Olinda vive algo incomum. Nessa época, as ruas já estariam cheias com o desfile de blocos e troças aos domingos. Quatro Cantos, ponto de encontro de ruas conhecidas pelo Carnaval, não se coloriu em 2020. Suas ruas cobertas de paralelepípedos estão vazias.
Na cidade, as prévias começam oficialmente em 7 de setembro. Por seis meses, o frevo correria solto, puxado por orquestras e seus metais. A pandemia, porém, fez algo até então impensável: deixar as ruas de Olinda sem frevo e sem Carnaval.
“Vejo aqui os turistas hoje pegarem a sombrinha, fazerem o passo [do frevo] só para tirarem foto, mas sem o som. Dá vontade de chorar. A gente tem na mente a quantidade de pessoas que estariam aqui, felizes”, conta Teresa Santos, 46, que mora na rua 27 de Janeiro. “Nasci dentro do frevo, minha vida inteira foi no Carnaval.”
Em meio aos galhos de um fícus (que muitos chamam erroneamente de pitombeira), uma placa quebrada e largada por um vendedor anunciava uma das alegrias do folião popular: “três cervejas por R$ 10”. “E são três latões, não são das [latas] menores, não”, conta um popular, ao perceber a curiosidade da reportagem.
Coração da folia
A casa de Teresa era uma das mais procuradas por turistas que queriam se hospedar no meio da festa. Nessa época, ela já estaria fechada ou prestes a fechar o aluguel temporário. Em 2019, o negócio rendeu R$ 18 mil por oito dias, em uma casa com três quartos e um mezanino. A residência guarda toda a arquitetura antiga: teto com pé-direito alto (4m de altura), paredes encurvadas nos cantos.
Andar em Olinda é um passeio pelo passado. Seu Carnaval data do início do século 20, com os clubes carnavalescos. A cidade é verdadeira guardiã das tradições do Carnaval de rua, do frevo e dos demais ritmos pernambucanos.
Teresa lembra que o Carnaval da cidade explodiu mesmo quando começou a ter caixas de som nas portas das casas (hoje proibidas por decreto municipal, que preza pelo som dos blocos). “Isso ocorreu no final dos anos 1980 e início dos 1990. O povo começou a vir em massa, e aqui sempre ficava cheio. É muito triste, muito surreal o que a gente está vendo”, relata.
Descendo a ladeira da casa de Teresa, em frente ao histórico prédio da Prefeitura, está o ambulante Luiz Alberto Alves, 61, que grita: “Olha a água do Alceu Valença, porque lá vem chegando o verão!”
Com voz forte, ele tenta vender a R$ 2 uma garrafa de 500 ml, mas hoje poucos turistas visitam a cidade. “Começava a vender bem já nas prévias, mas sem bloco acabo vendendo pouco demais, perto do que vendia com os blocos. A cidade vive do artesanato e do turismo. Está sendo um momento muito ruim”, desabafa.
Alves conta que nasceu e foi criado em Olinda. Trabalhou de guia do centro histórico por 20 anos. Conhece a cidade — e o Carnaval — como poucos. “Isso aqui é algo fantástico, nenhum lugar do mundo tem isso. Hoje está muito diferente.”
Os guias, aliás, estão presentes logo na entrada do sítio histórico e buscam espaço na época de escassez de turistas. Logo ao chegar, ao ver uma placa de carro de fora, um dos guias dá o braço e corre para sugerir nos acompanhar na visita. “Conheça a cidade comigo”, diz.
Maestro sem banda
Acostumado a viver e faturar com o frevo, Luciano Mamão, 54, é conhecido por comandar a orquestra Edmar Lopes. O grupo musical dá trabalho a cerca de 35 músicos no Carnaval. “Andar por essas ruas hoje tem uma sensação muito diferente”, conta.
Logo após a conversa, Mamão foi tocar em uma festa para tocar outro ritmo famoso pernambucano: o coco. “É aqui perto, se quiser ir, eu falo com a mulher para você ver”, convida.
Há 15 anos ele se tornou maestro e tem no currículo o comando do som em agremiações famosas, como o Vassourinhas e o Elefante. Antes de ser maestro, já tocava nas orquestras. “De percussão de frevo eu toco [os instrumentos] tudinho”, diz, sacando um pandeiro e tocando um frevo improvisado, enquanto posa para a foto.
