O rosto marcado pelo tempo esconde a real idade de quem descobriu o álcool ainda muito cedo. “Comecei a misturar bebida no suco aos 8 anos. Aos 10, já usava a bebida alcoólica pura”, diz Paulo, de 24 anos. A perna inquieta, que não para de mexer, denunciava o nervosismo em reviver feridas ainda abertas. “Eu me tornei morador de rua depois de vender tudo o que tinha a preço irrisório para poder beber. Cheguei ao ponto de implorar às pessoas R$ 1 para comprar bebida”, afirma Joaquim, de 53. Faltando pouco para receber alta da comunidade terapêutica onde está internado, Geraldo, de 68, não sabe para onde irá. “Não fosse a bebida, teria ainda minha família, que ficou desgostosa a ponto de não me querer mais em casa”, relata. Às vezes, o fundo do poço confronta a própria vida. “Até veneno tomei. Tive quatro convulsões e tentei o suicídio quatro vezes”, conta Carlos, de 39.
Os nomes são todos fictícios, mas as histórias, bem reais. São trechos da vida de gente que é o retrato do uso nocivo de uma droga legalizada, socialmente aceita, cercada de publicidade e com ares de charme e poder. Em cada esquina, no bar, no boteco, padarias e supermercados, o álcool está lá, com destaque em gôndolas e prateleiras: latas de cerveja, litros de cachaça, garrafas de uísque. No Brasil e no mundo, ele mata mais que o crack, conforme atesta levantamento da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). Em Belo Horizonte, seu número de dependentes é quase o dobro da soma de todos os entorpecentes ilícitos (veja quadro), de acordo com estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas, mais que um vício, o alcoolismo é uma doença, responsável ainda pela vitimização de um número sem fim de pessoas próximas, os chamados codependentes. O Estado de Minas começa hoje uma série de reportagens mostrando os dramas do alcoolismo e como a droga de mais fácil acesso desagrega famílias, arrasa a relação entre pais e filhos, destrói relacionamentos e faz quem a consome abusivamente definhar.
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que no mundo são registrados todos os anos 3 milhões de mortes resultantes do uso nocivo de álcool, o que representa 5,3% do total de óbitos. O consumo nocivo da bebida é fator causal de mais de 200 doenças e lesões. E mais: 5,1% da carga mundial de doenças e lesões é atribuído ao consumo de álcool, conforme calculado em termos de Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade (Daly, sigla em inglês). As consequências aparecem cedo. Entre pessoas de 20 a 39 anos, cerca de 13,5% do total de mortes em todo o mundo são atribuíveis ao álcool.
CONSUMO NO BRASIL
“É a grande droga social. Álcool mata muito mais que o crack, não tem comparação”, sentencia o pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fiocruz (Icict/Fiocruz), Francisco Inácio Bastos. Essa certeza é fundamentada pelo 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, divulgado recentemente pela fundação. Os resultados mostram que grande parte dos dados considerados mais alarmantes em relação ao uso de drogas no Brasil não estão relacionados às substâncias ilícitas, mas, sim, ao álcool. Mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos declarou ter consumido bebida alcoólica alguma vez na vida. Cerca de 46 milhões (30,1%) informaram ter consumido pelo menos uma dose nos 30 dias anteriores. E aproximadamente 2,3 milhões de pessoas (1,5% desse grupo etário) apresentaram critérios para a dependência de álcool nos 12 meses que antecederam a pesquisa.
A percepção do brasileiro quanto às drogas atrela mais risco ao uso do crack do que ao álcool: 44,5% acham que o primeiro é a droga associada ao maior número de mortes no país, enquanto apenas 26,7% colocariam o álcool no topo do ranking. “Mas os principais estudos sobre o tema, como a pesquisa de cargas de doenças da OMS, não deixam dúvidas: o álcool é a substância mais associada, direta ou indiretamente, a danos à saúde que levam à morte”, afirma Bastos, coordenador da pesquisa, que teve a parceria de várias outras instituições, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto Nacional de Câncer (Inca) e a Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.
Global, social, barato e não sofre sanções restritivas, salvo em comportamentos específicos, como beber e dirigir. Essas características fazem do álcool uma droga de fácil acesso, que durante muitos anos dividiu essa atribuição com tabaco, malvisto especialmente pelas gerações atuais. Já o álcool, que ainda não se tornou alvo de campanhas que forçam novos hábitos, como ocorreu com o cigarro, se mantém em alta. “Se somados mortalidade e dados de comorbidade (problemas decorrentes da doença), o alcoolismo ganha disparado no mundo inteiro e por uma razão simples. Todas as outras drogas têm características de consumo específicas. Já o álcool, com exceção de alguns países islâmicos, é a única substância que pode ser encontrada globalmente. Não depende de mercados locais, como a heroína. Produto básico e muito barato”, diz Inácio.
A dependência do álcool é tão forte que é considerada por especialistas, dependentes e ex-dependentes a droga mais difícil de deixar. A tal ponto de se tornar uma doença caracterizada por consumo cada vez mais intenso, com consequências nefastas. A pessoa fica com fissura, necessidade mesmo do uso e, para isso, começa a agir para ter esse prazer de forma contínua, abrindo mão de outras situações da vida para restringi-la à bebida. Acompanhado da dependência, vem o isolamento e problemas no trabalho. E, ao longo do tempo, problemas de saúde devido à intoxicação pelo álcool, além daqueles sociais e financeiros. “Não há um padrão ou marco para definir um alcoólatra, porque, dependendo do tamanho e da resistência, a pessoa pode conseguir consumir mais ou menos álcool. Não é a quantidade, mas a repercussão a que isso leva”, explica o psiquiatra titular da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP), Guilherme Rolim Freire Figueiredo.
Quando a bebida vira prisão
Consumo frequente e excessivo indica escalada da dependência. Depois, só há uma saída, reforça especialista: abolir a droga para sempre, o que exige consciência e determinação
Enquanto o crack choca por escancarar o uso da droga ao ar livre, à luz do dia, por multidões aglomeradas em torno do cachimbo, o álcool dissemina seus tentáculos dissimulado de liberdade. É fácil encontrá-lo e ninguém é julgado por comprá-lo. Abarca uma parcela muito maior da população e se torna uma substância potencialmente nociva em cada lar. Pesquisa Conhecer e cuidar, feita pelo Centro Regional de Referência (CRR) em Drogas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em conjunto com a Prefeitura de Belo Horizonte, revela a dinâmica do abuso do álcool na capital mineira. Enquanto 2,4% da população (60 mil habitantes) era dependente de alguma droga ilícita, em relação ao álcool o percentual alcançou 4% (100 mil).
Todo sábado, todo domingo. O consumo de álcool de forma excessiva e frequente pode configurar uma fase perigosa de escalada para a dependência. É nesse abuso a maior chance de se tornar alcoólatra, esclarece o psiquiatra titular da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP) Guilherme Rolim Freire Figueiredo, que também é sócio da Clínica Mangabeiras e coordenador do Serviço de Eletroconvulsoterapia (ECT) do Instituto Raul Soares, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). “Na fase de dependência, o consumo é tão frequente que o organismo perde resistência. O alcoólatra mais avançado bebe pouco. Fisicamente é que ele começa a ficar mal”, diz.
Na Luz Divina, tratamento de recuperação dura 90 dias, usados para desintoxição, fortalecimento psicológico e reinserção social.
Não tem receita pronta. Entre o abuso e a dependência alcoólica pode passar muito tempo. Mas, é fato: depois de ficar preso às amarras da bebida, o dependente nunca mais conseguirá beber socialmente. “Funciona tanto para bebida quanto para droga. Vira oito ou 80. A pessoa tem que abolir a bebida. Não consegue mais consumir de forma moderada. Terá de enfrentar o fato de que deve abandonar o prazer tido com a bebida, o mais difícil de aceitar. Não vai ficar no pouquinho.”
O médico lembra que 50% dos alcoólatras têm alguma patologia associada, como transtorno bipolar, ansiedade ou depressão e esquizofrenia – o alcoolismo nasce a partir delas ou o contrário. “Se tratar a doença de base, às vezes a pessoa consegue abandonar o vício. Quando é só alcoolismo, é mais difícil de tratar”, diz. Ele acrescenta que é grande o risco de o dependente entrar em depressão, por achar que não vai conseguir parar, chegando, muitas vezes, ao suicídio.
O processo não é fácil e é perpétuo. A maioria dos alcoólatras chega ao consultório em estado crítico e são raros os que percebem sua perda de controle. A maioria chega ao fundo do poço e a única saída é tentar se reerguer do zero. Famílias perdem esperanças e as forças em internações e tratamentos sucessivos. Guilherme destaca que recaída é regra, e não exceção. “O paciente não se interna uma vez e sai curado. Normalmente, são várias internações antes de conseguir parar, mediante muita insistência”, afirma. Assim como não é tão simples o processo de ficar sem o consumo da bebida. A abstinência imediata costuma durar de uma semana a 15 dias, o que, em ambiente hospitalar, com medicação, pode ser mais favorável. Mesmo assim, duas palavras são chave: consciência e determinação. “A pessoa tem que realmente querer parar, senão fica muito difícil tratar. Esse convencimento faz parte do tratamento. Do contrário, não terá energia nem disposição para se abster.”
