As delações premiadas da Operação Lava-Jato vêm mostrando uma prática ilícita, desconhecida e corriqueira em vários estados. Uma empresa tem créditos fiscais a receber do governo estadual, que, por sua vez, simplesmente não os paga e deixa esses créditos acumularem. Chega o ano de eleição e, finalmente, a empresa consegue o dinheiro devido. Mas isso não sai de graça. Em troca, é feita uma contribuição para a campanha, ou é repassado dinheiro por fora.
Na delação dos executivos da empreiteira Odebrecht, foram relatados casos semelhantes no Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Segundo a delação de pessoas ligadas ao frigorífico JBS, o mesmo ocorreu em Minas Gerais e no Ceará. Também foi relatado um esquema parecido na esfera federal, mais precisamente na unidade da Receita em São Paulo. Esses casos somados envolvem pagamentos de propinas de R$ 198,65 milhões para a liberação de créditos fiscais de R$ 3,177 bilhões. Em sua delação, Joesley Batista resumiu como funciona essa relação:
— Os políticos arrumam dificuldades para vender facilidades.
Um crédito tributário é, basicamente, o direito que uma empresa tem a ser restituída, por meio de reembolso ou compensação, por um tributo pago a mais que o necessário. Isso ocorre, no caso dos estados, com o ICMS, cuja alíquota varia em cada unidade da Federação. É o caso, por exemplo, de quando o imposto é pago de forma duplicada ou calculado com base em um faturamento previsto maior que o apurado.
Em 4 de maio, o empresário Wesley Batista, irmão de Joesley, relatou episódios ocorridos no Ceará em 2010 e em 2014. Segundo ele, foram pagos R$ 24,5 milhões ao ex-governador Cid Gomes (PDT) e pessoas apontadas por ele. Uma parte foi repassada por meio de doações oficiais declaradas à Justiça Eleitoral, e outra parte usando notas frias. A JBS tinha interesse em receber créditos fiscais atrasados que o governo do Ceará não vinha pagando.
A empresa possui uma fábrica no estado para processar couro e que, em razão de incentivos fiscais, tinha créditos para receber. Segundo Wesley, após o pagamento de propina de R$ 4,5 milhões em 2010, os créditos foram zerados. Mas nos anos seguintes, eles voltaram a se acumular, chegando a R$ 110 milhões em 2014. Naquele ano, Wesley conta que Cid mandou dois emissários: o secretário estadual Arialdo Pinho e o então deputado federal Antônio Bahlmann.
— Vieram com uma proposta direta. Falou: “olha, nós precisamos daquela contribuição de R$ 20 milhões e aqui o negócio é assim. Você paga os 20 milhões e nós lhe pagamos, o estado lhe paga os 110 milhões que você tem de crédito”. Se você não paga, o estado não libera. Se você paga os R$ 20 milhões para a campanha, o estado libera. Simples como isso — contou Wesley em depoimento prestado em 4 de maio de 2017.
— Em que pese ter sido pago via doação oficial, era uma propina? — indagou um investigador.
— Era uma propina, era uma propina — respondeu Wesley.
O diretor da JBS Ricardo Saud, que também firmou acordo de delação, relatou um caso semelhante em Minas Gerais. Segundo ele, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), agora afastado do cargo, prometeu liberar crédito de ICMS da empresa no estado em 2014. Na época ele era senador e seria o candidato tucano a presidente, mas mantinha grande influência no governo mineiro. A empresa tinha para receber R$ 12,6 milhões da JBS Couros, além de outros créditos no valor de R$ 20 milhões. Ficou acertado que Aécio ajudaria com compensações tributárias na compra de caminhões e, em troca, receberia doações para a campanha.
— Então, Aécio, você vai resolver isso para nós? “Vamos”. Então nós vamos comprar esses 20, 30 milhões, tudo em caminhões, já fica a mesma coisa, melhora para nós e a gente passa a te ajudar, uma ajuda de todo jeito nós vamos te dar para a campanha pra ter um equilíbrio de forças pra ter uma disputa. “Não, vou cumprir com você, pode fazer” — afirmou
Na delação da Odebrecht, há um caso parecido, envolvendo a ex-governadora do Rio Grande do Sul Yeda Crusius (PSDB). Por ser deputada federal, há um inquérito aberto no STF para investigá-la. Yeda responde por corrupção e lavagem de dinheiro, mas nega as acusações. Alexandrino Alencar, executivo da Odebrecht, relatou pagamentos a vários candidatos ao governo gaúcho em 2006. Mediante o compromisso de contrapartidas no futuro, foram repassados R$ 200 mil por doação oficial e R$ 400 mil por fora para Yeda.
