Por Durval Muniz de Albuquerque Jr
O regionalismo nordestino mostrou, mais uma vez, seu poder de mobilização. A paraibana Juliette Freire, nascida em Campina Grande, moradora de João Pessoa, venceu o BBB com mais de 90% dos votos. Numa edição planejada para contar com participantes que representassem as pautas identitárias (identidades étnica, de gênero, de orientação sexual), a advogada e maquiadora foi escolhida para e escolheu encarnar a identidade regional nordestina.
Como parte da novela mais barata e lucrativa exibida pela Rede Globo, já que conta com atores que representam personagens, que criam dramas e enredos, que criam cenas e encenações, sem serem remunerados, numa explícita exploração do trabalho, tolerada e legitimada, pois é um concurso, existe um prêmio em dinheiro e os participantes são voluntários, a moça branca, heterossexual, urbana, de classe média baixa, resolveu encarnar a personagem de nordestina.
Logo nas primeiras semanas do programa, aconteceu o que possivelmente esperasse: sua falação constante sobre si mesma, sobre sua vida, sobre sua trajetória, irritou dados participantes, que se referiram a seu sotaque regional de maneira pejorativa. Estava dado o passo decisivo para seu sucesso no programa.
Ao atacar Juliette justamente pelo que seria seu traço de regionalidade, os concorrentes deram a ela o trunfo que precisava para fazer todo seu marketing, tão bem conduzido por uma equipe de divulgadores nas redes sociais, que fizeram desse episódio o ponto de partida, o toque dos clarins para a mobilização regionalista.
Juliette conseguiu o que queria, passou a ser vista pelos nordestinos como sua representante, hostilizada e vítima de preconceito, uma verdadeira nordestina, orgulhosa de suas raízes e de suas origens.
A narrativa constante de sua trajetória de superação, de ascensão social através da educação, de resistência à discriminação das mulheres, tornou a sua personagem crível, em meio a tantas outras personagens que foram se desintegrando ao longo do programa. Sua personagem foi sendo vista como autêntica, como se alguém pudesse ser autêntico num palco, vigiado por câmeras até no banheiro, submetidos a uma situação totalmente artificial.
Num programa baseado em rituais de satisfação e sofrimento, em que verdadeiras torturas físicas e psicológicas são vivenciadas pelos participantes e assistidas com entusiasmo por um país onde a prática da tortura é naturalizada, a conexão de Juliette ao imaginário do sofrimento e da resistência às dificuldades, que caracteriza o personagem do nordestino, foi decisiva.
Ela passou a contar com milhões de seguidores nas redes sociais, que se identificaram com a narrativa que construiu e sustentou o personagem Juliette, que ela soube vender e representar como ninguém.
Numa novela da vida, venceu a melhor atriz, a que construiu o personagem mais genérico, aquele capaz de mobilizar amplos setores da sociedade, o que outros não conseguiram. Aquela capaz de ser passável para a sociedade estruturalmente racista, homofóbica, machista, misógina, que o programa só fez explicitar e reafirmar.
Embora seja uma moça urbana, vivendo numa cidade moderna, num bairro próximo ao mar, exercendo profissões liberais voltadas para um público citadino e privilegiado, a propaganda de Juliette soube mobilizar todos os signos clássicos e estereotipados do ser nordestino: passou a circular nas redes sociais seu avatar vestido de chapéu de cangaceiro, em meio a uma paisagem desolada, marcada pela terra seca, o sol e os cactos.
Ela, que fez questão de tornar seu personagem crível falando em comidas regionais, em manifestações culturais folclóricas e interpretando, como uma boa cantora – possivelmente sua verdadeira aspiração artística -, músicas de Alceu Valença e Chico César, que logo tornou-se seu seguidor, tornou-se motivo de versos de cordel e representações em que aparecia transformada em uma mulher cacto, com um colante verde brilhante, que mais parecia uma cobra verde.
Os seguidores de Juliette passaram a se designar como sendo Cactos, numa autoironia e, ao mesmo tempo, num gesto de afirmação regionalista. Sem saberem, atualizaram o personagem Mané Xiquexique, criado pelo deputado federal, intendente e prefeito de Fortaleza e governador do estado do Ceará, Idelfonso Albano.
No livro intitulado Jeca Tatu e Mané Xiquexique, publicado em 1919, o neto do Barão de Aratanha defendia o sertanejo, o caboclo do sertão, do que considerava ser a injúria lançada pelo escritor paulista Monteiro Lobato, contra esse personagem, em seu livro Urupês, ao criar o homem mole, sem fibra, que a tudo assistia de cócoras, o Jeca Tatu.
Como representante das elites do Norte, Albano cria esse homem-cacto para representar o que seria a resistência, a bravura, a capacidade de sobreviver do sertanejo, em um ambiente tão inóspito quanto a caatinga.
Um homem rústico, rude, agressivo, espinhento como um cacto, mas heroico e bravo em sua capacidade de adaptação a um meio hostil, sabendo criar alternativas técnicas e um estilo de vida em meio a tanta dificuldade. Uma espécie de Juliette a resistir e sobreviver ao meio hostil do BBB com a ajuda de seus irmãos cactos, de seu orgulho e “autenticidade” regionais, criados pelo marketing pessoal.
O personagem de Juliette, de saída, já contava com a torcida dos habitantes de nove estados da federação e dos milhões de nordestinos espalhados pelo país. Como costuma acontecer com quem invoca a identidade nordestina, logo diferenças de classe, raça ou gênero (que eram simbolizadas por outros personagens do programa) eram superadas e todos torciam para a “nossa” representante no reality show.
Na noite da vitória, João Pessoa viveu clima de final de Copa do Mundo, esquecendo completamente a rivalidade histórica com Campina Grande. Quando se anunciou o resultado, milhares de pobres, desempregados, subempregados vibraram com o fato de que a “conterrânea” ficou milionária. Os bairros de classe média alta, onde, talvez, Juliette antes fosse ignorada, explodiram em gritos, fogos e comemorações. A equipe de marketing que criou a personagem foi elogiada pela cantora Anitta, e ela vale agora milhões no mundo dos comerciais e do merchandising.
Milhões de cactos, de novos Manés Xiquexique, foram dormir com fome, mas felizes porque a nordestina venceu. Assim, a mensagem capitalista de que o dinheiro e sua busca é um valor positivo foi reafirmada, a TV cumpre, com honras, seu papel de alienação social, e o regionalismo nordestino o seu papel de despolitização e perda do senso crítico.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.
Fonte: Diário do Nordeste
Créditos: Diário do Nordeste