“A pessoa por muito tempo bebe socialmente e, por isso, acha que está no controle. O vício é quando você perde sua liberdade para a dependência. Não há mais esse domínio. Não dá para parar na hora que quiser. É uma ilusão. O doente não quer enxergar o óbvio. Pessoas só tomam uma consciência maior quando algo mais grave ocorre.”
Caso do funcionário público Carlos*, de 39. “Comecei a beber aos 24 anos. Tomava vinho e fui aumentando as doses. Eu me dei conta de que sou alcoólatra no dia em que tomei meio litro de veneno”, relata. Ele tentou o suicídio quatro vezes e teve quatro convulsões. Da última vez, passou o dia bebendo e ingeriu a substância venenosa ao chegar em casa. Foi direto para o hospital e, de lá, para a internação em comunidade terapêutica. “Nunca faltei um dia de serviço, acordava às 6h e às 7h estava lá. Mas todo dia tomava uma pinga antes de ir ao trabalho”, conta. Numa das crises de convulsão, estava em cima da moto. O alerta médico para o risco de morte o fez repensar. Carlos terá alta no dia do aniversário de 15 anos da filha, para quem prepara uma surpresa ao som de seu trompete. “É outra vida. Posso rir sóbrio. Dizem que é difícil manter, mas terei de manipular a mim mesmo.”
RESTRIÇÃO
O coordenador da pesquisa e do Núcleo de Vulnerabilidade à Saúde da Faculdade de Medicina, Frederico Garcia, ressalta que as drogas ilícitas causam mais dependência se avaliadas as proporções, mas em números absolutos o álcool dispara. “O álcool tem vários mitos e um deles é o de que se aprender a beber em casa a pessoa não se tornará dependente. Mas 85% dos alcoólatras começaram a beber em casa. Recomenda-se que se postergue o máximo possível esse contato. A exposição precoce faz marca nos circuitos cerebrais, e quanto mais tarde menor o risco de se tornar dependente”, explica.
Para o médico, a restrição deveria estar na pauta do dia. “Pesquisa mostra que uma dose pequena de álcool pode reduzir o risco de infarto, mas aumenta a chance de câncer de intestino, de mama, de boca, o risco de doenças hepáticas, de demência, de depressão, de suicídio. A indústria pressiona para acharmos que é benefício, mas um fator apenas não vale o efeito negativo de vários outros.”
DEPOIMENTOS
“Vim para a Luz Divina no dia 11 de junho. Quando pus o pé no portão, vi que tinha chegado ao encontro da paz. Entrei para o grupo do A.A. e sou sempre convidado a participar das reuniões deles. Deus me deu a chaNce de voltar a ser o Joaquim que eu era. Posso ser pai de novo. Um homem renovado, com bastante sabedoria para entender que o álcool é uma ilusão. Tenho uma oportunidade e uma folha em branco para escrever uma nova história.”
Joaquim*, de 53 anos, caminhoneiro
“Na minha primeira saída da comunidade, ao chegar ao meu rancho dei de cara com um litro de pinga em cima da mesa. Eu me lembrei do que aprendemos nas terapias e pensei: ‘O inimigo é sujo mesmo’. Dei as costas e saí. Tenho que ter saúde para cuidar da família. Hoje, o que faço, faço sóbrio. Não tinha paciência nem com meus dois netos, que são meu bem mais precioso.”
Carlos*, de 39 anos, funcionário público
Parada para conquistar a liberdade
Uma gestação para o renascimento. Sob essa filosofia, mais de 4 mil homens passaram por uma comunidade terapêutica em Conceição do Pará, cidade do Centro-Oeste mineiro, para recuperar dignidade, ter um recomeço e reconstruir suas histórias. Na Luz Divina, grupo fundado e administrado por ex-dependentes de álcool e outras drogas, a internação é de nove meses, com a ideia de que é preciso deixar para trás o que passou e nascer de novo para garantir outro futuro. São três meses de desintoxicação física, três para o fortalecimento psicológico e outros três para a reinserção social.