Apesar de demonstrar sua arte com alegria, o momento de Mamão é difícil. Ele conta que passou esses meses vivendo basicamente do auxílio emergencial do governo.
“A coisa está complicada. O músico parou em março de tocar e não voltou ainda. Estou triste. É uma sensação de debilidade, porque a gente estaria trabalhando agora, ganhando nosso dinheiro”, pontua.
Para tocar no Carnaval, cada músico ganha em média entre R$ 100 a R$ 300 por dia. “A verdade é que o pessoal aqui de Olinda vai pra ruas no Carnaval. Vai ter uma festinha, não vai ser normal, vai ser diferenciado, mas eles vão brincar.”
Ainda não há definição sobre o que será permitido e proibido nos quatro dias de folia de 2021. Procurada pelo TAB, a prefeitura de Olinda informou que ainda vai definir quais medidas serão adotadas.
Ajuda aos músicos
Sandro Valongueiro, 49, é um dos fundadores e diretor do bloco Minhocão. “O bloco desfila às 10h da segunda-feira de Carnaval. Mas esse ano não iremos”, lamenta.
Para não deixar os músicos da orquestra sem renda, realizou uma live solidária no sábado (5). Para isso, foram vendidas camisas do bloco e ingressos, com renda revertida aos músicos.
Ele conta que desde o início da pandemia vem registrando entrevistas que resultaram em um acervo que deve ser colocado no YouTube. Nessas lives, nomes da música baiana, de escolas de samba, além de vários integrantes de blocos locais, deram seus depoimentos.
“A gente vem fazendo uma série de lives, discutindo com músicos e agremiações sobre a vida deles. Inicialmente foi uma troca de ideias para afastar um pouco esse período depressivo. Mas, com o passar do tempo, a gente começou a montar um arquivo de vários grupos, contando história, fazendo um resgate cultural.”
Os bonecos estão guardados
Até mesmo os bonecos de Olinda estão guardados. Silvio Botelho, 64, conhecido popularmente “pai dos bonecos gigantes”, é uma referência no tema.
“Nasci aqui na rua principal do Carnaval [a rua do Amparo], número quarenta e cinco. Estou aqui até hoje”, diz.
Há 46 anos ele trabalha com produção de bonecos e, em meio à tristeza de um ano sem Carnaval, ele acredita que a pandemia veio para reorganizar o planeta.
“A sensação que eu tenho é extremamente desagradável. A tradição de Carnaval esse ano foi limada. Essa doença veio para botar ordem na casa. Ela parou o mundo, dominou o mundo. Isso tem a mão de Deus, dizendo a vocês que, de um jeito ou de outro, quem manda é a natureza”, diz.
Mas Botelho concorda que não deve ocorrer a festa de rua em 2021. “Estamos tristes porque o Carnaval não é só dos foliões: têm os profissionais do Carnaval. Mas temos de entender que não podemos expor pessoas a tumulto. Carnaval é corpo a corpo, braço a braço; aqui se beija muito, se abraça muito, se bebe muito, se droga muito, se fuma muito. Tudo isso o Carnaval propicia.”
Mas há quem prefira…
Moradora no sítio histórico desde 1954, Anália Lopes, 86, conta que quando chegou a Olinda o Carnaval era “coisa pequena.” Praticamente não tinha. “Com os anos é que foi enchendo de gente”, conta ela, sentada em uma cadeira de balanço sob o piso histórico de sua casa, na rua 27 de Janeiro.
A quantidade de pessoas acabou resultando em reclamações de dona Anália, que admite gostar da ideia de não ter Carnaval — pelo menos por um ano.
“É uma barulhada grande, uma falta de respeito. Diria que é uma coisa sem necessidade. É melhor assim (sem gente)”, diz, citando os roubos nas ruas como um dos problemas que enfrentava e a fez desgostar da festa. “Mas eu gosto do frevo, ouço aqui em casa. Nunca pensei que fosse viver um ano sem Carnaval”, afirma, mostrando a netinha com quem dança frevo na sala de casa.
Fonte: TAB
Créditos: TAB