Em meados da década de 1990, a socióloga Maria José Rosado, a Zeca, enfrentou mudanças profundas em sua vida. Concluiu um doutorado na Escola de Altos Estudos em Sociologia, em Paris, abandonou a vida de freira e se mudou para São Paulo para lecionar na Universidade Metodista de São Paulo. Não sabia bem quais caminhos seguir a partir daí, mas tinha certeza que seguiria transformando o mundo.
“Eu sempre achei que a minha vida era pouco para mim. Eu tinha que estar vinculada com a vida de outras pessoas de alguma maneira”. Naquela época conheceu o movimento Catholics for Choice, uma organização formada por católicas nos Estados Unidos que defende a legalização do aborto, os direitos reprodutivos e a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo. Foi então que criou, ao lado de quatro mulheres, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD).
“Era uma luta de Davi contra Golias”, resume sobre o esforço de cinco mulheres enfrentarem uma instituição poderosíssima como a Igreja Católica. O movimento está dando frutos. Este ano, a ONG completou 25 anos com membros em todas as regiões do Brasil. E inspirou outros movimentos, como o Evangélicas pela Igualdade de Gênero e a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto. O grupo é formado por católicas que defendem os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres, questionam os dogmas da igreja a partir da teologia feminista e, principalmente, acolhem outras mulheres. Um dos temas defendidos pelo movimento é a legalização do aborto.
“O estado criminaliza a mulher que aborta e a igreja a condena”, explica Maria José. As mulheres consideradas culpadas são muitas. Uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já realizou um aborto, aponta a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, realizada pela Anis — Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília. Um total de 2,5 milhões de católicas entre 18 e 39 anos. Maria José explica que estas mulheres não encontram apoio na igreja. O máximo que obtêm é um perdão de um padre numa confissão. Mas a culpa de cometer um pecado as acompanha ao longo da vida.
“Ser pecadora para uma mulher de fé é muito grave. Isso significa que ela está desligada de Deus. Nós dizemos que não houve pecado. O último recurso para tomar uma decisão dolorosa como essa é a sua própria consciência”.
Maria José busca apoiar e conversar com elas. Aos 75 anos, Zeca é uma das diretoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mas, a sua experiência em acolher mulheres começou bem antes da criação do movimento. Em 1976, a socióloga morou no interior da Bahia. Em uma cidadezinha chamada Barra do Mendes, na região da Chapada Diamantina. Como freira, realizava a Novena de Natal com as prostitutas da cidade. “A marginalização das mulheres me incomoda muito. Eu as admiro e respeito. Elas devem ser respeitadas na sua dignidade como cidadãs. São as Genis a quem a sociedade apedreja e depois usa em discursos moralistas e hipócritas”.
A sua trajetória lhe rendeu reconhecimento no Brasil e no exterior. Foi indicada para receber o prêmio Nobel da Paz, em 2005. Foi professora convidada da Universidade de Harvard. Ela conta que o seu percurso acadêmico se deve muito à teologia feminista, que busca compreender a fé a partir de uma perspectiva feminista. A religião, explica, é uma criação feita por homens para as mulheres seguirem. “Você vai num templo e encontra homens que ditam as regras e normas e estabelecem uma compreensão e disciplina”. Mas, com a teologia feminista, as mulheres se apropriam e reinterpretam a religião. “Somos competentes pois trazemos muito da nossa vida e da formação acadêmica”.
Punição pelo Vaticano
As teólogas feministas estão nas universidades, em movimentos sociais e em grupos de discussão nas redes sociais. Mas são marginalizadas pela Igreja Católica. E também sofrem represálias. Como é o caso da freira Ivone Gebara, punida pelo Vaticano em 1995 por defender a legalização e descriminalização do aborto em uma entrevista à revista Veja. Ela viveu dois anos reclusa na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, onde concluiu seu doutorado em Ciências Religiosas. Atualmente, a freira da Congregação Irmãs de Nossa Senhora — Cônegas de Santo Agostinho não possui nenhuma relação com o Vaticano, e sim com as pessoas com quem convive, especialmente mulheres.
