“Minha mãe morreu quando eu era bem pequena. Com isso, meu pai se tornou pai e mãe, ou, como dizíamos, um ‘pãe’. Ele trabalhou duro na roça por anos para criar seus cinco filhos, quatro mulheres e um homem, e desde menina ele me ensinou a ser honesta. Sempre fomos uma família muito unida, daquelas que se reunia todos os finais de semana, no Natal, ano novo, nos aniversários. Ou seja, tudo sempre foi motivo para estarmos todos juntos.
Nosso pai era o nosso xodó, cuidávamos dele com muito carinho e dedicação. Com seus 84 anos, já tinha uma certa dificuldade para andar, então minha irmã Marina e eu nos revezávamos nos cuidados com ele. Meu pai passava uma semana na minha casa e outra semana na casa da Marina. Também contávamos com a ajuda dos meus outros irmãos: Marli, Roberto e Marcia.
Assim que começou a pandemia de covid-19 redobramos os cuidados para que o nosso ‘velho’ estivesse protegido e não fosse contaminado. Mas, infelizmente, nem todas as pessoas mantêm esses cuidados. No dia 6 de março, um sábado, Marli, minha irmã mais velha, teve contato com uma pessoa que estava com covid-19. Sem saber do risco, ela foi visitar o meu pai. No dia seguinte, ela começou a sentir os primeiros sintomas. No domingo, Marina foi buscar meu pai e, como de costume, o levou para passar a semana na casa dela. Dois dias depois, na terça-feira, dia nove de março, meu pai começou a sentir um resfriado também. No dia seguinte, meu marido Evandro começou a ter tosse e se sentiu um pouco cansado. Como ele tinha diabetes, logo pensou que o cansaço fosse por esse motivo. Na quinta-feira, dia 11 de março, eu também fiquei resfriada e, até esse momento, ninguém imaginava que poderia ser covid.
Meu irmão, que morava em uma cidade vizinha em um condomínio de casas na beira do rio, veio buscar meu pai para passar uns dias com ele e sua esposa, pois ele estava de folga no trabalho e queria que eu e minha irmã descansássemos um pouco. Ah se nessa época eu soubesse ou imaginasse que tudo isso iria acontecer…
Como os nossos sintomas foram aumentando, esperamos passar os quatro dias e no dia 15 de março, um domingo, meu marido e eu fizemos o exame para covid-19: positivo. Mandamos uma mensagem no grupo da família avisando a todos, que já ficaram tensos. Além de nós, Marli, nossa irmã mais nova (Marina), seu esposo, meu filho e minha nora testaram positivo para o coronavírus.
Os sintomas do meu pai foram aumentando e meu irmão também começou a ter febre, para nosso total desespero. Decidimos ir todos ao pneumologista e fizemos tomografia. Ali soubemos que meu marido, Marina e meu irmão Roberto estavam com os pulmões entre 50% e 60% já comprometidos. Logo, para meu desespero, meu marido começou a piorar e precisou ser internado no dia 18 de março no hospital de Birigui, cidade onde moramos, no interior de São Paulo. Ele estava com a saturação muito baixa. Aí começou o nosso pesadelo. Eu ainda estava com covid, tendo febre, me sentia cansada demais e tinha que ir quatro vezes ao dia ao hospital para levar alimentação e ter notícias do meu marido. Ele foi piorando e passou o seu aniversário, dia 21 de março, ainda internado.
Marina, minha irmã, também foi para o hospital e, a princípio, ficou na emergência. A covid lhe causou alterações no coração e ela ainda teve troponina positiva. Ela era uma mulher tão saudável, praticava exercícios físicos e sempre se cuidou muito. Teve que procurar um pneumologista e cardiologista. Em seguida, meu pai, que também testou positivo, precisou ser internado em Buritama, cidade vizinha onde meu irmão morava. Nessa época, ele já tinha tomado a primeira dose da vacina de covid.
