedade levaram à possibilidade de eleição de um governo com viés autoritário?
Isso está ligado, no meu entender, ao fracasso do Estado brasileiro de promover políticas públicas adequadas para as grandes massas urbanas. O mundo e o Brasil, particularmente desde o século 20, se urbanizaram de maneira exponencial. E um momento político importante foi o período JK. A marcha para oeste seguia adiante. Foram criadas cidades de uma hora para outra. Essas cidades exigem serviços públicos: rede de esgoto, escola, saúde, segurança, tudo isso. E a máquina do Estado não arrecada e não produz tecnologia suficiente para entender essas urbes. Em números, 60% dos municípios não têm água e esgoto. Quando, em 2013, tivemos aquelas manifestações imensas, elas começaram com reivindicações de ordem de transporte. E o governo de esquerda achava que os protestos eram de direita e ameaçavam a gestão de Dilma Rousseff. O que tivemos foi uma progressão de revelações dessas insatisfações das massas. As pessoas foram às ruas reivindicando educação, saúde e segurança padrão Fifa. Com essa enorme desorganização, instalou-se a tendência de aumento do conservadorismo. As massas não estão interessadas imediatamente em sistemas de liberdade, direitos humanos, mas em exigir serviços públicos minimamente garantidos.
E o governo Bolsonaro tem capacidade de entregar isso?
Essa é a grande ilusão que tem sido reiterada desde o fim do governo Getúlio, com o famoso mar de lama. As críticas foram feitas no governo JK justamente pela corrupção com empreiteiras. Depois, militares exploraram o tema da ineficácia do Estado. E Luiz Inácio Lula da Silva, cujos primeiros atos de governo foram justamente anunciar que tinha acabado a corrupção no Brasil. A ineficácia continua e, nesse contexto, sempre vai aparecer partido, grupo ou indivíduo que vai ser um salvador da pátria e resolver todos os problemas. E a tendência é criar fantasmas, em sua base real, porque a corrupção é uma coisa efetiva, mas aumentar de modo a encontrar um grande limpador, como é o caso do Jânio Quadros, com a vassourinha, no caso dos militares, de Collor ou até mesmo de Lula, que prometeu finalmente instaurar a ética na política.
Foi uma eleição marcada por símbolos, em ambos os lados. Como Bolsonaro se tornou essa figura?
No caso do Bolsonaro, foi um investimento de todo o setor mais conservador da sociedade, que, não encontrando nos partidos políticos representantes e lideranças, desaguou nele toda a esperança e os desejos. Com o advento da internet e do celular, esse ressentimento se traduziu muito mais rapidamente, inclusive com produção de notícias falsas. Bolsonaro é uma liderança que foi produzida rapidamente como uma espécie de condensador de ressentimento e de decepção das grandes massas urbanas com o sistema do Estado brasileiro.
Há uma expectativa muito grande de mudança em relação ao combate à corrupção e aos serviços públicos, principalmente na área da segurança.
Acho difícil que consiga entregar. Sou bastante ligado à Teoria Mecânica do Poder. Não sou organicista no sentido romântico da palavra. O Estado é uma máquina que tem um funcionamento e que precisa de atualizações para que lhes possa atender a demanda de trabalho que dele se espera. Se existe uma população imensa, é necessário que o Estado se flexibilize, se atualize, adote técnicas de governanças eficazes. O Brasil ainda é o país do cartório.
Mas Paulo Guedes diz que quer mudar tudo isso.
Não dá para acreditar. É um sistema que não veio de ontem. Não temos um Estado em que a renda dos impostos é distribuída entre os municípios. Sempre existe toma lá dá cá e burocracia. Quando Paulo Guedes diz isso, me lembro de Hélio Beltrão (ministro da desburocratização de 1979 a 1983). Depois dele, continuaram os cartórios como imperadores no Brasil, e as firmas brasileiras se tornaram cartoriais. O absolutismo caiu faz pelo menos dois séculos, mas o Brasil mantém o modelo: o Estado é superior ao simples pagante de impostos. Chamo isso de absolutismo anacrônico, o que, sinto muito, Paulo Guedes não vai mudar rápido assim.
E qual é a sua perspectiva de sustentabilidade do próximo governo? Tanto em termos políticos quanto eleitorais?
O básico é que ele consiga uma legitimação mais ampla do que o número de votos que obteve. É necessário que Bolsonaro prove para quem não votou nele que ele é o presidente de todos e não apenas dos que o sufragaram. O modelo Trump, por exemplo, está dando errado, porque o presidente dos Estados Unidos continua querendo governar apenas para quem o sufragou e, portanto, aqueles que não estavam tão convencidos assim da sua liderança estão passando para outro barco. Em termos estratégicos, o primeiro elemento para que ele mantenha sua eficácia governamental e legitimidade é ter esse diálogo com o setor vencido. E, para isso, é necessário que ele saiba atenuar reivindicações dentro da sua própria área, inclusive no ponto de vista empresarial. Há múltiplos interesses econômicos e industriais que estão em jogo. Aqui no Brasil, se tem uma prática terrível de definir licitações a priori. É necessário que o famoso liberalismo pregado por Paulo Guedes seja (liberalismo) de fato, que o princípio da livre concorrência apareça. Se não, ele vai acumular aos reclamos dos vencidos o reclamo dos não satisfeitos com o processo de desenvolvimento econômico.
A elite empresarial esteve em peso com Bolsonaro. Por que isso aconteceu?
Essa questão de pensar em longo prazo, fora dos recursos governamentais, não entra muito nos cálculos dos empresários brasileiros. Também tem a questão do planejamento em termos políticos. Nosso empresariado vive sempre da conjuntura, ao sabor do movimento da Bolsa de Valores, e não pensa à frente. Aqui, você tem essa dependência. Mas não levaram em conta que outros interesses hegemônicos podem ser essenciais.
E qual é a aposta?
Isso só poderemos saber depois de, pelo menos, um ano de governo. Estamos vendo rateios por parte da equipe de Bolsonaro. Afirmações terríveis, não apenas desastrosas, mas errôneas. Por exemplo, essa história de “dar uma prensa no Congresso” é um erro estratégico tremendo. Ele vai precisar do apoio do Congresso. Até a posse, vamos ter momentos de erros, de exageros de grupos de interesse dentro da equipe e, durante um ano, veremos se ele vai levar uma prática equilibrada de governança. No caso do Collor, ele foi eleito com aquela festa toda e deu um tiro no pé no primeiro dia de governo, com o confisco das poupanças. Se Bolsonaro fizer alguma coisa nesse sentido, terá um destino muito próximo.