Após a repercussão da entrevista, muitas católicas confidenciaram a Ivone que realizaram um aborto. A teóloga escuta todas elas, e ressalta que não defende a interrupção da gravidez de forma indiscriminada, como se fosse um método anticoncepcional. “Vejo o aborto como uma precariedade e um limite da vida. É uma experiência duríssima”. Durante quase 35 anos conviveu com mulheres pobres em Camaragibe, em Pernambuco. Não foram poucas que realizaram aborto. “As igrejas, os homens e quem não têm sensibilidade de ver a dor alheia não percebe o quanto o aborto é uma decisão extremamente dolorosa e penosa para muitas mulheres. É também uma questão de saúde pública, de salvar a vida de uma menina, mulher ou mãe”.
O aborto é legalizado em casos de risco de vida da mãe, formação de feto anencéfalo ou decorrente de um estupro. Mesmo assim, entre 2011 e 2016, mas de 4 mil adolescentes entre 10 e 19 anos tiveram um filho após uma gestação resultante de estupro, aponta o Ministério da Saúde. Sendo que em 68,5% dos casos, o violentador é um familiar da vítima. Ivone aponta que, dentre os tantos medos que as religiosas enfrentam quando abortam é de receber um castigo de Deus. Mas, a freira é categórica: “o amor divino não é carrasco, condenatório que põe na prisão e manda para o inferno”. E resume, “as mulheres não podem se afundar em uma culpa sem fim”.
Ivone caminha e dialoga com outras mulheres em São Paulo, onde mora há seis anos. Mesmo com as bases na capital do estado, se considera uma andarilha. Viveu com um pé no Nordeste e outro no mundo por mais de três décadas. Foi professora por mais de 15 anos no Instituto Teológico no Recife e ministrou palestras e cursos em diversos países como Estados Unidos, França e Chile. Publicou mais de 30 livros sobre catolicismo e feminismo. É autora de obras como “As Incômodas Filhas de Eva na Igreja da América Latina”, “Teologia Ecofeminista: Ensaio para Repensar o Conhecimento e a Religião” e “O que é Teologia Feminista”. Ela reconhece que os movimentos feministas cristãos como o Católicas pelo Direito de Decidir, na qual atua, estão ganhando força. Mas longe da instituição católica.
Embora a igreja conte com muitas mulheres, as fiéis tendem a reforçar a manutenção do poder dos homens. Isso porque enxergam Deus como uma divindade masculina, explica. “As pessoas que têm um pensamento crítico estão saindo das igrejas”. A freira acredita que o Papa Francisco traz um frescor na igreja, mas avalia que ele não tem força suficiente para transformar a estrutura milenar. O trabalho da teóloga, inclusive, não é estimado por alguns bispos. Alguns tentam dissuadir outros de convidá-la para eventos e cursos. “As tendências fundamentalistas conservadoras estão aumentando no Brasil”. A freira conclui que, em seus 74 anos de vida, nunca presenciou tanta intervenção religiosa e política.
Não encontra sentido, por exemplo, em uma parte do bordão do governo que diz “Deus acima de todos”. Entende como uma espécie de mágica, palavras de efeito. “Quando as pessoas dizem primeiro Deus e depois o meu voto, estão buscando uma legitimação política de um poder absoluto. E, para mim, significa a manutenção de um modelo que exclui todos e todas que não compactuam com a ideologia do governo e do poder estabelecido”. Ela classifica como uma forma de impressionar o povo brasileiro que é muito religioso. “Quando as pessoas escutam ‘Deus acima de todos’ pensam que os políticos são homens de Deus. Mas, então, eu pergunto qual o significado de Deus?”. E complementa: “Os seres humanos precisam ser respeitados na sua diversidade”.
Nas igrejas evangélicas
Valéria Cristina Vilhena cresceu participando dos cultos de domingo, cantando louvores e orando com fervor na Assembléia de Deus, a maior igreja evangélica do Brasil. Não usava brinco, maquiagem ou calça comprida. Sabia sobre os detalhes do fim dos tempos, descrito no livro bíblico de Apocalipse e as consequências de quem comete pecado. Aos 20 anos, decidiu buscar outros caminhos. Frequentou a Presbiteriana do Brasil, uma instituição mais aberta nos costumes. Mesmo assim, percebeu que ambas as igrejas tinham questões morais muito semelhantes. Ela seguia com fé em Jesus. Mas incomodada com as diferenças entre homens e mulheres nas igrejas. “Os homens decidiam sobre as nossas espiritualidades, corpos e vidas”.
A gota d’água foi quando um dos líderes de uma igreja tentou estuprá-la. Ela não denunciou o caso. Pediu ajuda para as pessoas ao redor, mas ouviu comentários como: “homem é assim mesmo”, “a culpa é da sua roupa”, e “a culpa é do seu perfume”. Sofreu em silêncio.
Valéria faz parte da estatística. A cada quatro minutos uma mulher é agredida por pelo menos um homem no Brasil, aponta o Ministério da Saúde. Os dados não incluem aquelas que foram assassinadas. Ela aprendeu, então, a lidar com o trauma por meio do conhecimento, na universidade. “Estudei para não ser mais enganada”, conta. É teóloga, mestre em Ciências da Religião e doutora em Educação, Arte e História da Cultura. Autora de livros como “Evangélicas por sua voz e participação – Gênero em discussão” e “Violências de Gênero, Evangélicos políticos e os Direitos Humanos”.
Com a sua experiência de vida e bagagem acadêmica, criou em 2015 o grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), movimento que luta contra todo tipo de violência sofrida pela mulher evangélica. “Eu passei por aquela situação de uma forma muito solitária e dolorosa. Mas eu quero que seja diferente. Nós precisamos ser acolhidas”. As igrejas evangélicas contam com aproximadamente 42,3 milhões de fiéis no Brasil, de acordo com o Censo de 2010. É a religião que mais cresce no país. Em 1970, contabilizava um pouco mais de 5% da população. Hoje mais de 20% de brasileiros são evangélicos. E são elas, as mulheres, que são a maioria. Representam quase 56% de fiéis. Mesmo estando em maior número, não discutem nas igrejas as diversas violências que muitas delas sofrem. Mas o tema tornou-se pesquisa de mestrado de Valéria, na Universidade Metodista de São Paulo, em 2016.
A teóloga investigou a violência doméstica sofrida pelas evangélicas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher Casa Sofia, em São Paulo. Identificou que, naquela instituição, cerca de 40% das vítimas eram evangélicas. E, assim como ela, sofreram sozinhas. “Tive dificuldade em conversar com as mulheres. Isso demonstra o quanto é velada a violência nas igrejas”. Uma delas foi proibida pelo marido em buscar apoio. “Olha, ele me bate, mas é a voz de Deus. É o meu pastor”, confidenciou para Valéria. Poucas contam sobre os casos de violência. Algumas desistem de frequentar a instituição e decidem participar de correntes de oração em suas igrejas. “A maioria busca uma solução na religião”, explica a pesquisadora. Por isso, o movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero reinterpreta episódios da Bíblia a partir da teologia feminista.
Há todo tipo de mulher no movimento, de diversas orientações sexuais, classes e regiões do país. São acadêmicas, donas de casa, dentistas, arquitetas, faxineiras, psicólogas e camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. O grupo orienta e acompanha as mulheres nas delegacias em casos de violência. Também oferece abrigo para as que sofrem ameaças de ex-companheiros. Elas oram, conversam, choram, trocam experiências de vida e consideram a fé e as dúvidas das companheiras. Não há censura e sim escuta e acolhimento. Uma mãe, por exemplo, está aprendendo a compreender e aceitar a filha bissexual. Outra comentou que nunca abortaria nem em caso de estupro, mas respeita quem faz e entende que é uma questão de saúde pública.
“Algumas mulheres do grupo não se reconhecem como feministas. Outras nunca ouviram termos como ‘patriarcado’. Mas lutam pelos direitos das mulheres”, explica a teóloga que defende um feminismo popular. Ela sabe, por experiência própria, como é difícil questionar os valores construídos ao longo da vida. “É um processo lento. Dói tirar ‘as verdades’ que você construiu. São seus tijolinhos, a sua base. Quando você desconstrói passa por muita solidão. É importante ter o apoio de outras mulheres”.
