O relato sobre o encontro com a filha mais velha comove a empresária Sandra Mara de Castro Monteiro, de 51 anos. “No nosso primeiro contato, antes e durante o desfile, vi o quanto ela é especial e como faltavam oportunidades em sua vida, principalmente por ela ter 13 anos e não ter um lar. Tive o desejo de adotá-la, porque senti que somos mãe e filha”, diz, sob o olhar atento da estudante Jéssica*, de 16 anos, adotada pela empresária há um ano e meio.
Sandra conheceu a filha em novembro de 2016 no evento “Adoção na Passarela”, em um shopping de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá (MT).
Logo depois do desfile, elas tiveram pouco contato. Jéssica, com 14 anos, planejava como seria a vida dali a quatro anos. “Depois de ver tantas famílias adotando outras crianças e nunca ser escolhida, eu já estava imaginando como conseguiria viver depois que completasse 18 anos, porque teria que sair do abrigo para dar espaço para outras crianças”, relata ela à BBC News Brasil.
Sem revelar para a garota, Sandra cuidou do processo de adoção da filha. “Eu não podia conversar com ela sobre isso, pois era uma orientação para não criar traumas ou expectativas”, conta.
Em dezembro de 2017, Jéssica recebeu a notícia com a qual sonhava todas as noites desde a infância: ela foi escolhida por uma família. “Quando soube, pulei de alegria. Não conseguia acreditar”, diz.
Ela conta que se surpreendeu ao ver que havia sido adotada por Sandra e pelo marido da empresária. “No dia do desfile, eu tinha sentido um pouco que ela era a minha mãe. Não sabia se seria adotada, mas comecei a criar expectativas. Porém, essas expectativas sobre uma família acontecem sempre com quem vive em abrigos.”
“Mas eu tentei não me envolver muito, porque sempre percebi que as pessoas não gostam muito de adotar adolescentes, por achar que crianças são mais fáceis e não têm personalidade formada”, fala.
Polêmica com o desfile de adoção
A história de Sandra e Jéssica é usada como exemplo de que o projeto “Adoção na Passarela” pode ser uma forma positiva de achar uma família para jovens aptos a serem adotados.
Na tarde deste sábado (25), elas receberam a BBC News Brasil na casa da família, em Várzea Grande. Mãe e filha defenderam a iniciativa organizada pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara), em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT).
A polêmica envolvendo o desfile teve início na última quarta-feira (22), um dia depois da segunda edição do evento, desta vez realizado em um shopping de Cuiabá. Nas redes sociais, internautas criticaram a iniciativa de reunir adolescentes órfãos em uma passarela, para serem vistos pelo público, incluindo pessoas que têm interesse em adoção. Alguns, chegaram a comparar a situação ao período da escravidão.
A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, emitiu, no dia 22 de maio, nota pública repudiando o desfile. “O Estatuto da Criança e do Adolescente atribui à sociedade e ao Estado o dever de proteger integralmente crianças e adolescentes, o que inclui a proteção à exposição de sua identidade e as suas emoções”, diz trecho do comunicado da entidade.
A Defensoria Pública de Mato Grosso também divulgou, na quarta (22), uma nota de repúdio contra o evento. “Corre-se o risco de que a maioria dessas crianças e adolescentes não seja adotada, o que pode gerar sérios sentimentos de frustração, prejuízos à autoestima e indeléveis impactos psicológicos.”
A organização do desfile nega que as crianças tenham sido expostas durante o evento. “Essa repercussão foi uma triste surpresa. A gente não esperava esses entendimentos equivocados, que se multiplicaram de tamanha forma”, afirma a presidente da Ampara, Lindacir Rocha Bernardon, que está há 15 anos na entidade filantrópica.
Para Sandra, não há dúvidas: o desfile foi interpretado de modo equivocado por muitas pessoas. “O que estão fazendo está causando um grande problema para a Ampara. Mas analiso que isso também serviu para dar uma acordada no Brasil, para que a sociedade entenda que essas crianças existem, estão escondidas e precisam de família.”
A empresária participou da primeira edição do “Adoção na Passarela” após ser convidada por uma amiga. Sandra passou a se interessar por adoção há 14 anos, após perder sua então única filha de 18 anos em um acidente de carro. Anos depois, tornou-se responsável por criar a filha de uma conhecida, quando a criança ainda era recém-nascida. “Hoje tenho a guarda definitiva dela”, diz, sobre a garota que atualmente tem 10 anos.
Para participar do desfile em 2016, Sandra conta que recebeu uma lista com os nomes dos adolescentes aptos para adoção que participariam do evento. Ela relata que teve acesso somente aos nomes e idades deles. A empresária deveria escolher um ou mais para “patrocinar”, por meio de doação de roupas e calçados para o dia do evento. “Escolhi a Jéssica e mais uma, mas foram nomes aleatórios, porque não havia muitas informações sobre elas.”
No dia do evento, segundo a empresária, a produção a convidou para desfilar com as duas jovens que apadrinhou. Nos bastidores, ela teve o primeiro contato com a filha.
“Eu queria adotar mais uma menina, mas queria uma criança de quatro ou cinco anos. Mas quando conheci a Jéssica e outros jovens no evento, logo pensei: tem vários casais disputando crianças pequenas, então por que não adotar uma garota que está sem esperanças de ser escolhida por ser mais velha?”, diz Sandra.
