“Um dos maiores retrocessos na segurança pública dos últimos tempos”. É assim que a diretora-executiva do Instituto Igarapé, Ilona Szabó de Carvalho, classifica o decreto sobre armas de Jair Bolsonaro. Com atuação e pesquisa na área há 15 anos, Ilona diz que a medida “potencializa o aumento de mortes no país e, sobretudo, o desvio de armas para milícias, facções e a criminalidade armada”.
A pesquisadora afirma que quanto mais armas em circulação, maior o número de mortes e cita dados do Datafolha que indicam a rejeição de 64% da população. “A sociedade está assustada. Segurança pública é uma responsabilidade do Estado e não do cidadão”, diz.
A seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: O decreto de Bolsonaro sobre armas é inconstitucional?
Ilona Szabó: O que posso afirmar é que, após conversas com juristas, eles têm apontado que o decreto é inconstitucional. É o mesmo parecer do Congresso. Ao assiná-lo, o presidente altera de maneira significativa diferentes dimensões da legislação atual que são de competência do Congresso, como o porte de armas, o tipo de armamento e o número de munições. O alerta que precisa ser feito é que o decreto não atua na regulamentação da lei, mas legisla a favor de grupos de interesse privado, que há anos investem na “bancada da bala”, da qual o presidente era parte quando deputado federal. Ou seja, um grupo pequeno é privilegiado em detrimento ao interesse e proteção de toda a população.
Valor: Qual é o efeito do decreto no Estatuto do Desarmamento?
Ilona: As evidências científicas mostram que o aumento do número de armas em circulação tem correlação direta com o aumento de mortes por armas de fogo. Ao incentivar o aumento de armas, o decreto potencializa o aumento de mortes no país e, sobretudo, o desvio de armas para milícias, facções e a criminalidade armada. Dados da CPI das armas do Congresso, do Exército e das polícias mostram que anualmente milhares de armas passam para a ilegalidade, e algumas das categorias mais beneficiadas pelo decreto, como os CAC (colecionadores, atiradores e caçadores), possuem alto número de armas desviadas e roubadas. Para se ter uma ideia, entre 2010 e 2016, os CACs reportaram ao Exército o furto, roubo ou perda de 5.808 armas de fogo.
Valor: Quais os principais pontos negativos ou positivos do decreto?
Ilona: O decreto é uma sucessão de más notícias. Eu destacaria: 1) a possibilidade do porte de armas para cerca de 20 categorias aleatórias, como caminhoneiros, deputados, conselheiros tutelares e moradores de áreas rurais, entre vários outros; 2) o aumento do número de munições que podem ser vendidas ao cidadão, passando de 50 para 5 mil cartuchos. Sem menção à marcação e associado à falta de controle desses estoques, que podem acabar abastecendo os grupos criminosos; 3) o aumento do poder de fogo do armamento agora permitido para a população civil que coloca em risco os profissionais de segurança pública e reduz o poder do Estado em fazer frente à criminalidade; e 4) a facilitação e retirada de mecanismos de controle ligadas à venda de armas e munição, o que apenas favorece os canais de desvio de armas para a criminalidade.
Valor: É permissivo demais?
Ilona: O decreto altera completamente o espírito da lei e não atende ao principal anseio da população, que é o de se sentir mais segura. O Estatuto do Desarmamento é uma lei abrangente de controle de armas que proíbe o porte para civis e estabelece critérios importantes para a posse. E faz isso porque a disponibilidade de armas de fogo é uma questão de segurança pública – responsabilidade primeira do Estado democrático de direito, que se sobrepõe a qualquer discussão sobre direito individual. Estudos comprovam que quanto mais armas em circulação, maior o número de mortes. No Brasil, o aumento de 1% na disponibilidade de armas de fogo aumenta a taxa de homicídios em 2%.
Valor: O argumento é que o cidadão teria o direito de se defender…
Ilona: A aprovação do estatuto, em 2003, reduziu o número de homicídios no país pela primeira vez depois de 13 anos de crescimento consecutivo. Além isso, o número de crianças mortas por tiro acidental em casa, que era de cerca de 20 por ano, caiu para a metade após aquele ano. Infelizmente, apenas algumas medidas previstas na lei foram implementadas. Diferentemente do que diz o presidente, a vontade da população não é se armar. Pesquisa recente do Datafolha mostrou que a maioria, 64%, é contrária à posse de armas e 72% creem que a sociedade brasileira seria mais segura se as pessoas não andassem armadas. A sociedade está assustada. Segurança pública é uma responsabilidade do Estado e não do cidadão. Em vez de atender a interesses privados e privilégios de um pequeno grupo, o presidente deveria trabalhar para implementar o Plano Nacional de Segurança Pública aprovado em 2018. O Instituto Igarapé, junto com o Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, elaboraram uma agenda, alinhada ao plano, e que mostra o caminho a ser seguido: investir em prevenção da violência, fortalecimento do controle de armas, valorização das polícias, reforma do sistema penitenciário e da política de drogas.
Valor: A escolha das categorias com direito ao porte é arbitrária?
Ilona: As categorias escolhidas não são fruto de nenhuma avaliação técnica. Ao que parece, é fruto da pressão de grupos de interesse privado que há muito tempo buscam privilégios no Congresso. Não há estudo ou dados que justifiquem. Além disso, mesmo a previsão legal de concessão do porte se refere a casos de exceção, que devem ser avaliados individualmente pela Polícia Federal. Há enorme preocupação com a vulnerabilidade desses profissionais que passarão a andar armados. A maioria dos policiais assassinados no país estava fora de serviço. Reagir definitivamente não é a opção mais segura e ainda acarreta em risco para outras pessoas.
Valor: O ministro da Justiça, Sergio Moro, disse que o decreto “não tem a ver com segurança pública” e foi decisão do presidente “em atendimento ao resultado das eleições”. A sra. concorda com a afirmação?
Ilona: Creio que o ministro Sergio Moro quis dizer que a medida não saiu do seu ministério, pois ele sabe que o controle de armas é uma parte essencial da política de segurança pública, sobretudo em um país como o Brasil, onde 70% dos homicídios são cometidos com armas de fogo. Segurança é política pública que deve priorizar interesses coletivos, ser planejada com evidências e atravessar governos, não atendendo apenas a uma eleição ou governante. O decreto dificulta ainda mais a atuação das forças de segurança e o enfrentamento da criminalidade. Hoje o policial tem no Estatuto do Desarmamento um grande aliado. Muitas prisões são inicialmente feitas por porte ilegal de armas e depois se verificam outros antecedentes criminais. A medida coloca enorme pressão também na Polícia Federal e no Exército, que já não têm hoje recursos suficientes para fiscalizar o cumprimento da lei de controle de armas. Em vez de avanços e planejamento responsável, o decreto representa um dos maiores retrocessos na segurança pública dos últimos tempos.
Fonte: Valor Econômico
Créditos: Valor Econômico