
No Carnaval de 1964, as rádios e as ruas brasileiras começaram a tocar sem parar a marchinha Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly.
– Será que ele é, será que ele é?
A resposta para a pergunta era (e ainda é) entoada em uníssono por foliões Brasil afora:
– Bicha!
Embora os foliões heterossexuais entoassem a palavra com uma conotação pejorativa, os frequentadores dos bailes gays da época, especialmente no Rio de Janeiro, gritavam o mesmo, mas como uma afirmação de sua identidade sexual.
Durante muito tempo, no Brasil, aqueles quatro dias de folia de Carnaval eram a única oportunidade de homossexuais e pessoas trans (mesmo que, naquela época, não se afirmassem dessa forma) demonstrar publicamente algum tipo de transgressão aos padrões da sociedade.
Não era só nos bailes fechados com concursos de fantasia — que tinham cobertura garantida nas principais revistas do país —, mas também em cortejos de homens vestidos de Carmen Miranda ou em filmes eróticos gays produzidos por estrangeiros que voltavam do país impressionados com a nossa “liberdade” tropical.
Essas imagens, diz Green em entrevista à BBC News Brasil, reforçavam “estereótipos sobre o Brasil, como se fosse um país super aberto, liberal, sem considerar o fato que é uma cultura muito conservadora em vários sentidos, apesar dessa liberdade que tem durante os dias do Carnaval”.
O Carnaval vendeu, então, dentro e fora do país, a imagem de uma convivência pacífica da sociedade brasileira com a homossexualidade e a bissexualidade.
Para Green, que é professor de história do Brasil na Universidade Brown, uma das mais respeitadas dos Estados Unidos, isso mostra a complexidade religiosa-festiva que é parte da sociedade brasileira.
“De um lado, há essa sociedade católica, evangélica, conservadora, com uma valorização enorme da família nuclear, e, do outro lado, esses momentos de escape, de liberdade, em que as pessoas aproveitam para se sentir mais relaxadas numa sociedade rigidamente hierarquizada e repressora”, defende o brasilianista, também fundador no país do movimento Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, em 1978 e autor de livros sobre a ditadura militar no Brasil.
BBC