Desde o início da quarentena escrevo um diário. Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses meses de coronavírus.
Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto, mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100 mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo militar.
Os 100 mil de hoje representam também um protesto, só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política nacional contra a Covid-19.
O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes, para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena. Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.
O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads.
Parece que muitos de nós vivem numa parte mal iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído jantar após a reunião, o debate ou conferência.
Leio no livro de Churchill que os piores momentos de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas vidas.
Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e aguardá-lo durante muito tempo.
A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um minuto preocupado com elas.
Os índios no Amapá a consideram uma espécie de doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam de temê-la.
Desde o princípio, luta-se contra a negação do governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.
Um dos luminares do governo calculou que morreram apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já eram 80 mil.
Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de artigos na lei de proteção aos povos indígenas.
Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara, montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?
Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos, índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem alcançados.
Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para discutir o poder do alho cru.
E se você perde a paciência, elegância, e pergunta: e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:
— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.
Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados, contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não, uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em questão o próprio sentido da sobrevivência.
Apesar da solidariedade, do desprendimento dos trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar o país.
E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.
Fonte: Fernando Gabeira
Créditos: Polêmica Paraíba