Alexandrino conta que a Braskem, empresa petroquímica pertencente à Odebrecht, chegou a ter R$ 1 bilhão em créditos acumulados no Rio Grande do Sul. Apesar das reclamações e da doação feita em 2006, o governo local dizia que estava em situação difícil e não poderia fazer tais pagamentos. Em 2008, em razão de um negócio realizado no estado, a empresa conseguiu obter de volta parte do dinheiro. Segundo Alexandre, isso fez com que o governo de Yeda Crusius ficasse “desesperado” com a perda de receita e passasse a ameaçar a empresa com aumento da alíquota do ICMS.
Quando as acusações se tornaram públicas, Cid, Aécio e Yeda negaram as acusações
R$ 198,6 milhões: É o valor que delatores dizem ter pago para receber os créditos
R$3,1 bi: É o valor que o delatores dizem ter conseguido liberar após pagar propina
JBS teria pago cerca de R$ 160 milhões em propina em troca de créditos federais
O delator Valdir Boni, diretor de tributos da JBS, contou que a empresa pagou em torno de R$ 160 milhões em propina para facilitar a homologação de créditos tributários federais. Esse esquema teria durado até este ano e começado em 2004. Segundo o delator, nesse período, a empresa conseguiu a liberação de mais de R$ 2 bilhões.
A recuperação de créditos tributários pelas empresas junto à Receita Federal é um direito previsto pela legislação. As corporações costumam reclamar, no entanto, que o Fisco demora para liberar esses créditos, tanto nos casos de compensação (quando um tributo pago a mais é usado para abater outro imposto) ou de restituição (quando a Receita devolve o dinheiro para o contribuinte).
Na delação, Boni narra que, em 2003, foi apresentado a duas pessoas: Davi Mariano e Antônio Miranda. Segundo o delator, eles prometiam agilizar a liberação dos créditos em favor da empresa junto à Receita Federal em São Paulo. O dono da JBS, Joesley Batista, teria concordado em pagar 8% sobre o valor dos créditos liberados. Boni afirma que os dois homens citados não trabalham no Fisco, mas conseguiram agilizar a liberação dos pagamentos. Esse trabalho teria começado em 2004 e seguiu até neste ano.
— A Receita Federal não tem tantos fiscais à disposição das empresas para homologar créditos. Ela prefere fiscalizar e arrecadar, e não devolver créditos. Mas são créditos legítimos. Foi proposta a cobrança por parte de Davi Mariano e Antônio Miranda de 8%. E, de fato, as coisas começaram a acontecer. Em alguns momentos, Davi Mariano nos dizia: “parte desse percentual que você está nos pagando, parte a gente repassa para alguns colabores dentro da Receita”. Mas nunca disseram nomes dessas pessoas, se é que recebiam — afirmou Boni.
Notas frias e dinheiro vivo
O delator da JBS contou que, a cada homologação de créditos por parte da Receita, autorizava os pagamentos da propina, usando notas fiscais frias, dinheiro vivo e doleiros.
— Não foram menos de R$ 2 bilhões liberados para a empresa — acrescentou.
Executivos da Odebrecht também relataram que empresa pagou propina em troca da liberação de créditos em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Segundo os delatores Pedro Leão e João Antônio Pacífico, a companhia tinha crédito nos governos estaduais em razão de serviços prestados ainda nos anos 1980 e 1990. Eles dizem que os estados reconheciam a dívida, mas alegavam não ter dinheiro para pagar.
A solução encontrada foi cobrar da União o que era devido em razão da separação dos estados, em 1977, quando ficaram pendentes algumas questões previdenciárias. Em 2006, a União finalmente liberou o dinheiro e os estados pagaram o que deviam à Obebrecht.
Mas, segundo os delatores, isso não saiu de graça. Eles disseram ter pago ao hoje ministro da Agricultura, Blario Maggi (PP), que era governador de Mato Grosso, R$ 12 milhões, o equivalente a 35% do que a empresa tinha a receber. Além de Blairo, é investigado no mesmo inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) o deputado Zeca do PT, que governou Mato Grosso do Sul entre 1999 e 2006.
Procurada para se manifestar, a Receita Federal não deu retorno.
Na época em que a delação da Odebrecht veio à público, Blairo e Zeca do PT negaram irregularidades.
Fonte: Época