" eletroconvulsoterapia"

Ministério da Saúde recomenda choque elétrico para tratar autistas ‘de comportamento agressivo’

A Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – SUS), vinculada ao Ministério da Saúde, publicou em novembro o relatório ‘Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Comportamento Agressivo no Transtorno do Espectro do Autismo’, no qual defende a eletroconvulsoterapia (ECT). Esse procedimento gera estimulação cerebral por corrente elétrica e provoca convulsões para controlar a pessoa.

O documento (página 24, item 7.3) relembra que o uso da eletroconvulsoterapia na psiquiatria e na neurologia “declinou de maneira significativa na década de 1970 com o avanço das terapias farmacológicas, uma cobertura midiática inadequada durante a luta antimanicomial e relatos de pacientes que foram submetidos a essa técnica sem uma indicação adequada ou até de maneira punitiva”.

Apesar disso, a Conitec diz no relatório que o tratamento tem “resultados promissores” porque “a técnica empregada utiliza aparelhos mais modernos, permitindo uma regulação mais adequada da carga, a possibilidade de controlar o comprimento de onda utilizada e a frequência do disparo da corrente elétrica. Além disso, para conforto e segurança do paciente, são empregados anestésicos, bloqueadores musculares e fármacos que evitam os efeitos do procedimento”.

Para Fátima de Kwant, especialista em autismo, desenvolvimento e comunicação, criadora do Projeto Internacional Autimates e administradora da comunidade Pró-Autismo, liderada pelo apresentador Marcos Mion, o tratamento de choque jamais deve ser usado em pessoas autistas.

“Minha principal preocupação é sobre o uso nas emergências do SUS. É um tratamento tão invasivo que não dá para ser rotina. Eu considero ainda precoce que seja aplicado sem maiores pesquisas e conclusões de vários cientistas da área. Principalmente porque se ficar a cargo do SUS, já sabemos que pode ser um desastre. Então, no momento, eu me coloco contra esse tipo de tratamento”, diz Fátima.

O pediatra e neurologista infantil Clay Brites, do Instituto NeuroSaber, afirma que pessoas autistas precisam de atendimento de qualidade no sistema público.

“A eletroconvulsoterapia é um retrocesso e uma política de saúde equivocada porque o autismo não pode ser encarado como um processo no qual essa terapia vai resolver todos os problemas. A liberação em centros específicos ou generalizados do SUS é temerária. Antes dessa preocupação, o SUS deveria buscar o atendimento correto, multidisciplinar, aplicado de maneira ampla, com as famílias, e melhorando o acesso aos pacientes que mais precisam”, defende Brites.

Fátima de Kwant afirma que investir em terapia comportamental, ocupacional e medicação é a melhor alternativa. “Não acredito que o ECT será efetuado com anestesia e depois de um exame clínico completo (para saber do estado físico do coração e pulmões do paciente). No dia a dia, temo que vá traumatizar mais ainda a pessoa autista. Imagino o dilema do médico que já tentou todo tipo de medicação e terapias, mas o paciente segue se autoflagelando, quebrando a casa, atacando parentes. Na verdade, é impossível a gente se colocar no lugar de todos. Minha primeira impressão é a de tentar de tudo, menos tratamentos invasivos’, completa.

Clay Brites chama a atenção para as diversas características de pessoas autistas. “Enfrentam dificuldades na percepção social, nas interpretações amplas e subliminares, que exigem leitura de comunicação não verbal, capacidade cognitiva de processos que envolvem empatia e, principalmente, não são todas as pessoas autistas que têm comportamentos agressivos. Por isso, é preciso ter muito cuidado com qual tipo de procedimento será usado para resolver problemas que a eletroconvulsoterapia não irá solucionar”, observa o neurologista.

