Há uma semana, W.D. 34 anos, parou de andar de mãos dadas com o marido nas ruas de Porto Alegre. Ambos, que sempre se sentiram cômodos com sua homossexualidade, tomaram a decisão depois do resultado do primeiro turno das eleições, no dia 7 de outubro, que deu grande vantagem ao candidato de extrema direita Jair Bolsonaro, com 46% dos votos. “Vimos que a nossa atitude em público teria que mudar, não poderíamos mais trocar carinho na rua porque sentimos uma reação muito agressiva à nossa simples existência”, conta W. D., gerente de uma empresa do ramo imobiliário. O medo é um sentimento latente entre o coletivo LGBT, negros, indígenas e outras minorias atacadas por Bolsonaro, que lidera a corrida eleitoral para o Planalto e que tem um longo histórico de declarações racistas, misóginas e homofóbicas. Sua chegada à presidência é percebida como a legitimação de comportamentos que ultrapassam o limite do aceitável. Em campanha, o candidato já negou diversas vezes que seja homofóbico ou racista. Porém, suas falas contundentes em vídeos passados não escondem o desprezo que já empregou pelo que lhe parece diferente.
Giulianna Nonato, de 24 anos, sempre teve medo de sair na rua, mesmo antes de identificar-se como travesti. “Antes de me apresentar com um corpo feminino, era uma bicha, então minha vida sempre foi marcada por bullying e violência”, conta em São Paulo. Nas últimas semanas, depois dos vários casos de agressão e assassinatos motivados por questões políticas no Brasil, o medo da jovem aumentou. Em 10 dias, pelo menos duas pessoas foram assassinadas e outras 70 sofreram agressões por conta de seus posicionamentos políticos, de acordo com levantamento do Open Knowledge Brasil e Agência Pública. Os dados mostram que em seis dos casos as vítimas foram apoiadores de Bolsonaro; as demais foram agredidas por pessoas afins a ele.
‘Onda Bolsonaro’ deve impulsionar projetos conservadores no Congresso
“Parece que há mais ultraconservadores saindo do armário do que gays. Eu já tirei todos os símbolos LGBT que podem me prejudicar”, diz G. G., de 16 anos. Bolsonaro afirmou que as agressões são “excessos” e “casos isolados” e lamentou os episódios de violência, ao mesmo tempo em que denunciou um “movimento orquestrado” de falsas denúncias para prejudicar sua campanha. “Os candidatos não podem ser responsabilizados por tudo que seus apoiadores fazem. No entanto, no mínimo, têm a obrigação de garantir que seus discursos não incitem a violência. E quando ameaças e atos de violência ocorrem, devem condená-los de maneira categórica”, defende Maria Laura Canineu, diretora para o Brasil da ONG Human Rights Watch. Bolsonaro de fato chegou a fazer uma fala mais direta. “Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim”, escreveu no twitter no último dia 10. Mas na sequência da mensagem, relativizou algumas acusações ao supor que parte das queixas eram calúnias. “A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar.”
Mais do que as agressões físicas durante o período eleitoral, Nonato teme a “violência institucional” de um possível Governo conservador, que pode modificar ou anular direitos sociais garantidos por lei, como o Protocolo Transexualizador, que assegura atendimento no SUS aos cidadãos trans, incluindo o terapias hormonais e cirurgias. “Atualmente, já enfrentamos uma escassez de hormônios e temos que esperar meses na fila para uma simples consulta médica… isso pode piorar”, lamenta a jovem.
Para a ativista Melina Kurin, bissexual de 33 anos casada com uma mulher trans, a situação é de “pânico” na comunidade LGBT. Ela traz de volta à memória um passado no Brasil de repúdio à vida dos trans nos tempos da ditadura. Naquela época, a Operação Tarântula contava com forças policiais que prendiam, torturavam e matavam travestis e transexuais. Por agora, há um temor de que esses ecos voltem a soar no país. “As pessoas que já te olhavam com ódio agora te olham como se você fosse a personificação do mal que Bolsonaro pretende combater. Ele se apresenta como o salvador da pátria, então seus inimigos se convertem em inimigos do povo”, comenta sua mulher, a socióloga Leona Wolf, de 36 anos, que compara a situação no Brasil com a campanha de Donald Trumpem 2016, quando aumentaram as agressões racistas e xenófobas nos EUA. “Sei que não vamos ter aqui campos de concentração para homossexuais, como na Chechênia, mas tenho, sim, receio de que cheguemos a uma situação como a Rússia de Putin”, acrescenta.
Susane Souza, de 45 anos, e Camilla Silva, de 22, ambas mulheres negras da periferia, têm sofrido crises de ansiedade nos últimos dias. “Tenho medo de ser assassinada”, resume Silva, enquanto Souza teme por seu filho adolescente: “Não quero que um filho meu seja apontado na rua, agredido simplesmente pela cor da sua pele”.
Esse medo ao ódio que têm marcado as eleições não se restringe às grandes cidades. Nas aldeias indígenas, líderes políticos e religiosos expressam sua preocupação ante um possível retrocesso nas leis ambientais que protegem seus territórios. “Nosso principal temor é que ele [Bolsonaro] libere a mineração em nossas reservas naturais”, explica Cristine Takuá, de 38 anos, coordenadora de uma comunidade guarani no interior de São Paulo.
