Na linha de frente do coronavírus, a técnica de enfermagem Erica de Oliveira Santos, 43, teve um esgotamento mental que resultou em cinco afastamentos do hospital em que trabalha. Quatro por transtornos de adaptação relacionados ao estresse e um porque testou positivo para a doença. Com três mortes na família e centenas no hospital, ela conta que perdeu o prazer pela sua profissão causados pela dor e sofrimento da covid.
“Trabalho há nove anos como técnica de enfermagem no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Antes da pandemia, atuava na UTI coronariana e quando precisava ajudava na UTI geral.
Assim que foi decretado o isolamento social, tirei 15 dias de férias que já estavam programadas havia um ano. Eu, meus pais, minhas duas irmãs e suas famílias fomos nos isolar num sítio que temos em Minas Gerais e, quando voltamos, fiquei morando com uma das minhas irmãs e o marido dela, ambos são enfermeiros.
Ao voltar para o hospital, comecei a trabalhar na linha de frente com pacientes de covid internados na UTI. O primeiro dia foi horrível, só chorava, parecia uma cena de guerra, muitas pessoas intubadas e um medo absurdo do desconhecido, do que viria a seguir.
A gente não sabia como lidar com aqueles pacientes por não conhecer a doença e por não saber como ela evoluiria. Pensei em passar no RH e pedir demissão.
Morria de medo de ser contaminada, sentia uma angústia de tocar no paciente com covid, da luva rasgar e a minha mão ficar exposta durante o banho, por exemplo. Meu comportamento mudou drasticamente, tinha medo de encostar nas paredes, de pegar o elevador, só tomava água e usava o banheiro em casa —só usava o do trabalho em caso de extrema necessidade— tinha medo de comer a comida do hospital, comia muito pouco. Em um ano de pandemia, emagreci 20 kg.
Erica de Oliveira Santos, bem no centro da imagem de touca lilás, no hospital em que atua Imagem: Arquivo pessoal
O medo de ficar doente foi me consumindo a ponto de se tornar insuportável. Em maio, minha avó faleceu de covid e fui afastada pela primeira vez. Passei com um psiquiatra do hospital, ele disse que eu estava com um quadro agudo de estresse, que deveria fazer um acompanhamento senão poderia evoluir para a síndrome de Burnout. Me deu medicação para dormir e me afastou por uma semana. Um mês depois, uma tia morreu de covid.
Em julho o que eu mais temia aconteceu, testei positivo para o coronavírus. Fui afastada pela segunda vez, fiz o tratamento na casa da minha irmã, fiquei 14 dias dentro do quarto, só saía para usar o banheiro e toda vez que usava lavava com cândida.
Tive crises de ansiedade, choro, insônia e teve um momento que achei que fosse morrer de angústia. Cumprida a quarentena, voltei a trabalhar.
No mês seguinte, em agosto, meus pais, minha irmã enfermeira e a filha dela foram diagnosticados com covid. Minha mãe ficou internada 17 dias, e meu pai, quase 50. Ambos foram intubados e ficaram no mesmo quarto na UTI.
Simplesmente não conseguia trabalhar com meus pais naquela situação, era desesperador. Conversei com a minha liderança, que foi muito solidária, eles me deram os outros 15 dias de férias a que eu tinha direito.
Minha mãe evoluiu bem e voltou para casa, mas meu pai teve complicações da doença. Dois dias depois de ter sido extubado, ele sofreu um infarto, foi intubado e após um tempo extubado novamente. Ele foi traqueostomizado e pegou uma infecção hospitalar, mas ficou bem.
O médico até previu que ele receberia alta em uma semana quando acabasse o antibiótico, mas nesse período ele acabou falecendo, no dia 14 de outubro de 2020.
Ouvi o último suspiro do meu pai, mesmo ele não estando sob os meus cuidados, fazia questão de estar presente e ajudar.
Depois que meu pai morreu perdi completamente o prazer pela minha profissão, uma sensação de incapacidade muito grande. Não que me achasse Deus para salvar a vida das pessoas, mas a gente cuida, cuida, cuida e perde, é um processo desgastante.
Foi assim com o meu pai e tem sido assim com os outros pacientes, meu maior medo passou a ser o de falhar no cuidado com eles.
Com essa nova onda do vírus, a sensação que tenho é de estar dentro de uma redoma, onde não tenho e não vejo saída para isso, é um filme de terror que não tem fim. A ideia que eu tenho hoje é que o coronavírus não vai acabar.
Após a morte do meu pai, fui afastada mais duas vezes pelo psiquiatra do hospital, todos os afastamentos foram por transtornos de adaptação relacionados ao estresse. Desde outubro, estou tomando antidepressivo, continuo tomando remédio para dormir e faço acompanhamento com psiquiatra e psicólogo.
Tive um esgotamento mental porque vivi os três lados da doença, fui paciente, estive na condição de quem espera por notícias de um familiar e atuo na linha de frente.
A covid é solitária para quem cuida e para quem é diagnosticado, e é ainda mais solitária e triste no luto, que vai permanecendo dentro de nós e nos corroendo.
É dolorido, mas a gente vai se acostumando com a morte e isso é muito desanimador, estamos todos muito cansados e exaustos.
O que tem nos dado fôlego é o trabalho de um diretor do hospital, que, sempre que possível, nos dá um retorno sobre o paciente de covid que ficou na UTI. Ele procura se informar se ele se recuperou e se foi para casa.
Receber esse tipo de notícia positiva é gratificante, é uma forma de nos estimular, de agradecer pelo nosso trabalho e de reconhecer nosso esforço.
Continuo trabalhando porque preciso me manter viva, me sustentar e para retribuir ao hospital todo o amor, cuidado, carinho e acolhimento que eles tiveram comigo, com a minha mãe e com meu pai. Mas a verdade é que já tive vontade de sair correndo várias vezes.
Nessas horas paro, coloco a cabeça no lugar e lembro a mim mesma que as pessoas estão sofrendo, morrendo e não posso ser indiferente a isso.
Estou num processo de repensar a minha profissão, quero ficar mais um tempo no hospital, acertar a minha vida e, quem sabe, partir para outra carreira, mas qual? Não sei fazer outra coisa a não ser cuidar de vidas.
Escolhi ser técnica de enfermagem por ser o que faço de melhor, mas a dor e o sofrimento causados pelo coronavírus têm se sobressaído e tirado o prazer que eu tinha pela minha profissão, é muito triste.
Um exercício que tenho feito é viver um dia de cada vez. A cada plantão que inicio angustiada, respiro fundo, tomo o fôlego necessário, peço a Deus força e para guiar o meu caminho para que eu não cometa erros e vou para mais um dia de luta na tentativa de ajudar e de fazer a diferença na vida daqueles pacientes que dependem dos meus cuidados”.
Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba