A socióloga Márcia Lima (Barra do Piraí-RJ, 1971) coordena há um ano um núcleo de pesquisa sobre a questão racial em um dos mais prestigiosos centros de estudos sociais e políticos do Brasil, o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Seu grupo, o Afro (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), foi criado em novembro de 2019 com a proposta não somente desenvolver e dar visibilidade para pesquisas sobre desigualdade racial, mas também abrir um caminho para que intelectuais negros ocupem mais espaços de excelência.
É esse trajeto que a própria pesquisadora percorre há 30 anos —desde a sua graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também fez doutorado em sociologia, nas passagens por instituições de prestígio internacionais como Columbia e Harvard (EUA) e no trabalho como professora da Universidade de São Paulo (USP) e no Cebrap, onde atua há 17 anos. De exceção na sala de aula, testemunhou o processo que levou os estudantes negros a se tornarem, em 2018, a maioria dos ingressantes das universidades públicas —fenômeno incentivado, em grande parte, pela Lei de Cotas que em 2022 completará 10 anos e terá de passar por um processo de revisão. Será essa a “prova de fogo” na discussão sobre igualdade racial nos próximos anos, ela avalia, no contexto de um Governo que promove uma agenda de “destruição de direitos” e nega a existência do racismo. Lima é também uma das organizadoras da primeira coletânea de textos da historiadora e filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994) publicada por uma grande editora e, nesta entrevista, denuncia a falta de reconhecimento de pessoas negras como intelectuais, mas avalia com entusiasmo o interesse da atual geração de pesquisadores por esses pensadores.
A socióloga conversou com o EL PAÍS na última terça-feira, 17, antes de virem ao noticiário cenas da brutalidade que, na véspera do Dia da Consciência Negra, levou à morte de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, por dois seguranças brancos de um supermercado da rede Carrefour em Porto Alegre. A pedido do jornal ela respondeu a mais três perguntas sobre o caso por e-mail —são elas que abrem esta entrevista.
A seguir, os principais trechos.
Pergunta. O Dia da Consciência Negra foi marcado pela repercussão da morte por espancamento de João Alberto Silveira Freitas em Porto Alegre. Que recado isso deixa sobre a desigualdade racial no Brasil?
Resposta. A violência tem se consolidado como um dos principais indicadores das desigualdades raciais do país. Coloca o país, internacionalmente, nos piores cenários possíveis. Acho que esse caso se soma a muito outros episódios. Ele não pode ser tratado como uma exceção, como um caso isolado. Ele está com maior visibilidade por dois motivos. Primeiro por conta do momento, véspera do Dia da Consciência Negra, onde já havia um maior deslocamento da mídia para cobrir questões raciais. E segundo porque está em curso um processo de dar mais visibilidade da mobilização negra. Eu falo de visibilidade porque sempre houve muita mobilização negra contra a violência racial, mas os protestos, quando cobertos [pela mídia], eram destituídos de seu caráter racial. Mudamos de patamar no debate público.
P. Então houve avanço nesse debate?
R. Acho que desde a morte de Marielle Franco [vereadora assassinada em 2018 no Rio] a questão da violência racial vem ganhando outra visibilidade. Mas em casos como esses, de violência cotidiana, também houve uma mudança de patamar. Mas ainda há uma dificuldade da mídia em lidar com os protestos, o que enfocar ou como destacar. O caso de João Alberto precisa ser mantido no debate público, precisam ser feitas matérias sobre segurança patrimonial privada, levantar os casos antigos de violência racial nesses espaços, a reincidência do Carrefour. Uma mídia que se diz antirracista tem que ir além do fato e das cenas que nos chocaram e trazer à tona os mecanismos de produção desse racismo.
P. Ao serem questionados sobre o caso, presidente Bolsonaro e o vice Mourão negaram a existência de racismo no Brasil. O que essas declarações mostram sobre a maturidade desse debate no país? Há ressonância?
R. As declarações de Bolsonaro e Mourão representam justamente a impossibilidade de ambos lidarem com o amadurecimento do debate público. E não apenas na questão racial. Acho importante lembrar que Bolsonaro, no dia da sua eleição, disse que iria acabar com o ativismo no Brasil. Esse sempre foi o projeto de seu Governo. A agenda dele sempre foi destituir o item igualdade racial das políticas públicas, e para isso recorreu ao modelo da ditadura: a negação do racismo. Mourão segue o mesmo tom. A estratégia é essa: tirar a equidade racial da pauta, instituir políticas que afetam negativamente a população negra, além de atacar os movimentos sociais, tarefa delegada a um homem negro que preside um órgão público que leva o nome de Zumbi dos Palmares [Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares]. Em relação a ressonância, sempre há. Mas acredito que agrada em especial à fiel parcela bolsonarista e àqueles que ainda se sentem confortáveis em ouvir que não há racismo no Brasil.
P. A sra. coordena um núcleo de estudos sobre raça e gênero em um dos mais antigos e conceituados centros de pesquisa social e política do país. O que levou à criação do Afro em 2019?
R. O meu desejo de criar um núcleo específico para a temática racial dentro do Cebrap já tinha algum tempo. Eu também sou pesquisadora da USP, e vinha amadurecendo essa ideia muito menos pela preocupação com a pesquisa nessa área e mais com a questão da formação. Algo que fez muita diferença na minha trajetória foi ter trabalhado no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, no Rio, que tinha um programa voltado para formar pesquisadores negros na década de noventa. Fez muita diferença ter um espaço além da universidade. E olhando para o cenário brasileiro [em 2019], logo após uma eleição bastante traumática, a gente sabia que viria um recrudescimento do problema de financiamento, de incentivo à pesquisa e de espaço de interlocução sobre a questão racial.
Mas o desmonte institucional da questão da igualdade racial no Governo brasileiro começou antes de Bolsonaro. Foi ruim no Governo Dilma, piora no Governo Temer e virou terra arrasada com Bolsonaro. A partir de 2015 vivemos um ciclo de desinstitucionalização de uma agenda de igualdade racial. E agora, pelo contrário, o Governo Bolsonaro tem uma agenda racial. Não é uma agenda de inclusão, mas é uma agenda racial.
P. E como define essa agenda?
R. É uma agenda de destruição de direitos —direitos da população quilombola, da população indígena, da população LGBT, de tudo o que é possível desconstruir. Muitas vezes essa desconstrução ocorre por omissão, como já dizia Lélia Gonzalez. Uma ausência, uma não ação, pode ter muito impacto. O pacote anticrime do [ex-ministro da Justiça Sergio] Moro era um pacote altamente racializado: o excludente de ilicitude [ponto do projeto lei que abria caminho para a redução de pena de agentes de segurança que cometiam excessos em razão de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”] é um projeto racial. A questão da violência policial é um projeto racial do Estado —não é um projeto de inclusão, mas é um projeto.
Então começamos a pensar como seria o espaço do tema da igualdade racial neste Governo, com sua nítida má vontade com as políticas de ação afirmativa, e em um momento em que conseguimos colocar muito a duras penas jovens negros na universidade e ainda estamos, muito timidamente, colocando mais professores negros. Em 30 anos como pesquisadora, eu nunca vi tantos professores negros doutores como agora. Fiquei pensando em como essa geração que está conseguindo quebrar essas barreiras de entrar na universidade, se doutorar em uma área temática como a questão racial, ficaria. A ideia era criar um espaço onde a gente pudesse formar uma nova geração de pesquisadores negros, dar espaço para os doutores, para manter um pouco essa agenda. Acho importante criar espaço institucionais novos para nós, pesquisadores negros, mas também é importante ocupar espaços estabelecidos.
P. O Afro começou neste mês a lançar boletins informativos com o tema Desigualdades raciais e covid-19. Quais são as maiores sequelas que a pandemia deixará para a população negra no Brasil?
R. Quando começou a pandemia, os primeiros dados já apontavam para o problema da sobremortalidade dos negros. E na literatura sobre desigualdade nos últimos 50 anos está bem mapeado que, em situações de crise, negros e mulheres sempre são os grupos mais vulneráveis a problemas como desemprego. Mas nessa área do desemprego o Brasil já estava em uma situação grave que não estava sendo resolvida pelo Governo. Não dá para colocar tudo na conta da pandemia. A questão educacional é um outro ponto: e não o fato de ficar um ano sem aula, de ter uma aula on-line. Mas tem uma consequência para a educação importante que é o impacto da covid-19 nas famílias negras. Jovens negros que conseguiram ingressar na universidade e estavam conseguindo se manter só estudando, ou que a família conseguia dar uma estrutura, estão muito mais vulneráveis para conseguir continuar a sua trajetória. Na USP estamos vendo casos assim. Essa desestruturação da família causada pela morte, pela perda de emprego ou pela diminuição de renda com a covid-19 tem um impacto não direto na educação, mas nas condições materiais com as quais essas pessoas tentam enfrentar a desigualdade.