Para a ativista indígena Célia Xakriabá, de 29 anos, um dos grandes perigos de um Executivo de Bolsonaro seria a liberação do acesso às armas de fogo no campo. “Isso promoveria o genocídio dos povos nativos. Vamos sofrer um dos maiores impactos desde 1500. A proposta de armamento no campo já é muito problemática, por exemplo para a etnia Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, onde os latifundiários matam até os nossos bebês”, lamenta. Ela mesma, que sempre sai nas ruas com um vistoso cocar e pinturas corporais típicas de sua tribo, tem sido alvo de ameaças. “Duas pessoas já gritaram para mim que, se eu continuar saindo vestida desse jeito, vão mandar me matar”.
Apesar do medo, ambas coincidem na importância de resistir aos “tempos sombrios” e contam que as diferentes etnias indígenas do país estão organizando-se para pensar em estratégias de proteção e apoio, inclusive com os povos nativos de países vizinhos. “Ainda temos esperança. Resistimos há 518 anos, e continuaremos fazendo isso”, afirma Takuá.
Giulianna Nonato tem a mesma postura. “Vamos defender tudo que já conquistamos. Acredito muito na força dos movimentos sociais”, diz. Ela conta geralmente conversa com outras travestis e transexuais que sofreram os anos mais duros do regime militar e que elas lhe aconselham a não deixar-se paralisar pelo medo. O psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo, defende que isso é o que se deve fazer.
Dunker comenta que o Brasil sempre foi violento —lidera o ranking de homicídios por arma de fogo e é o país onde mais pessoas LGBT são assassinadas no mundo— e que o que ocorre agora é uma “sensação de medo intensificada no subconsciente coletivo”. “Em momentos de tanta tensão política, é comum que nos lembremos dos maus exemplos históricos, como a ditadura, mas precisamos saber que não é a mesma coisa”, diz. “As pessoas nas favelas enfrentam, infelizmente, uma violência diária e continuam vivendo. É hora de aprender desses mais vulneráveis estratégias de sobrevivência emocional, para não se render”.
Temor nas universidades
O medo de agressões não é exclusivo de populações vulneráveis e tem repercutido mesmo entre quem sempre se sentiu protegido e confortável. É o caso do professor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Luciano Volcan Agostini. Homem, branco, internacionalmente premiado e com estabilidade garantida por concurso público, ele se arrepiou ao receber um email anônimo com ameaças à sua carreira docente: “Estou envolvido diretamente na campanha de Jair Bolsonaro e lhe informo que o mesmo está ciente do ativismo político-comunista que a UFPEL está fazendo, assim como outras. Saiba que a teta vai secar e o governo não irá mais financiar pesquisas inúteis”, dizia a missiva.
Agostini, que é pesquisador, foi pró-reitor da universidade e participou da equipe que definiu o Padrão Brasileiro de TV Digital, se surpreendeu. “Não faço campanha partidária dentro da UFPEL e, muito menos, dentro da sala de aula. Minha militância política tem acontecido mais nas redes sociais e, mesmo assim, não tenho perfil público”. Ele admite que se sente intimidado, especialmente pelo anonimato da mensagem, que utilizou um email falso. “Isso quer dizer que pode ser qualquer pessoa ao meu redor que está me ameaçando”, observa ele, que já denunciou o caso à Polícia Federal. “O clima é de profunda preocupação e medo na academia. O cerceamento do livre pensamento está brotando e tomando uma forma cada vez mais assustadora”, conclui.
Também profissional de uma instituição de ensino pública, a bibliotecária P.P. não é militante partidária e diz que seus “ideais são principalmente pautados pela minha espiritualidade”. Mesmo assim, mudou o comportamento recentemente por temer represálias políticas até em atitudes corriqueiras profissionais.
Ela decidiu tirar um livro do teórico Karl Marx do expositor onde a biblioteca mostra os itens recém adquiridos para os frequentadores. “Foi para proteger a instituição, não me senti confortável, pensei que poderia vir alguém do MBLtentando achar alguma coisa… fiquei em dúvida pois (colocar os lançamentos no expositor) é uma coisa tão sem intenção, tão rotineira, mas pensei que até convencer, dar explicação e provar que não somos doutrinadores… não sei. Tirei e guardei na estante, junto com outros livros”, relata.
Ela também tem controlado as postagens que a biblioteca faz para divulgar sua coleção. Temáticas que ganharam relevância nos últimos anos e que demandam literatura para pesquisa, como os movimentos LGBT, feminista e negro estão sendo diluídos propositalmente para evitar “falsas interpretações, para não inventarem o que não é”, assegura.
O nível de ansiedade chegou ao ponto máximo depois que livros com a temática de direitos humanos foram rasgados na biblioteca da Universidade de Brasília (UnB). Foi a deixa para P.P. avisar a colegas que se o clima piorasse, ela estava disposta a levar parte do acervo que toma conta para sua casa, como medida de proteção. “Antes a gente falava em censura num tom de brincadeira, agora a gente não ri mais”.
Fonte: EL país
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