Em um de seus últimos atos como ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira editou uma nova portaria que trata sobre o conceito de trabalho em condições análogas à de escravo e da ”lista suja” do trabalho escravo – o cadastro de empregadores flagrados por esse crime. A portaria 1293/2017 substitui a polêmica portaria 1129/2017, publicada no dia 16 de outubro, que dificultava a libertação de pessoas nessa situação.
A nova redação, que está na edição do Diário Oficial da União desta sexta (29), respeita o conceito de escravidão contemporânea presente na legislação brasileira ao contrário da portaria anterior, segundo representantes do Ministério Público que conversaram com o blog. Ela também reafirma os procedimentos que já organizavam os resgates nos últimos anos e levanta entraves à publicização da ”lista suja” propostos pelo texto anterior.
A tentativa de dificultar a libertação de trabalhadores foi vista como moeda de troca entre o governo federal e a bancada ruralista para barrar a denúncia por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer na Câmara dos Deputados. Apresentada pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, ela foi rejeitada pelos parlamentares no dia 25 de outubro. Segundo fontes no Ministério do Planejamento, o texto da polêmica portaria também atendeu a empresas da construção civil.
Por conta disso, o governo sofreu pesadas críticas da sociedade civil, da imprensa, de especialistas e agências das Nações Unidas, de organizações internacionais, de grandes empresas nacionais e estrangeiras, de políticos, procuradores, magistrados, entre outros. Investidores estrangeiros chegaram a afirmar que o país poderia sofrer sanções, uma vez que o enfraquecimento no combate ao trabalho escravo reduziria a credibilidade sobre a qualidade social de produtos brasileiros.
Ronaldo Nogueira pediu exoneração do cargo. Ele, que quer se preparar para tentar à reeleição como deputado federal pelo PTB no Rio Grande do Sul, sai com a imagem chamuscada pelo episódio da portaria do trabalho escravo e da engajada defesa pública que fez do texto.
De acordo com o procurador do Trabalho Tiago Cavalcanti, coordenador da área do Ministério Público do Trabalho responsável pelo combate à escravidão contemporânea, a nova portaria é uma vitória. ”O novo texto atende às reivindicações sociais no sentido de reproduzir fielmente o conceito de trabalho escravo previsto em nossa legislação. O governo cedeu. E isso significa a derrota do retrocesso e o êxito da defesa dos direitos fundamentais e da luta pelo trabalho livre, seguro e decente”, afirma.
Segundo a procuradora da República Ana Carolina Roman, representante do Ministério Público Federal na Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, ”a nova portaria restaura a legalidade ao resguardar o conceito legal de trabalho escravo. No mais, ela não traz novidades, apenas descreve o que já é rotina nas fiscalizações do Ministério do Trabalho”.
Na polêmica portaria de 16 de outubro, o governo havia condicionado o resgate de pessoas apenas a casos em que houvesse cárcere privado com vigilância armada, tornando irrelevante as condições em que as vítimas fossem encontradas. Isso batia de frente com o artigo 149 do Código Penal, que atesta que trabalho escravo também pode ser configurado pelas condições degradantes em que se encontram os trabalhadores ou pela jornadas exaustivas que colocam em risco sua vida.
No dia 24 de outubro, a ministra Rosa Weber, do STF, atendendo a um pedido do partido Rede, concedeu uma liminar contra a portaria do governo federal, suspendendo-a. Sua argumentação foi na mesma linha das críticas feitas pela procuradora-geral da República Raquel Dodge, uma das maiores especialistas sobre o tema no país. Para elas, as formas contemporâneas de escravidão não se limitam ao cerceamento de liberdade, mas também são configuradas pela negação da dignidade do trabalhador. Principalmente, quando ele é transformado em ferramenta descartável de trabalho, sem respeito mínimo aos seus direitos fundamentais, tendo colocados em risco sua saúde e segurança.
Agora, com o novo texto, espera-se que o Supremo considere que houve perda de objeto da ação, arquivando-a. E, se a portaria 1293/2017 for mantida, é provável que a questão do conceito volte a ser discutida com mais intensidade pela bancada ruralista no Congresso Nacional.
A portaria publicada nesta sexta revoga as mudanças e reforça o que prevê a lei, que são quatro elementos que configuram esse crime, podendo ocorrer juntos ou isoladamente:
– Condição degradante de trabalho: Qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho.
– Jornada exaustiva: Toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social.
– Servidão por dívida: A limitação ao direito fundamental de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros.
– Trabalho forçado: Aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente.
A nova portaria também destrincha a ”retenção no local de trabalho”, subtipo que pertence ao trabalho forçado de acordo com nossa legislação e também segundo as convenções da Organização Internacional do Trabalho. E mostra três formas nas quais ela pode se manifestar:
– Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte: Toda forma de limitação ao uso de meio de transporte existente, particular ou público, possível de ser utilizado pelo trabalhador para deixar local de trabalho ou de alojamento.
– Vigilância ostensiva no local de trabalho: Qualquer forma de controle ou fiscalização, direta ou indireta, por parte do empregador ou preposto, sobre a pessoa do trabalhador que o impeça de deixar local de trabalho ou alojamento.
– Apoderamento de documentos ou objetos pessoais: Qualquer forma de posse ilícita do empregador ou preposto sobre documentos ou objetos pessoais do trabalhador.
De acordo com a portaria, esses conceitos devem nortear a fiscalização, a concessão de seguro-desemprego aos resgatados e a inserção de nomes de empregadores na ”lista suja”. Valem para identificação de formas contemporâneas de escravidão envolvendo tanto brasileiros quanto estrangeiros, em qualquer atividade econômica, incluindo trabalhadores domésticos e profissionais do sexo.
Os auditores deverão lavrar um auto específico tratando da constatação dessa forma de exploração, descrevendo de forma circunstanciada e pormenorizada os fatos que fundamentaram a caracterização. O que já estava sendo feito através do auto 444 pela inspeção do trabalho.
A portaria também reafirma que o resgate de pessoas se aplica em casos de identificação de tráfico de seres humanos para fins de exploração do trabalho e define desta forma esse crime: ”o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra”.
O texto confirma que a coordenação do processo de verificação de denúncias e de resgate cabe à Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho, como tem ocorrido desde 1995, quando o Brasil criou seu sistema de enfrentamento a essa prática. E que as operações devem continuar contando com a participação de representantes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Militar Ambiental, Polícia Militar, Polícia Civil, ou outra autoridade policial para garantir a segurança.
O que é uma mudança. Se dependesse da portaria 1129, de 16 de outubro, para poder levar um empregador à ”lista suja”, os autos de infração relacionados a um flagrante de trabalho escravo passariam a depender da presença de um boletim de ocorrência lavrado por uma autoridade policial que tenha participado da fiscalização. Dessa forma, a palavra final sobre a existência de trabalho escravo iria sair das mãos de auditores fiscais, especialistas no tema, e passar para a dos policiais.
Fonte: Uol
Créditos: Uol