Atualmente, a fazenda conta com 95 homens, de 17 a 64 anos, de diversas regiões de Minas e de todas as classes sociais, de desempregados a professor, estudante de direito e até aquele empresário que perdeu todo o recurso financeiro para a droga. A maioria está internada por causa da dependência de crack, mas são os alcoólatras a dar mais trabalho. “Eles têm convulsão, abstinência fortíssima, alucinações e muitos sofrem consequências físicas. Tem gente que ficou sem andar devido a complicações pelo uso de álcool. A maioria dos alcoólatras usa remédio para evitar isso, mas, aí, vêm outras consequências, como hipertensão e diabetes”, explica o presidente da Luz Divina, Luís Carlos Ramos, ex-dependente de crack e álcool.
Doze pessoas, entre ex-dependentes, pais de dependentes ou alguém sensibilizado pela causa, fazem parte da diretoria. Na comunidade, o portão nunca é trancado, mas se sair, não volta mais. Retorno só em caso de fim de tratamento e eventual recaída. Cada pessoa em tratamento tem sua atividade e tudo é feito por todos – limpeza, jardinagem, comida, além de se encarregar da padaria, da biblioteca e da barbearia instaladas no local. Visita de familiares ocorre uma vez por mês. Parentes podem ligar para ter notícias, mas não falam com os internos. A comunicação é exclusivamente por meio de cartas. Animais – cães, patos, galinhas, gansos – ajudam a amansar os corações mais duros.
O máximo que se pode aproveitar da terra se aproveita. Nela, se planta mandioca, feijão, banana e hortaliças. Doações são sempre bem-vindas, desde que os produtos sejam de qualidade. “Aqui não recebo alimentos em más condições”, avisa Luís. A escola montada no terreno recebe quem não aprendeu a ler nem a escrever. Reuniões de alcoólicos e de narcóticos anônimos, missas e cultos arrebanham gente de todas as crenças e religiões. “Sou de família boa, tinha um bom emprego, estudei. Entrei na droga por curiosidade e andei até descalço na rua quando fui ao fundo do poço. Isso aqui para mim é um propósito.”
Respeito é palavra de ordem. Assim como o amor. “Estamos aqui para acolher e dar amor. Com isso, mudamos a história das pessoas. Que adianta trazer para cá essas pessoas que já foram excluídas, humilhadas, se não for para dar amor?”
O tratamento para essa doença crônica chamada alcoolismo não se conclui da noite para o dia. O psiquiatra Guilherme Rolim Freire Figueiredo explica que, na maioria das vezes, internação é a indicação para o dependente mais grave conseguir superar a abstinência sem riscos associados, como convulsões, em ambiente hospitalar ou em comunidades terapêuticas, no caso de isolamentos mais prolongados. No segundo momento, o tratamento indicado é terapia ambulatorial e medicamento de forma continuada, consultas com psicólogo, psiquiatra e também grupos de ajuda mútua, como o Alcoólicos Anônimos. “Tem que insistir até conseguir. É um tratamento difícil, que exige muito esforço da família, mas é possível se libertar da bebida.”
As repercussões podem levar ao fundo do poço, como ocorreu com o caminhoneiro Joaquim, de 53. Ele conta que começou a beber aos 8 anos escondido do pai, mas sempre seguindo seu exemplo, pois achava “bonito”. “Anos se passaram, mas dava conta de segurar minhas responsabilidades com a família e o caminhão”, diz. De uns anos para cá, começou a não segurar mais a onda. A morte da mãe, há três anos, foi o pontapé para dias ainda mais tenebrosos. “Eu me tornei morador de rua depois de vender tudo o que tinha a preço irrisório para poder beber. Cheguei ao ponto de implorar a pessoas R$ 1 para comprar bebida”, relata.
Ele conseguiu esconder a situação dos quatro filhos, até o dia em que abordou uma família numa praça da Região da Pampulha, em Belo Horizonte, por estar com muita vontade de comer um alimento salgado. Ele não reconheceu o rapaz, um amigo que não via havia 30 anos. “Não tinha memória para nada. Não me lembrava do que ocorria duas horas atrás”, afirma. “Ele me pagou um macarrão e me levou para o barraco onde eu ficava. Num domingo, meu filho me chamou, me mostrou fotos da Luz Divina (comunidade terapêutica em Conceição do Pará, na Região Centro-Oeste de Minas) e disse que eu ia me recuperar e ser um homem novo.”
Fonte: Em.com.br
Créditos: Em.com.br