O adolescente Enzo André Alves da Silva, 17, caiu da moto ferido com um tiro na cabeça. Era madrugada do dia 25 de fevereiro de 2024 e ele estava saindo de uma festa no distrito de Jundiapeba em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo.
Seu amigo, que dirigia a moto, foi ferido com um tiro de raspão. Enzo chegou a ser socorrido mas não resistiu aos ferimentos.
Os detalhes são condizentes com um caso de homicídio. No entanto, pelo fato de não haver a identificação do autor nem a identificação do autor dos disparos, a ocorrência foi registrada inicialmente pela Polícia Civil como “morte suspeita”.
Essa categoria é destinada a situações em que as autoridades não conseguem determinar, a partir das primeiras informações, se uma morte é resultado de suicídio, acidente ou provocada intencionalmente por outra pessoa.
Menos de dois meses depois, a polícia já tinha identificado o autor do tiro que matou o adolescente. Era o dono do estabelecimento onde a festa ocorria. A investigação apontou que ele estaria irritado com o barulho dos escapamentos de motocicletas ao lado da festa, e teria disparado a arma contra os dois adolescentes, que estavam se afastando do local.
Jovem, sexo masculino, pele negra, baixa escolaridade, morto em via pública e com arma de fogo. Essas são características que, em quase todos os casos, aumentam muito as chances de tratar-se de homicídio doloso. No entanto, dados do sistema de saúde mostram milhares de casos com essas características e com outras que também indicam homicídio que não são registradas dessa forma.
A conclusão é da pesquisa Atlas da Violência, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Você ficaria surpreso com a quantidade de registros de mortes violentas com causas indeterminadas cujo instrumento foi perfuração por arma de fogo”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea que ajudou a desenvolver a metodologia para estimar os homicídios ocultos. “O instrumento é uma variável importante. Se o cara morreu por arma de fogo, há uma chance muito grande de ter sido homicídio. Claro que pode ser suicídio, e por isso a segunda variável é o local: se foi em casa, se foi em via pública.”
Para conseguir classificar cada caso, o Ipea compilou as características de todas as mortes violentas no país desde 1996 um total de 3,6 milhões de registros. Cada um deles contém dados sobre o local da morte, arma, idade da vítima, sexo, cor da pele, escolaridade e estado civil, por exemplo.
Com isso, o instituto conseguiu traçar os padrões de homicídios, suicídios e acidentes de cada região do país. Isso foi feito por meio de programas de computador que analisaram os dados de todas as ocorrências, para identificar as características mais comuns dos homicídios entre as chamadas mortes violentas por causa indeterminada.
Os dados reunidos na publicação são coletados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan)dados de violência de notificação compulsória do Ministério da Saúde. Os últimos dados disponibilizados pela pasta e aferidos pelo Ipea são de 2022, e foram publicados em junho deste ano.
Naquele ano, São Paulo foi a capital brasileira com maior número de assassinatos ocultos e a única que, segundo a metodologia do estudo, tem mais casos desse tipo do que homicídios formalmente registrados.
Foram 1.418 homicídios ocultos, contra 344 homicídios registrados naquele ano. Os registros do governo estadual são maiores foram 560 homicídios dolosos na capital em 2022, segundo a Secretaria de Segurança Pública, mas ainda assim menos da metade dos assassinatos ocultos apontados pelo Atlas.
É um problema que cresce em vários estados do país. De 2018 a 2022, a taxa de homicídios ocultos subiu de 1,8 para 2,8 casos a cada 100 mil habitantes. A estimativa dos pesquisadores é de que houve um total de 5.982 homicídios ocultos no país há dois anos. O número oficial de homicídios registrados em 2022 foi de 46.409.
“Houve um aumento acentuado, em pouco tempo, do registro de mortes por causa indeterminadas. A explicação não pode ser aleatória, o que aconteceu não foi por azar”, diz Cerqueira.
O pesquisador tem duas explicações para o fenômeno. A primeira é a falta de comunicação entre os órgãos públicos brasileiros.
Há situações em que um registro inicial como morte suspeita ou lesão corporal seguida de morte (que só é admitida caso a polícia consiga aferir que não houve intenção de matar) é atualizado para homicídio durante a investigação, mas a mudança pode não chegar às estatísticas oficiais e aos bancos de dados do Ministério da Saúde.
Para Cerqueira, essa situação deve explicar a maior parte da discrepância entre os dados. Outra hipótese, porém, é que parte das mortes seja intencionalmente registrada numa categoria diferente do homicídio, devido às consequências legais de uma investigação. “Às vezes, a própria polícia pode ter interesses escusos e não revelar o que aconteceu ali”, ele diz.
O pesquisador diz que a pesquisa foi alvo de desconfiança no mundo político, mas que as críticas perderam força após o Ipea estabelecer parceria com governos estaduais para solucionar o problema. O instituto já manteve diálogos com Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Espírito Santo.
Neste último, o trabalho resultou em novas normas para a identificação da causa da morte. “Como resultado, a implementação da nova rotina reduziu o número de mortes a esclarecer de 629 em julho para 223 em outubro”, ele conta.
Questionada, a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo afirmou que “faz monitoramento e análise minuciosa dos casos registrados com vítimas fatais, garantindo que cada ocorrência seja registrada e investigada adequadamente, para evitar que casos de homicídio sejam erroneamente classificados”. Disse, ainda, que esses dados estão disponíveis para consulta pública por meio do programa SPVida.
Em relação aos números do Atlas da Violência, a pasta informou que os dados que utiliza “são de natureza jurídica e criminológica, diferentemente dos utilizados como referência pela reportagem e que são coletados pelo DataSUS”.
“Seus critérios e finalidades são absolutamente distintos, portanto, não é razoável qualquer tipo de comparação”, disse a pasta.
Jornal de Brasília