O tio da Izadora da Silva por pouco não a deixou com um pavê só pra ver. “Foi uma briga um pouco feia”, lembra a estudante sobre o jantar em que terminou batendo boca com o parente sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), que ela desaprova, e ele defende.
“Ele ficou extremamente bravo comigo, saiu, voltou com um doce que eu queria muito: ‘Você, não’. Meu tio literalmente veio com o pavê e não me deixou comer.”
Depois ele disse que estava brincando, e Izadora não ficou sem sobremesa.
Braian Rosário, de centro-esquerda, conta que passa por isso com o pai. “Ele é de direita, fanático pelo Bolsonaro. Não tem nem a questão da ideologia. Se Bolsonaro for hoje pro PT, ele vai apoiá-lo mesmo assim.”
Essa atmosfera bélica que desarranja relações no lar e também na escola, reconhece a turma, tem um efeito alergênico que afasta os colegas do debate político.
A maioria dos amigos não se interessou em tirar o título de eleitor, mesmo já podendo, pelas regras do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O prazo vence nesta quarta-feira (4).
Nicolas Duarte escuta muito que votar é “mais uma responsabilidade chata da vida de adulto” que adolescentes que terão 16 ou 17 anos no dia do primeiro turno preferem deixar “para quando for obrigatório”.
Afinal, para que se aborrecer de ir às urnas num domingão se o tema provoca tanta briga entre adultos? Fora a sensação de que nada vai efetivamente mudar.
“A gente cresce vendo [a política] como uma coisa ruim, todo mundo que subir lá vai ser corrupto e ponto”, diz Izadora.
Leticia Stella —que não simpatiza nem com Lula nem com Bolsonaro— organizou na escola uma campanha para colegas pedirem o registro no TSE.
“Vejo muitos jovens reclamando do atual governo, mas poucos tirando título para fazer a mudança.”
Juliana Santos tirou o seu em 2021, justamente para tentar remover Bolsonaro de Brasília. “Se já pode votar com 16 anos, por que não se impor?”, questiona ela, que faz parte da rede do Amplia, movimento que apoia o ingresso ao Ensino Superior.
Seria bom, contudo, ser levado a sério uma vez só, para variar.
“A pessoa mais velha de idade se refere ao jovem como ‘ele não sabe de nada’ quando a gente diz em quem vai votar”, reclama o lulista Igor Henrique, que sente falta de maior atenção para a periferia nos programas de governo.
“Como a gente é o futuro do país se não palpita na política?”, pergunta Braian.
Esquerda e direita vêm promovendo ações para que essa faixa etária vire eleitora num pleito que promete ser acirrado.
Até Leonardo DiCaprio, filiado a valores progressistas, fez um apelo —o ator americano incentivou jovens a serem “a chave na promoção de mudança para um planeta saudável”. Bolsonaro, não sem ironia, agradeceu. “Obrigado pelo seu apoio, Leo!”
O grupo que foi à sede do jornal na semana passada sabe que é exceção. Oito deles já têm o título, e um disse que ainda iria tirar o seu. Até o final de abril, mais de 1,6 milhão de adolescentes (26% dessa população) havia se cadastrado para votar.
Só uma participante da roda de conversa, a Izadora, não votará neste ano. Mas não por escolha própria: a mãe não deixou. “Ela acha que o jovem não tem muita consciência sobre o voto correto. Em parte não tiro a razão dela.”
O perfil do grupo é plural. Seis estudam em escola pública. Dois escolherão Lula (PT) em outubro, e dois optarão por Bolsonaro. O resto se espraia entre a terceira via da centro-direita, ainda sem candidato definido, Ciro Gomes (PDT), um presidenciável nanico da esquerda, Leonardo Péricles (UP), e o voto nulo.
Nenhum deles era nascido quando Lula chegou ao poder, em 2002, depois de perder três eleições. O petista já não era mais presidente quando os protestos de junho de 2013 fomentaram uma difusa insatisfação popular com a política, que acabou favorecendo movimentos de direita.
É a memória política mais antiga desses jovens que têm lembranças agitadas dos dois últimos ciclos presidenciais, 2014 (o do acidente de avião que matou um candidato, Eduardo Campos) e 2018 (a prisão de Lula e, perto do primeiro turno, a facada em Bolsonaro).
Apontam ainda o impeachment da petista Dilma Rousseff, alguns com pesar (“é golpe!”), outros como um despertar político.
Foi dessa época que surgiu o MBL, que ajudou a consolidar uma direita jovem no país à base de muitos memes.