“Como ser humano e mãe de uma pessoa autista, considero esse tipo de tratamento deprimente. É sempre possível tratar a agressividade sem usar o choque”, diz Fátima de Kwant. “Quando há exceção, é fundamental ter a aprovação do paciente, que seja feito com planejamento, método e equipe multidisciplinar, vários profissionais, para ajudar a pessoa. E o paciente totalmente de acordo. Envolve ética, direitos humanos e muitas outras reflexões”, afirma a especialista.

“A Conitec faz a recomendação, mas o Ministério da Saúde precisa ter uma visão muito mais abrangente de saúde pública em relação ao autismo, algo que não existe no Brasil, apesar da legislação, sem a existência de serviços públicos especializados e direcionados. Essa tem de ser a prioridade”, reforça Clay Brites.

O pediatra lembra que a linha mestra de tratamento do transtorno do espectro autista envolve o uso de remédios (farmacológico), terapias comportamentais, de intervenção desenvolvimental e sensorial, com ajustes de ambiente, psicoeducação e estratégias, inclusive na escola, para saber como lidar com comportamentos mais difíceis.

“Antes da indicação da eletroconvulsoterapia, é muito importante que a pessoa seja bem avaliada e completa, do ponto de vista multidisciplinar, com um diagnóstico amplo e bem definido, detalhado, com todas as características de cada pessoa, além a adoção dos tratamentos primeiramente mais indicados, que têm mais eficácia e segurança”, diz Clay Brites.

O médico alerta que a eletroconvulsoterapia é uma opção secundária. “Você já fez de tudo, todas as medidas foram tomadas, todas as atitudes, mas nada resolveu, é obrigatório fazer um avaliação clínica, inclusive sobre as possíveis sequelas e se a pessoa pode realmente receber o tratamento”, orienta o neurologista.

Clay Brites ressalta que a terapia de eletrochoque não tem resultados milagrosos e altamente satisfatórios. “Só pode ser buscado depois que tudo já foi feito”, defende.

“O diagnóstico e a intervenção precoces são os melhores tratamentos para a pessoa autista, com aplicação de estratégias comportamentais e desenvolvimentais, em ambientes clínico e natural da pessoa. Essa linha ajuda a reduzir os quadros agressivos e as comorbidades que geram comportamentos difíceis”, afirma o médico.

O neurologista destaca que os protocolos da Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association), da Academia Americana de Pediatria (American Academy of Pediatrics – AAP) e os consensos internacionais dos países que já apresentam diretrizes (guidelines) sobre autismo não colocam a eletroconvulsoterapia como uma indicação automática ou preferencial. “É indicado quando nada mais funciona”, alerta Brites.

Fátima de Kwant mora na Holanda e ressalta que, no país europeu, a eletroconvulsoterapia só é usada para tratar depressão, com sucesso. Ela observa que cientistas acreditam no uso para pessoas autistas com autoflagelação e cita Jan-Otto Ottosson, que considera a ECT controversa, porque mexe com a ética do direito médico, mas entende que nenhuma pessoa deveria ficar privada do único tipo de tratamento que possa melhorar seu estado.

A Conitec abriu neste mês uma consulta pública para aprovação da proposta e já indicou sua recomendação favorável à atualização do protocolo com a eletroconvulsoterapia.

“Para manejo do comportamento agressivo no TEA, é fundamental que os profissionais de saúde orientem suas práticas de atenção à saúde com base nas melhores evidências científicas disponíveis. Neste contexto, o PCDT constitui um instrumento que confere segurança e efetividade clínica, de modo organizado e acessível. Profissionais de saúde envolvidos no processo de cuidado, prescrição de medicamentos e gerenciamento da condição clínica na atenção primária, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e serviços especializados são os usuários alvo desse PCDT. O material irá colaborar para o trabalho de profissionais como psiquiatras, pediatras, psicólogos, psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos e profissionais da saúde envolvidos no atendimento de pacientes com autismo, pacientes e familiares, equipe do CAPS e gestores em saúde (público e privado)”, diz a Comissão.

Fonte: ESTADÃO
Créditos: Polêmica Paraíba