Bárbara Barbosa da Silva Mariano, de 40 anos, foi presa por tráfico de drogas em outubro de 2005. À época, sua filha Íris Vitória tinha 8 anos. De dona de casa e costureira ela passou a viver atrás das grades por ser pega levando 75 gramas de maconha para o irmão vender na prisão.
A história de Bárbara sintetiza a vida e os dilemas das 42 mil mulheres encarceradas no país. No período de 2000 até 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres no Brasil aumentou 455%. Elas quase sempre são presas por tráfico de drogas. Os Estados Unidos, que têm a maior população carcerária feminina do mundo, tiveram um aumento de 18% na taxa de aprisionamento no período.
Ela conseguiu cumprir parte da pena em liberdade graças ao trabalho como costureira na prisão e a progressão do regime. Terminou de cumprir sua pena já em liberdade, em fevereiro de 2009. Hoje, a filha de 22 anos se orgulha da mãe.
Já se passaram dez anos desde que Bárbara pagou sua dívida com a Justiça. Hoje ela busca, através de trabalho voluntário, dar um novo sentido para a vida de jovens sem oportunidade. As lembranças de tudo que viveu (e deixou de viver), entretanto, ainda fazem parte de sua vida. Ela decidiu contar a Universa sua história.
A vida na prisão
“Tudo começou com a prisão do meu irmão, em 2000, por receptação de carros roubados. Ele entrou nessa não foi por falta de ajuda. Várias vezes arrumei cursos pra ele fazer. Eu ia atrás dele para ver o que ele andava fazendo, mas quando a gente percebeu, ele já estava no meio do tráfico, já exercia cargo de chefe na boca. Então, ele mesmo se via impossibilitado de sair. A gente via que ele tinha como sair, mas não conseguia.
Ver a situação em que ele estava na prisão era horrível. Na época, ele ficou preso na carceragem da Polinter, no Cais do Porto (Rio de Janeiro). Aquilo ali era horrível, um depósito de gente. Era muito angustiante. E eu tinha que segurar a onda, não podia desabar porque estava com minha mãe. Se ela me visse desesperada, iria piorar tudo. Paga-se advogado, paga pra visitar. Vi meu pai quase que vendendo a casa para ajudá-lo.
Nessa hora, falei que não dava mais. Conversei com meu irmão para levar drogas para que ele vendesse dentro do presídio, mas ele não queria. Falou que isso não era pra mim, que eu tinha que cuidar da minha filha. Mas decidi que iria fazer, mesmo contra a vontade dele. Conversei com colegas dele ligados ao tráfico e eles me explicaram como fazer.
Decidi por um caminho sem volta, mas sempre fui costureira. Eu que fazia bolsas, mochilas, bolsas femininas, encontrei na droga minha saída porque era dinheiro instantâneo. Ver a situação dele me fez fazer isso. A superlotação era terrível. Tinha dias que a gente chegava lá e a perna dele estava toda inchada, porque ele não tinha como se deitar. Não tinha vaga para todos dormirem, havia uma escala para poderem dormir. Ele dormia deitado um dia e depois ficava em pé por 36 horas.
Levei droga para a cadeia três vezes, sempre maconha. Ficava apavorada, mas aí a gente se faz de forte. Fui pega nessa terceira vez.
O tempo na prisão
Na cadeia nós somos sentenciados todo dia. Não é só a sentença do juiz. Tem a sentença dos seus rivais, dos que você faz na rua. Os rivais de meu irmão eram os próprios funcionários da prisão. Alguns tinham divergência com ele da rua.
Foi a costura que me ajudou a cumprir a pena e a passar o tempo. Tinha uma oficina de costura na Penitenciária Talavera Bruce, onde fiquei um tempo. Com a costura eu me mantinha ocupada. Não ficava pensando onde eu estava, só focava no que eu estava fazendo. Qualquer coisa me ocupava. Fosse a costura, a leitura, tudo me tirava daquele lugar.
Os anos foram passando, até que veio a lei da progressão de regime prisional, quando o crime hediondo passou a ter direito à progressão da pena. Por incrível que pareça, foi a pior coisa que vivi. Parece que eu não estava nem presa, nem solta. Quando comecei a sair da prisão para ver minha família, de 15 em 15 dias, saía às 6h da manhã e tinha de estar de volta às 8h da noite. Quando me sentia ‘em casa’, já estava na hora de voltar.
Era uma barra. Ninguém tem preparo psicológico pra isso. Nessa época, eu tinha que entrar alcoolizada na cadeia. Nunca usei drogas, mas entrava bêbada, porque bêbada eu dormia. Assim eu não sentia que estava sendo presa de novo. Foi assim por quase um ano.
Em 4 de julho de 2008, enquanto trabalhava com serviços gerais, meu chefe veio falar comigo e disse que tinha chegado minha hora, depois de três anos presa. Eu já estava na expectativa da liberdade com a minha progressão. Fui para o presídio, assinei os documentos e não voltei mais pra lá. Pisar na rua, livre, foi um alívio. Dá um medo e dá um alívio. Medo porque agora você vai ter que enfrentar o preconceito, o julgamento. O índice de reincidência é grande, você vê a pessoa ser presa uma, duas, três, quatro vezes. A sociedade acha que todo mundo que vai preso vai voltar pra prisão. Todo mundo te fala a mesma coisa. Eu sabia que não queria aquilo de novo. Tinha medo era do olhar dos outros.
Volta para casa
Entrar em casa depois de tanto tempo é como estar voltando da morte.
Eu não me adaptava e as pessoas também não se adaptavam a mim. Meu casamento acabou devido a essas coisas. A gente se separou logo depois que voltei pra casa. Eu saía pra trabalhar, para fazer alguma coisa, e ele dizia: ‘olha o que você vai fazer na rua, hein? Se você voltar pra cadeia, eu não vou te ver mais na prisão, não’.
Não queria ouvir isso dentro de minha própria casa, e era o lugar onde mais ouvia. O pai da minha filha me acompanhou, me visitou do princípio ao fim. Ele via o que passava ali dentro. Mas uma coisa é acompanhar como visitante, outra é viver na pele. Então, eu nem condenava, nem julgava. É o senso comum.
Com Íris foi bem difícil. Nossa relação no começo foi bem machucada. Ela falava ‘quem é você? Quando eu precisei você não tava aqui’. Até hoje ainda é preciso muita paciência, dar o braço a torcer pra poder estar perto dela. Perdi a puberdade da minha filha, perdi a evolução dela, o crescimento dela. Perdi a chance de ajudar meus pais, que adoeceram enquanto eu e meu irmão cumpríamos pena. Não tem como repor nada disso.
Volta ao trabalho
O sistema carcerário se retroalimenta. O tempo que passei presa eu vi pessoas saindo e voltando. A sociedade te rejeita. O único lugar que tá de portas abertas pra te receber é a cadeia.
Te impedem de trabalhar, de estudar, seus documentos ficam restritos, a gente perde os direitos eleitorais. Você deixa de fazer muita coisa. Quando foi sancionada a lei de monitoramento eletrônico, o preso ficou marcado externamente. Colocam no seu corpo um sinal de que cometeu um crime e anda na rua igual tiro ao alvo. Não querem saber o que você cometeu, seu histórico, você é bandido.
Você recebe um ‘não’ tantas vezes que você se pergunta, o que me restou? Voltar para o crime? Se eu quisesse trabalhar, eu não conseguia com carteira assinada. E sem carteira assinada, você vira escrava. Não tem direito a nada.
Estava desiludida quando a mão estendida veio de onde eu menos esperava. Foi um policial civil, dono de uma fábrica, quem me deu o primeiro emprego com carteira assinada. Falei logo pra ele que era ex-presidiária. Ele perguntou se eu estava cometendo algum crime. Disse que não. Então, ele pegou minha mão e disse: ‘você vai trabalhar aqui’.
A volta por cima
Não ‘tirei’ cadeia só porque eu errei. Eu cumpri minha pena e fiz disso uma lição pra minha vida e levo pra vida de outras pessoas. Não é porque você caiu, tropeçou, que você tem que ficar no chão, você não precisa ficar no chão. Ficar no chão é uma escolha sua. Cair, todo mundo pode cair.
A prisão me mostrou a capacidade que a gente tem de resistir, a resiliência. A gente acha que não vai suportar. Percebi que em momentos difíceis da nossa vida a gente não pode estar com o olhar no foco do problema.
Se eu tivesse passado os anos olhando para as grades, olhando os funcionários, olhando para a comida, olhando pra tudo que é ruim, eu enlouqueceria.
Então, passei esse tempo olhando além. Pensava ‘falta menos do que faltava ontem. Vou trabalhar, o dia vai passar rápido, eu vou sair logo’. Ficava vislumbrando o futuro.
O tempo encarcerada era vago. Fui me polindo. Tinha vários livros, fiz cursos por correspondência. Quando fiquei em liberdade, percebi que eu poderia ir além. Parei de aceitar as grosserias das fábricas onde trabalhei. Percebi que meus supervisores só eram superiores a mim porque tinham mais dinheiro — eu tinha tanto conhecimento quanto eles. Fui fazer o supletivo de jovens e adultos e a professora me inscreveu no Enem. Consegui a pontuação para a universidade e uma bolsa. Estou no sétimo período de jornalismo. Meu caminho agora é esse. Falta pouco!
Se tiver que escolher, vou sempre trabalhar em projetos sociais, porque não consigo ver as pessoas nessa situação de vulnerabilidade sem uma chance. O que as pessoas precisam é de oportunidade. O que esses jovens querem? Ser ouvidos. Às vezes só querem um abraço. Mas algumas pessoas na sociedade olham com nojo. Você nega a um menino a oportunidade de ir à escola porque tem tiroteio todo dia. Você nega ao menino saúde, porque os postos estão totalmente defasados. Quando esse menino vira um homem, ele se volta contra você, contra a sociedade. O problema é ele? Essa é minha pergunta.”
Fonte: Uol
Créditos: Uol