Nicolas se inclui nesse pacote, embora não tenha gostado nem um pouco dos áudios em que um expoente do movimento, Arthur do Val (União Brasil), diz que ucranianas são “fáceis” de pegar por serem pobres, entre outras falas sexistas gravadas durante uma visita ao país em guerra com a Rússia.
Ele credita ao MBL sua iniciação na política. “Foram eles que me mostraram uma visão alternativa e mostraram que os políticos estão lá pelos privilégios, e não para trabalhar.”
Para Nicolas, Kim Kataguiri (União Brasil), um dos líderes, é exemplo de deputado antenado com os anseios da juventude, até por fazer parte dela —tem 26 anos. Ele mescla, por exemplo, músicas de animes, estilo de animação pop entre os mais novos, e conteúdos políticos.
Sem candidato desde que Sergio Moro saiu do páreo eleitoral, o estudante diz que Bolsonaro está mandando bem entre gamers, com iniciativas para reduzir o imposto sobre jogos.
“Numa sociedade leiga, pode ser uma jogada de marketing mesmo. Pode atrair jovens”, diz o fã de “Doom Eternal” e “Halo Infinite”, games em que o objetivo é atirar em inimigos.
Pedro Millen, bolsonarista entusiasmado e fiel da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, a igreja de Silas Malafaia, aprecia o uso de redes sociais para semear valores conservadores.
“Considerando que a maioria da população não tem conhecimento [político], um tuíte rápido, um [vídeo no] TikTok, são muito bons para passar a mensagem.”
Envia exemplos de memes por WhatsApp. Num deles, a foto de Stevie Wonder, o músico cego, e a legenda: “Nunca vi um político honesto”. Outro traz uma montagem de Karl Marx como operador de telemarketing no Karl Center, proferindo o que seria uma frase pronta da esquerda: “Esse problema é devido ao sistema capitalista, mais alguma pergunta?”.
Anitta ocupa bons minutos do papo. Todos concordam que a popularíssima cantora, que vem travando embates virtuais com o presidente e aliados, tem poder de persuasão com a moçada. Só não há consenso se isso é bom ou ruim.
Victor Carneiro admira Jones Manoel, historiador pernambucano de viés marxista que, segundo Caetano Veloso, foi o responsável por torná-lo menos “liberaloide”. Manoel teria estofo para palpitar, “ao contrário de influenciadores como Anitta”, afirma Victor.
“Eu ia falar justo dela”, intervém Pedro. “Não creio que a Anitta tenha noção ou base para falar de política. Tanto que ela já falou sobre deputado municipal. O certo era vereador. Muito influenciador fala abobrinha.”
A confusão mencionada surgiu numa live em que a artista tirou dúvidas sobre política com a advogada e amiga Gabriela Prioli, em 2020.
A ideia era justamente aprender como funcionam Executivo, Legislativo e Judiciário, poderes com papéis pouco compreendidos pelo grosso do povo. “Beabá mesmo”, na definição de Anitta.
O episódio chegou a ser ironizado por Bolsonaro, que depois foi rebatido pela cantora.
“Isso mesmo, presidente, eu e mais da metade dos brasileiros não sabem quais são os Três Poderes. Não sabem, por exemplo, o dever do senhor, que ao invés de ficar preocupado com o que eu estou fazendo da minha vida, devia estar cuidando do país, não é mesmo?”
Já Letícia Perfeito, a única universitária do grupo e simpática a João Doria , achou “incrível, genial” a troca entre Anitta e Prioli. “Ela fazia perguntas teoricamente toscas, mas são dúvidas que a maior parte da população brasileira infelizmente tem.”
Todo mundo concorda que o peso de celebridades é gigantesco. Davi Ota, que divide a rotina de estudos com a carreira de pregador júnior, conta que aprende política também na igreja.
“Na minha opinião, a direita é certa, e a esquerda totalmente errada. Se a pessoa serve a Deus, não tem como, de uma fonte, jorrar duas águas ao mesmo tempo.”
A influência dos professores, em compensação, já foi maior. Os adolescentes dizem que muitos têm medo de serem acusados de tomar posição política na sala de aula e acabar sofrendo um “exposed” —como se diz, na internet, dos relatos que podem empurrar alguém ao linchamento virtual.
A preferência partidária de alguns docentes, porém, costuma ser cristalina em suas redes sociais, seguidas pelos alunos.
A educação política tem, sim, que estar na escola, mas sem partidarismos, dizem os estudantes. O que não vale brincar de “o mestre mandou”.
Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Polêmica Paraíba