A favor da legalização
Camila Mantovani nunca estudou mais de um ano na mesma escola. Os seus pais eram missionários de uma igreja evangélica no estado do Rio de Janeiro. Eles se mudavam com frequência para espalhar a mensagem de Jesus. A sua família era pobre e economizava cada centavo para comprar comida. Enquanto isso, as lideranças da igreja trocavam de carro e viajavam para fora do Brasil. A estudante de 24 anos não via sentido neste tipo de vida. Decidiu romper com a instituição. “Eu vi o Deus dos pobres, que caminha com os marginalizados e oprimidos. É possível pensar em outro modelo de igreja que não controla os corpos e o comportamento das pessoas. Eu acredito em um evangelho baseado na justiça”.
Em 2017, ela criou ao lado de outras mulheres a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, no Rio de Janeiro. Naquele ano, discutia-se no Supremo Tribunal Federal uma proposta de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação – a ADPF 442. Algumas igrejas se posicionaram contra. O que gerou indignação para as evangélicas que defendem a descriminalização. “Nos sentimos desrespeitadas. Estas igrejas não têm autoridade para falar sobre todas as pessoas religiosas do país. O campo religioso é muito diverso no Brasil. Tem pessoas que concordam com a descriminalização do aborto, sim.” A partir de então, elas promoveram rodas de conversa para mulheres nas igrejas evangélicas das comunidades do Rio de Janeiro.
O grupo discutia diversos temas além do aborto e trazia episódios bíblicos baseados na teologia feminista. “A Bíblia foi apropriada pelos homens para nos oprimir. O papel da teologia feminista é compreender a nossa espiritualidade a partir do contexto feminino. Isso é possível, pois a Bíblia está lotada de histórias de mulheres”, defende Camila. Elas conversavam também sobre violência doméstica e sexualidade. Muitas não sabiam a importância de usar uma camisinha ou o que são doenças sexualmente transmissíveis. “A gente se assustou com a falta de acesso à informação e o estigma que elas têm em falar sobre determinados assuntos”.
Ao lado de outras mulheres, as participantes se sentiam seguras. Algumas confidenciaram sobre as violências que sofreram. Uma delas contou que foi estuprada há 28 anos, mas era a primeira vez que dizia sobre o ocorrido. Hoje, o movimento não atua mais no Rio de Janeiro, e sim em São Paulo. O clima beligerante contribuiu para a mudança. As integrantes do grupo receberam mensagens de ódio por defender a descriminalização do aborto. Camila foi ameaçada de morte. Homens armados começaram a persegui-la na rua. Ela passou a não ter endereço fixo. Sua família também foi ameaçada. “O salário do pecado é a morte, então você vai morrer”, diziam os criminosos. Camila decidiu sair do Brasil. Os custos da mudança foram viabilizados pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil.
A associação divulgou uma nota de solidariedade em conjunto com o Fórum Ecumênico ACT Brasil. Uma parte do texto diz: “A fé cristã não pode ser instrumentalizada para subjugar as pessoas nem para dominar territórios, impondo medo às pessoas. A fé evangélica não é violência. (…) Ela se orienta pela graça amorosa de Deus e pela liberdade. (…) Não aceitaremos que nossa tradição de fé seja instrumentalizada para a promoção do ódio, do racismo, do sexismo e outras formas de dominação e violência”. Camila mora na Costa Rica há cinco meses, onde estuda Teologia. O recomeço é difícil. Mas, mesmo longe, acompanha e participa das ações de mulheres evangélicas no Brasil. Antes de se mudar, escreveu: “(…) Estou indo, mas continuo a denúncia da barbárie que esse país se tornou sendo um país tão evangélico! Sigo na luta, porque a despeito da igreja hegemônica que persegue e mata quem ousa contrariá-la, eu tenho comigo a força do Nazareno, do Deus que encarnou preto e pobre, do Deus que valorizava as mulheres”.
Fonte: Universa
Créditos: Universa