Na sexta-feira, dia 26 de março, meu marido me mandava mensagens via celular pedindo para eu não deixar ele ser intubado, pois sua saturação tinha baixado demais. Eu pedia para ficar ele calmo e ele implorava para não ser intubado. Nesse mesmo dia, ao meio dia, ele me mandou uma mensagem dizendo que estava indo para a emergência. Essa foi a última mensagem que recebi do meu amor. Eu estava do lado de fora do hospital com minha outra irmã, aguardando notícias e já entrando em desespero.
À tarde nós fomos chamadas ao hospital e veio a notícia. Não conseguiriam intubá-lo e meu marido veio a óbito. Perdi meu chão. Abracei minha irmã e chorei demais. Como dar uma notícia dessas para o meu filho, meu netinho e meus enteados, que eram loucos pelo pai? Como falar com toda a nossa família que o meu companheiro de vida não tinha resistido? Já não tinha forças para mais nada. Evandro foi enterrado no dia seguinte e mal pudemos nos despedir do meu grande amor.
Três dias depois, na segunda-feira, dia 29 de março, minha irmã Marina piorou e foi intubada na UTI. Uma hora e meia depois ela também veio a falecer. Não acreditei. Quanta tristeza, meu Deus. Agora tinha perdido também a minha irmãzinha, a caçula. A dor só aumentava em nosso coração. Minha irmã foi sepultada no dia seguinte, 30 de março. Mal pudemos nos despedir dela.
Ao sair do cemitério fui direto para Buritama e conversei com o médico para fazer um pedido de oxigênio para meu pai. Nós iríamos alugar uma ambulância com UTI para trazê-lo para Birigui, já que ele estava sofrendo demais naquele hospital. Por descuido das enfermeiras, ele havia caído do leito e estava com vários hematomas no rosto. O médico liberou para trazermos meu pai com oxigênio para a nossa cidade. Falei com meu paizinho para aguentar firme que logo ele viria pra casa. Ele ficou tão feliz! Nessa mesma noite, na madrugada do dia 31 de março, ele não aguentou. Meu pai morreu antes de ser transferido. Mais um golpe duro da vida. Me perguntava o tempo todo como aguentar tamanha dor. O que mais de ruim poderia acontecer na nossa família? A gente não se recuperava do enterro e do luto de perder uma pessoa querida e já vinha outra notícia de morte na nossa família. Parecia que eu estava dentro de um pesadelo que não acabava.
Ao saber da morte da nossa irmã, Roberto piorou muito. Ele não soube que o nosso pai faleceu. Nossa angústia só aumentava tendo ainda meu irmão internado por covid. A saturação dele começou a baixar muito. Ele viu muitas pessoas sendo intubadas e vindo a óbito perto de si. Roberto entrou em desespero, foi transferido para a UTI e lá foi intubado. Foram mais alguns dias de muita angústia, revolta, desespero, de luto por perder pessoas tão amadas. Seguíamos rezando para que, pelo menos meu irmão, saísse dessa internação com vida.
Roberto melhorou. Ele fez uma traqueostomia, foi extubado e quando já estava respirando um pouco melhor, com o pulmão se recuperando bem, os exames melhorando. Os médicos o deixaram voltar com a alimentação da sonda pela traqueostomia e parece que algo foi para os pulmões. Esse incidente não estava no seu prontuário, mas nós ficamos sabendo através de uma enfermeira amiga da família que o acompanhava no hospital. Roberto teve uma piora, precisou aumentar a carga de antibióticos e passou a fazer hemodiálise. Ele teve que ser transferido para o hospital de outra cidade e, após três dias, também veio a óbito na madrugada do dia 25 de abril. Não acreditava que mais alguém da nossa família se tornava vítima dessa doença maldita. Meu irmão também se foi. Que tristeza, quanta dor para uma família inteira.
Fonte: Marie Claire
Créditos: Marie Claire