Cuidado, brasileiros! Vivemos dias em que ser antifascista pode se confundir com crime e denunciar fake news pode se transformar em caso de polícia. Como é? Sim, é isso mesmo.
Ser antifascista no Brasil contemporâneo comporta risco! Há a possibilidade de a Seopi (Secretaria de Operações Integradas), subordinada ao Ministério da Justiça, passar a investigá-lo. Ou, como preferiria dizer o ministro André Mendonça, a “monitorá-lo”. Mas não com fins de persecução penal, ele tranquiliza, com aquele seu jeitinho de chefe de polícia política misturado com pastor do interior. A mansidão, por óbvio, é apenas aparente.
“Ah, e se eu for fascistoide, que pede fechamento do Congresso e do Supremo”? Ah, aí você é batuta. O mesmo Mendonça pedirá a esses dois Poderes que reflitam muito sobre seus atos para despertar esse tipo de sentimento patriótico… O lixo vai se espalhando.
Agora, Mônica Bergamo informa na Folha algo de extrema gravidade. A Polícia Federal abriu nada menos do que um inquérito para investigar a atuação do Sleeping Giants Brasil, que tem alertado empresas anunciantes contra sites e páginas que fazem campanha de ódio e espalham fake news.
Dados indícios ou evidências de crimes, a PF pode abrir um inquérito, ainda que não seja a pedido do Ministério Público Federal? Sim, pode. E assim procedeu o delegado da PF de Londrina Ricardo Filippi Pecoraro. Mas qual, então, o indício de que o Sleeping Giants Brasil está transgredindo a lei? Nenhum! O valente se justifica assim:
“A informação de que há sites propagadores de fake news causou extremo desgaste e inconformismo a toda a população, inclusive a que vive em Londrina e nas cidades que compõem a jurisdição”.
Ah, mal posso imaginar a pressão, né? Massas de inconformados às portas da PF de Londrina a cobrar que Pecoraro fizesse alguma coisa: “Oh, por favor, investigue esse site que ousa denunciar fake news e páginas de ódio! Sem elas, como ficamos? Isso está nos deixando intranquilos”.
E por que o inconformismo? Ele explica:
“[o Sleeping Giants] passou a fazer acusações graves, contudo genéricas, não apontando exatamente quais teriam sido as fake news que os veículos de comunicação que cita teriam cometido, gerando insegurança à coletividade”.
Mas esperem: existe, por acaso, alguém que recorreu à polícia, que fez um boletim de ocorrência para denunciar que é vítima de uma agressão? Ou, então, algum indivíduo apelou à Justiça para se dizer caluniado ou difamado? Alguma empresa buscou reparação nos corredores judiciais?
Não se tem resposta para nada disso. Fica-se com a impressão de que sempre que algum conhecido do delegado se sente incomodado, então ele abre investigação.
Eis um caso em que o Ministério Público Federal deveria dar início, ele sim, a um Procedimento de Investigação Criminal para saber em que circunstância atua esse delegado e com que propósito. Mas acho que ninguém vai fazer nada porque estão todos por lá dedicados em abrir as igrejas do novo culto iniciado por Celso de Mello: “A Igreja da Salvação do Brasil do Profeta Deltan”.
A investigação foi aberta no dia 25 de maio, cinco dias depois de o Sleeping Giants ter denunciado o Branco do Brasil por anunciar em uma página favorável a Bolsonaro já condenada por abrigar fake news. Carlucho, um dos enrolados da Família Bolsonaro, não gostou e pediu que o banco voltasse atrás. E o banco voltou, depois de uma intervenção de Fabio Wajngarten, secretário de Comunicação.
Informa Mônica Bergamo:
“As investidas [contra o Sleeping Giants] se intensificaram depois que o PayPal bloqueou o acesso do escritor Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro, à sua plataforma de pagamentos, pela qual ele recebe doações e mensalidades de cursos. A medida foi tomada depois de uma série de alertas feitos pelo Sleeping Giants Brasil sobre o que considerava discursos de intolerância do guru.”
A corrupção de valores dos organismos policiais e de inteligência do Brasil, depois da chegada do bolsonarismo ao poder, em associação com o lavajatismo — hoje vivem uma contradição, mas já formaram um sociedade —, marcará a sociedade brasileira por muitos anos.
Sim, existe uma lei que pune abuso de autoridade. Parece ser o caso de acioná-la. Há ainda uma corregedoria da Polícia Federal que tem de entrar em ação. Espera-se que os parlamentares de oposição e aqueles que, não importa o partido, ainda não se despediram da decência se mobilizem para saber que diabo se passa com a Polícia Federal de Londrina. Ou melhor: que diabo se passa com a Polícia Federal.
Vejam que coisa: o que não falta no país são páginas a propagar fake news — vale dizer: um ato praticado por bandidos. O digníssimo delegado não se interessou em investigar nenhuma. Ele resolveu abrir inquérito para apurar um movimento que denuncia os bandidos.
Em referência à atuação deste senhor, uma música de Chico Buarque, de 1974, que então se assinava Julinho da Adelaide. Nela, faz alusão às ações de agentes da ditadura, que invadiam casas de madrugada à caça dos inimigos do regime. O título: “Chame o ladrão”.
Acorda, amor,
Eu tive um pesadelo agora.
Sonhei que tinha gente lá fora,
Batendo no portão, que aflição!
Era a dura, numa muito escura viatura,
Minha nossa, santa criatura,
Chame, chame, chame lá,
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão!
Acorda, amor,
Não é mais pesadelo nada.
Tem gente já no vão de escada,
Fazendo confusão, que aflição!
São os homens, e eu aqui parado, de pijama,
Eu não gosto de passar vexame,
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão!
Se eu demorar uns meses, convém, às vezes, você sofrer.
Mas, depois de um ano, eu não vindo,
Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer.
Acorda, amor,
Que o bicho é brabo e não sossega,
Se você corre, o bicho pega
Se fica, não sei, não!
Atenção!
Não demora,
Dia desses, chega a sua hora
Não discuta à toa, não reclame,
Clame, chame lá, clame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão!
Não esqueça a escova, o sabonete e o violão
Driblando a censura
Leiam a respeito desse episódio da vida brasileira. Durante a ditadura, o nome “Chico Buarque” numa música já a predispunha à censura. Caçavam-se duplo sentido e mensagem subliminar até onde não havia.
Chico cria, então, o pseudônimo “Julinho da Adelaide”, um sambista meio alienado, irmão de uma cara meio malandro (Leonel Paiva, que seria seu parceiro), que só queria ganhar a vida fazendo alguns sambas… E a censura deixou passar coisas como “Acorda, Amor”, em que se denuncia a repressão, o sequestro de pessoas e, notem na letra, o desaparecimento de pessoas.
Não me estenderei muito porque o objeto do post é outro. O drible na censura e na ditadura teve um lance genial. O escritor e jornalista Mário Prata fez uma “entrevista” com Julinho da Adelaide, em companhia do também jornalista Melchíades Cunha Jr., publicada no “Última Hora”. A íntegra está aqui.
Ah, sim: Julinho, claro!, não mostrava a cara. Por que não? Ele seria muito feio, com a cara cheia de cicatrizes, e isso prejudicaria a sua carreira.
Abaixo, Chico Buarque canta “Acorda, amor”.
Fonte: UOL
Créditos: UOL