A população negra estava em empregos que ou desaparecerem ou as expuseram, e tem ainda as pessoas que já estavam fora do mercado e agora podem não conseguir entrar, porque aumentou o contingente de pessoas procurando emprego. A longo prazo, os efeitos serão muito duradouros e deletérios para essa população. E não existe um plano de recuperação no Governo.
Márcia Lima, em seu apartamento na zona sul de São Paulo. WANEZZA SOARES
P. A sra. já afirmou em outra ocasião que o Afro nasceu com o objetivo de reduzir a invisibilidade da temática racial, “não só no sentido da política institucional, mas também na forma interpretativa”. Quais são os principais equívocos que persistem na academia nessa leitura sobre as pessoas negras?
R. Há três dimensões diferentes nessa questão interpretativa, e a primeira está na trajetória dos estudos sobre raça no Brasil. Se você pegar 15 revisões bibliográficas, para entender como os estudos sobre raça evoluíram no Brasil, vai encontrar aquela mesma sequência de autores que estudaram o tema ao longo do tempo, que são homens, brancos, das universidades centrais. E toda vez que você conta a história de como os estudos sobre raça se construíram no Brasil, são poucos os intelectuais negros que aparecem nessa narrativa. Como se não tivéssemos tido, desde os anos vinte, pessoas negras refletindo sobre isso. É muito interessante que essa geração de agora esteja fazendo muitos estudos sobre intelectuais negros —Guerreiro Ramos, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro. Uma série de trabalhos está recolocando o papel dessa intelectualidade negra na interpretação das relações raciais no Brasil e também na interpretação sobre o país. Esses intelectuais sempre existiram, mas não tiveram a visibilidade e sequer a sua produção publicada e acessível.
Outra é a questão do papel do negro na história do Brasil. Essa narrativa da passividade, de que o negro não se rebelava, de que os negros brasileiros não se mobilizam [como nos Estados Unidos, por exemplo], ainda é uma narrativa muito forte. São várias narrativas que destituem os negros de uma certa agência, tanto intelectual, de produzir interpretações sobre o Brasil, quanto de ação sobre a sua própria história.
A outra dimensão interpretativa é na ideia dicotômica entre raça e classe, a ideia de que se você resolver os problemas de distribuição social você vai resolver a desigualdade de raça. Não resolve. Quando a gente teve o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, no Governo FHC, de fato o trabalho infantil foi reduzido, mas as crianças negras demoraram mais a sair dele. Agora a gente vive essa mesma experiência com o feminicídio. Os dados sobre os 10 anos da Lei Maria da Penha mostram que em algum ponto você consegue reduzir a morte das mulheres brancas, mas a das mulheres negras não reduz junto. Então é preciso dar visibilidade à interpretação da raça como uma variável que estrutura e organiza os lugares sociais. A importância da perspectiva interseccional [que conjuga raça, classe e gênero] —e virou uma moda usar o termo interseccional— é justamente essa impossibilidade de separar as variáveis e de colocá-las em oposição ou disputa interpretativa.
P. Qual tem sido o papel do lugar de fala no debate acadêmico?
R. O lugar de fala continua sendo usado de forma equivocada. O lugar de fala não silencia ninguém, o lugar de fala não desautoriza ninguém, e pessoas de todos os lados ainda usam isso de forma errada. “Não é o meu lugar de fala” e “vou usar o meu lugar de fala” são frases que não têm sentido. Todo mundo tem um lugar de fala, e o que esse conceito coloca é exatamente isso. Você pode falar de qualquer assunto desde que você saiba o seu ponto de vista, o lugar que você tem. Não é uma questão essencialista, de que só mulheres negras podem falar de mulheres negras, só mulheres indígenas podem falar sobre mulheres indígenas, “porque viveram a experiência de ser” —não é isso. É entender que quando você fala sobre alguma coisa você está falando do lugar onde você construiu essa sua visão.
Se você pegar os grandes clássicos da sociologia e buscar entender por que [Émile] Durkheim estuda o suicídio, por exemplo, vai encontrar uma história. Na biografia de grandes pensadores tem algo que explica o que os levou a estudar determinado assunto —uma inquietação, um interesse, uma tragédia pessoal. Por que isso não pode ser considerado? Entender isso é importante até para destituir a ideia de que existe uma narrativa universal, que é ausente de perspectivas. Porque se não é como se existisse uma narrativa universal —em geral masculina, ocidental e branca—, e as demais narrativas fossem “um lugar de fala”.
P. Além da pandemia de coronavírus, o lançamento do Afro foi sucedido pela onda de protestos antirracistas iniciada nos EUA após a morte de George Floyd, no fim de maio. E com ela veio uma busca por participação de pessoas negras na mídia, em eventos e nas empresas. Como a sra. avalia isso?
R. Existe de fato um aumento desse espaço no debate público, nos jornais, nas editoras, mas que não ocorre sem tensão. A gente vê muita reação a isso —e de todos os lados, não é só a direita que reage mal. É como se a gente estivesse esvaziando a discussão da desigualdade de classe no Brasil. Aí vamos para o caso George Floyd. Naquela época foi uma quantidade de entrevistas, de pedidos de textos, de participação ao vivo. Foi um novembrismo em junho, a gente quase enlouqueceu.
E o caso George Floyd também foi uma coisa muito curiosa porque mobilizou o mundo inteiro no meio de uma pandemia. Acho que a própria pandemia, o fato de as pessoas ficarem mais fechadas dentro de casa, potencializou a visibilização desse caso. Mas o Brasil tem um George Floyd por dia. Então essa comoção também teve um papel de criar um efeito de distanciamento da nossa própria violência policial.
A questão institucional é a mais complicada. Ocupar espaço no debate público é uma coisa, agora ocupar espaços institucionais, ocupar espaços decisórios, ocupar espaços de poder, é ainda um grande dilema. Bem mais fácil abrir espaço em jornal, dar um minutinho na TV, do que institucionalizar a presença de pessoas nesses espaços.
P. Em relação à presença maior de pessoas negras no debate público, estamos num ponto de não retorno?
R. Este é um ano muito atípico para avaliar isso. Uma coisa que eu achei interessante é que o caso George Floyd potencializou o 25 de julho [Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha]. É impressionante como neste ano a visibilidade dessa data ganhou uma potência muito grande no Brasil. Veio para ficar como agenda, como referência, para as mulheres negras. Mas acho que, para além dessas questões episódicas, houve sim, por mais estranho que isso pareça, uma ampliação dessa percepção sobre a desigualdade racial [pela população em geral]. Não acho que ela foi revelada, mas a pandemia dá uma concretude diferente para a questão da desigualdade racial.
P. Com isso, estamos de fato caminhando para uma sociedade menos racista?
R. Eu sempre digo isso para os mais jovens: são tantos anos de militância, tantos de dedicação, a gente vê o movimento negro, a Coalizão Negra por Direitos, o livro da Lélia… Se não fosse a Coalizão, o excludente de ilicitude teria passado [o pacote anticrime foi aprovado sem esse ponto]. Tem muita conquista do movimento, e essa conquista é fruto também de muito trabalho intelectual engajado e comprometido. Eu estudo a questão racial há 30 anos, eu conheci muitas pessoas, eu vi muitas coisas, passei por várias instituições. Então não tem como eu dizer que as coisas não mudaram, não avançaram. O espaço no debate público realmente mudou. Não sabemos se vai durar, mas eu não consigo ver os jovens com quem me deparo hoje na sala de aula aceitarem silenciamento e retrocesso. A grande prova de fogo que vem por aí em termos de inserção racial é a renovação da lei das cotas em 2022. É o debate que vai dominar os próximos anos, vai ser uma disputa política pesada no contexto de um Governo bastante conservador, avesso a essa agenda de igualdade e sem habilidade de diálogo.
Mas o que falta é a gente transformar todo esse reconhecimento em processos institucionais de inclusão. A mudança no mercado de trabalho é ainda um processo muito tímido. O episódio da Magazine Luiza mostra para mim o quanto que isso ainda precisa andar. A reação foi muito pesada, a Luiza Trajano foi devorada. Eu falei com ela por telefone naquela semana e fiquei impressionada com a força dela. Ela me disse: “Eu estava preparada para essa reação”. Criar mecanismos inclusão, de transformação das empresas, que envolvam mudança da situação social do negro no Brasil ainda é uma agenda de muito longo prazo.
Fonte: EL País
Créditos: EL País