Adoção tardia
Presidente da CIJ, Tatiane de Barros Ramalho afirma que a adoção tardia é um dos maiores desafios de entidades que cuidam de órfãos. “São necessárias políticas públicas urgentes sobre o assunto. É hipocrisia achar que adolescentes que estão em lares, em busca de serem adotados, não existem. Eles são tratados como invisíveis. A gente precisar trazer esses adolescentes à tona”, declara.
Em razão das dificuldades em encontrar um lar para muitos dos jovens, Tatiane argumenta que as medidas alternativas, como o “Adoção na passarela”, se tornam importantes para que os adolescentes consigam uma família. “Se o desfile fosse algo errado, não teríamos autorização judicial da Vara da Infância e Juventude de Cuiabá e Várzea Grande”, afirma.
Na edição da terça-feira (21), segundo a organização, 18 jovens acima de 12 anos, aptos para a adoção, desfilaram na passarela. “Eles estavam acompanhados dos padrinhos e em nenhum momento foram mencionadas informações sobre eles ou se poderiam ser adotados. Disseram que os jovens desfilavam com identificação, como se fossem mercadorias, mas não é verdade. Eles não foram identificados na passarela. É muito triste saber que algumas pessoas divulgaram mensagens inverídicas sobre o evento”, declara Tatiane.
Além dos jovens aptos para adoção, crianças que já encontraram famílias adotivas também participaram, junto com os pais, da segunda edição do desfile. O evento aconteceu durante a Semana da Adoção, que incluiu, entre outras atividades, palestras, e recreações com as crianças.
Para o advogado Thiago Vargas Simões, especializado em direito de família, houve boa intenção na criação do evento. No entanto, ele afirma que o desfile de menores que buscam por uma família “coisificou” os jovens.
“Creio que poderiam ter sido tomadas outras providências para divulgar e incentivar a adoção daqueles jovens. O Estatuto da Criança e Adolescente prevê que toda criança tem o direito de ser respeitada e inviolada física, psíquica e moralmente, bem como ter a sua imagem e identidade preservadas”, afirma. “Ao colocar aquelas crianças em desfile, por melhor que tenha sido a intenção do evento, pareceu-me algo muito constrangedor para os menores”.
Os organizadores do evento argumentam que as crianças aceitaram participar do desfile. O Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso porém, afirmou, por meio de nota, que a permissão do jovem para participar do desfile não reduz as consequências que podem ser trazidas aos órfãos.
“Em relação às crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional, entendemos que tal exposição, ainda que estas tenham demonstrado interesse, não respeita seus direitos à intimidade e individualidade, uma vez que não compreende e/ou ressalta a dimensão subjetiva das crianças e adolescentes e suas expectativas diante da necessidade de convivência familiar e social”, diz o comunicado do conselho.
O processo de adoção
Depois do desfile com Jéssica, Sandra conversou com representantes da Ampara sobre o desejo de adotar a garota. “Eu não estava na fila para adoção. Tinha o desejo de adotar mais uma filha, mas não tinha feito nada para isso ainda. Naquele momento, me orientaram a preencher uma ficha. Semanas depois, comecei a fazer um curso preparatório para a adoção [na Vara da Infância e Juventude de Várzea Grande], junto com o meu marido”, diz a empresária.
Tatiana frisa que os jovens que desfilaram somente podem ser adotados mediante processo na Vara da Infância e Juventude. “Falaram que se uma pessoa da plateia tivesse gostado do adolescente que desfilou, era só sair com ele dali. Isso é um absurdo. Inventar algo assim é pura insanidade e maldade”, declara.
Após concluir o curso, Sandra e o marido, o administrador Amarildo Monteiro, receberam o certificado que apontou que eles estavam aptos para adotar. “Juntamos todas as documentações necessárias, apresentamos na Vara da Infância para que pudéssemos adotar a nossa filha. Do dia do desfile até a data em que ela chegou em casa, passou-se um ano.”
A empresária relata que a chegada de Jéssica trouxe alegria à família. “Quando ela entrou nessa porta, houve uma transformação na minha casa. A minha filha mais nova é hiperativa, mas isso mudou quando a Jéssica chegou. As duas são muito amigas e parceiras. Ela veio para mudar e somar”, diz.
Jéssica considera que a chegada na casa de Sandra foi uma das melhores coisas que aconteceram em sua vida. “Todos os dias, ficava pensando: o que será de mim amanhã? Será que ainda tenho chance de ter uma família? A gente vai perdendo a esperança, depois de ver tantos amigos indo embora. Eu achava que eu tinha algum problema, porque muitos casais conversavam comigo, mas eu não sabia que era porque eles queriam adotar alguém. Depois de um tempo, eles apareciam no abrigo e levavam algum dos meus amigos com eles. Só aí eu entendia que não tinham me escolhido.”
Por quase 10 anos, Jéssica viveu em um abrigo em Várzea Grande, desde que foi abandonada pelos pais biológicos junto com três irmãos – ela é a segunda mais velha. “Não tenho muitas lembranças dos meus pais”, conta. Ela relata que a espera de quase uma década por uma família trouxe traumas, que agora tenta superar com o amor dos pais adotivos. “O tempo foi passando no abrigo, eu fui crescendo e entendendo a situação em que eu vivia.”
Fonte: MSN
Créditos: MSN