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Como a pandemia de coronavírus perturba o sono e provoca pesadelos - Por Gilberto Amêndola

Durante quarentena, pessoas têm sonhado com cenários catastróficos relacionados ao cotidiano da pandemia

A ilustradora e cenógrafa Giorgia Massetani, de 33 anos, acredita que os sonhos estão refletindo os seus sentimentos mais profundos neste momento. “Estou na beira do mar. Não tem praia, são rochas. O mar parece aqueles dos filmes de Miyazaki (Hayao Miyazaki é um animador, cineasta, roteirista, escritor e artista de mangá japonês). O céu é luminoso e o mar é de um azul lindíssimo, mas a correnteza é forte. Estou lá com outras garotas. Uma se joga no mar. Eu a chamo e digo para ter cuidado por causa da correnteza.

Depois, vamos embora em uma Kombi e o caminho de volta parece aquelas cidades de praia italianas, com as casas de dois andares em estilo do começo do século com flores vermelhas e rosas subindo os portões de ferro dos jardins”, descreve Giorgia. “No sonho, acredito, estou olhando para dentro de mim e dos meus sentimentos. No momento, me sinto em paz em estar no meu mundo e com minhas regras. Ainda assim, fora do meu mundo, não consigo controlar os meus medos e inseguranças.”

Para a neurologista e especialista em medicina do sono e coordenadora do Laboratório e Ambulatório de Sono do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas Rosa Hasan, o momento que estamos vivendo se reflete em nossos sonhos, mas podem ser “trabalhados” ainda durante a vigília. “Nesse momento de muita tensão, de sofrimento e ansiedade, é normal que as pessoas sonhem com coisas relacionadas a tudo isso. Mas acredito que é possível se cercar de coisas bonitas e ter sonhos positivos”, disse. “Minha sugestão é não ficar só no lado negativo. Veja as coisas boas que estão acontecendo, leia um livro, veja um filme, converse com os amigos, faça uma atividade em família. Prepare-se para o sono, limpe a mente com algum hobby, música, oração ou meditação.”

A ceramista Sandra Alves Sant’Anna, de 49 anos, está na fila do supermercado. No início, as pessoas mantêm uma distância razoável umas das outras. De repente, o clima vai ficando pesado, o medo no olhar dos clientes é visível. Brigas começam a estourar por todo o supermercado. Não são mais humanos, são zumbis, estão em transe. Sandra tenta se arrastar para a saída.

Já o arquiteto e urbanista Frederico Zanelato, 47 anos, está em um cruzeiro. O navio está à deriva, sem comandante, e os passageiros estão presos nele. Às vezes, tem comida; outras vezes, outros barcos se aproximam e jogam comida e produtos de primeira necessidade para dentro da embarcação. Desconhecidos tiram a temperatura dos passageiros com termômetros digitais que se parecem com armas futuristas. Ninguém pode sair de lá. Frederico não consegue enxergar o sol. Tudo é sombrio e angustiante.

Sandra e Fred acordaram. Ainda bem. Tudo não passou de um sonho. Na verdade, sonhos alimentados por um período de quarentena, distanciamento social e, principalmente, pela própria pandemia do novo coronavírus. “Normalmente, meus sonhos são relacionados ao dia a dia. Hoje, só pode ser sobre a pandemia”, diz Sandra.

“O sonho reflete a situação que vivemos. Estamos em casa, com medo de sair e contrair uma doença que pode ser fatal. Dependemos da ajuda uns dos outros, mas estamos sem comandante, desgovernados”, opina Frederico.

Para o psiquiatra especializado em Medicina Psicossomática e Hipnose Clínica Leonard Verea, os sonhos desse período são frutos de uma grande frustração. “Vivemos um momento de frustração porque não conseguimos liberar nossas emoções e fantasias durante a vigília, já que estamos todos confinados. Então os nossos sonhos refletem as inseguranças e incertezas”, avalia.

Muitas vezes, os sonhos da quarentena estão relacionados a questões e problemas pontuais e derivados de uma vida com restrições. A administradora Priscila Cavalcante, de 36 anos, por exemplo, sonhou com colegas de trabalho na casa dela. Eles assistiam a filmes e tomavam vinho. “Tem a ver com esse momento de confusão e com o fato de não poder receber ninguém em casa”, disse. Já a analista contábil Elizabeth Cruz de Almeida, de 37 anos, sonhou que estava fazendo um empréstimo bancário. “Minha prima já foi demitida na semana passada. Certeza que meu sonho tem a ver com o caos econômico que vamos passar.”

A aposentada Clotilde Duarte Reis, de 66 anos, sonhou que estava em férias na Tailândia, onde sempre era noite e chovia. Ela sentia medo e procurava um estabelecimento que vendesse pão. “Vivemos algo inacreditável. A população mundial está trancafiada. O sonho está relacionado a isso.”

Para o diretor clínico do Instituto de Psiquiatria Paulista, Henrique Moura Leite Bottura, os pacientes estão desorganizados no horário de dormir, não conseguem manter um rotina – e isso impacta na qualidade de vida e dos sonhos. “As pessoas têm sonhos recorrentes em momentos difíceis. Sonham com cobranças, fugas, que estão caindo ou com coisas que deixaram para trás. O nosso inconsciente trabalha com o nível de tensão que estamos vivendo.”

O cotidiano vivido na pandemia se mistura com o medo e a nossa bagagem cultural. “Sonhei que levava minha mãe pra fazer quarentena na Bélgica! Acho que tem a ver com o fato de eu ter lido o começo do Decamerão. Boccaccio descreve as circunstâncias envolvendo a epidemia da peste negra”, conta o professor de inglês Liracio Cavalcante Junior, de 43 anos, que acredita também que o sonho estranho tenha a ver com a preocupação com a mãe.

“Na sexta (20), fui no Jaraguá, onde ela mora, e fiz atividades de banco e mercado pra que ela e a irmã, também idosa, não tivessem de sair da casa. Depois li sobre a peste negra. Isso explica meu sonho aburguesado tentando fugir pra Bélgica, onde, ironicamente, a epidemia grassa.”

Análise: Estamos longe de entender os sonhos
Por Daniel Suzuki Borges*

A ciência dos sonhos desperta muito interesse e curiosidade. Ainda estamos longe de entendê-los por completo. Em geral, sonhos são como um “palco protegido/seguro”, onde podemos ensaiar a vida.

Quando estamos em REM (fase do sono na qual os sonhos são mais vívidos), o corpo se encontra com inibição da atividade motora, muito relaxado, enquanto a atividade cerebral é bastante exuberante. Diferentemente de outras fases do sono, a atividade cerebral no sono REM se assemelha muito ao do padrão visto quando estamos acordados (podemos ver isso em eletroencefalogramas, exames de neuroimagem funcional, por exemplo).

Se não tivermos essa inibição da atividade motora, o corpo começa a “atuar” o sonho. Imagina o perigo: se você sonha que está lutando… Sem essa inibição, corre o risco de se machucar ou a um companheiro de cama, para citar um exemplo. Existe um distúrbio do sono em que isso acontece: chama-se Transtorno Comportamental do Sono REM. Qualquer conteúdo de sonho nesse distúrbio tem potencial de ser “atuado”.

Com frequência, a experiência pessoal e a vivência atual acabam influenciando o “enredo” dos sonhos. Mesmo que, na maior parte das vezes, trata-se de uma “narrativa” anárquica, sem sentido lógico na maior parte do tempo. O que podemos pensar na influência disso, nesse contexto de crise sanitária, pode ser um assunto que pode aparecer frequentemente, quer seja de forma explícita, quer seja de maneiras não muito claras.

As preocupações podem se incorporar aos sonhos, sejam atuais ou passadas. Dependendo de quão traumática for essa experiência, isso pode aparecer na forma de pesadelos. Em especial, em profissionais de saúde no front dessa “guerra”.

*MÉDICO ASSISTENTE DO GRUPO DE DISTÚRBIOS DO SONO DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HC

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba

Fonte: Estadão
Créditos: Estadão