Artista plástica há 24 anos, a pernambucana Juliana Notari, 45, já fez performances em que passou sangue da própria menstruação em uma árvore na Amazônia, foi arrastada por um búfalo na Ilha do Marajó (PA) e, depois, comeu os testículos crus do animal, e quebrou paredes de galerias para formar uma rachadura onde passava sangue de boi e enfiava um espéculo, ferramenta utilizada por ginecologistas para abrir as paredes vaginais. Não é de hoje, portanto, que trabalha para mexer com as convicções dos espectadores.
Mas foi no dia 30 de dezembro de 2020 que uma obra sua ganhou mais repercussão do que imaginava. Trata-se de “Diva”, uma escultura de 33 metros de altura, 16 m de largura e 6 m de profundidade, recoberta por concreto armado e resina, instalada na Usina de Arte, em Água Preta (PE). Foi postada por por ela no Facebook e compartilhada, comentada e criticada. Tem mais de 60 mil interações apenas nessa rede social, inclusive de pessoas de outros países. “Nojo”, “ridículo” e “isso não me representa” são alguns dos comentários que mais aparecem.
“Vejo a repercussão como algo positivo. Despertou o pavor primitivo da vulva. Se gerou isso é porque mexeu em questões que precisam ser mexidas”, diz Juliana, com a calma de quem parecia já estar pronta para a resposta que está recebendo. Leia a seguir trechos da conversa de Juliana com Universa.
UNIVERSA – Qual foi seu objetivo com a obra “Diva”?
JULIANA NOTARI – Desde 2003 eu venho fazendo uma performance chamada “Dra. Diva”, em que faço uma rachadura na parede com sangue de boi e um espéculo. É uma ferida-vulva. Fui convidada a fazer a obra na Usina de Arte, em um convênio com o Mamam (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães), de Recife, e quis trazer isso. Esse espaço foi criado para ser um parque artístico-botânico, como em Inhotim (MG).
Então o local influenciou a concepção da obra?
Minha ideia era fazer a intervenção nessa paisagem que é uma antiga usina de cana-de-açúcar, cenário emblemático da cultura pernambucana e com uma marca fortíssima do patriarcado. É uma área já devastada pela monocultura, ou seja, uma grande ferida na natureza. Também quis tratar de um feminino traumático, do quanto o corpo das mulheres passou, ao longo da história, pelo processo de violência, como apontado por Silvia Federicci no livro “Calibã e a Bruxa”. Quando o feudalismo passa para o capitalismo, o corpo da mulher também é apropriado, e os conhecimentos naturais das curandeiras, tudo isso foi massacrado.
Acredita que conseguiu atingi-lo?
Se a obra gerou essa repercussão é porque mexeu em questões que precisavam ser mexidas. Dentro da minha trajetória eu já trago essas visceralidades que, quando são expostas, geram um rebu. Acho positivo, independentemente de receber elogio ou crítica, levantar essas questões.
O que as críticas à escultura revelam sobre a percepção social da vulva?
A vulva desperta um medo primitivo relacionado à mulher, ao poder de gerar uma vida, ao sangue menstrual. Tudo isso, ao longo da história, foi reprimido pelo patriarcado. Os corpos foram domesticados para fazer o trabalho dentro de casa enquanto os homens puderam conquistar lugares de poder. Quando essa vulva, esse lugar misterioso -que tem um lado sagrado, porque é de onde todo mundo nasce-, é colocado na terra, que é para onde vamos quando morremos, mexe com pulsões e desejos que vão além da questão sexual. Mexe com a ideia de vida e morte. Não à toa o trabalho está gerando tudo isso.
Você se refere à obra como a imagem de uma vulva e de uma ferida. Qual a relação entre as duas?
De fato, não é apenas uma vulva. É também, mas antes de tudo é uma ferida. Se não, faria tudo bonitinho, os grandes lábios, o clitóris. Mas faço questão de criar uma ferida porque abre o campo de interpretação sobre a violência com a mãe terra e com os corpos que foram violentados ao longo da história. É como se a gente tivesse uma grande ferida exposta com o feminicídio, por exemplo, as opressões.
Que outros trabalhos seus tiveram uma repercussão parecida com este?
A questão de gênero sempre esteve presente nas minhas obras. Faço a performance Dra. Diva, como disse, desde 2003. Faço isso em espaços limpos, com sangue de boi, como um contraponto à higienização da medicina que eliminou as curandeiras, que sabiam lidar com ervas, em prol da medicina biologizada e composta por homens médicos que tomaram lugar das mulheres. Fiz a ferida, entre outros lugares, na Bienal de São Paulo de 2004. São trabalhos que mexem com as estruturas, então tem uma movimentação. O último que fiz foi “Mimoso”, uma videoperformance exposta no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, em 2019. Foi feita na Ilha do Marajó. Nas imagens eu apareço sendo arrastada por um búfalo. Lá, soube ele ia ser castrado e resolvi comer o testículo do animal.
Qual foi o impacto dessa ação?
Também gerou uma repercussão, os curadores da exposição ficaram tensos.
Outros artistas têm obras expostas no mesmo local da obra “Diva”, com um procedimento parecido com o que você fez, de intervenção na natureza. Mas só você está sendo atacada por isso. Por quê?
Da fato há outras obras grandes, outras intervenções na paisagem de artistas como Marcelo Silveira e Paulo Meira. Tem a questão do machismo muito forte. Ainda mais por ser no Nordeste, que é o berço do patriarcado. Mas o brasileiro, nos últimos tempos, tem endossado um comportamento misógino que a gente vê nas redes, vemos esses valores andarem para trás.
Entre as críticas que apareceram, uma delas diz respeito a uma foto mostrando os trabalhadores da obra, negros, e você, uma mulher branca, em uma reprodução imagética da estrutura racista brasileira.
A foto traz essa relação muito explícita. Na hora, eu não percebi isso dentro da minha branquitude como artista, mas isso reforça um padrão escravocrata, sim, de uma imagem, de uma força, principalmente na construção civil. Está sendo alvo de crítica principalmente do movimento negro e é pertinente. Só acho que não deveria colocar essa conta dentro da obra.
Há também a questão de genitalizar o gênero, uma vez que você faz a relação entre vulva e o feminino, sendo que há mulheres trans sem vulva e homens trans com. Vê transfobia?
Acho que, nesse caso, não é minha intenção genitalizar. A questão do feminino transcende a genitália, está atrelado à forma de viver, de não ser o poder fálico que se coloca desde a violência com a terra. Independemente da genitália, é um modo de conectar uma energia, um fluxo feminino que independe da identidade de gênero, mas de alinhar forças integradas com a natureza.
Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba