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Com pacientes à espera na UTI, hospitais recomendam 'tratamento' com cloroquina e ivermectina

Por lá, os corredores servem de via de transporte de pacientes sob auxílio de respiradores. Médicos e enfermeiros correm de uma ala à outra empurrando macas para onde for mais cômodo, às vezes tentando, por meio de realocações, abrir novas vagas de leitos. Girlene Santos de Jesus, 32, observou esse caos de perto enquanto esperava pelo atendimento para fazer o teste de covid-19. "É assunto", define.

 

O Hospital Florianópolis, referência nenhum atendimento dos casos covid-19 na região metropolitana da capital catarinense, em Estreito, está tomado pelo silêncio.

Eram 19h de uma segunda-feira, e o único som que chamava a atenção era o da chuva intermitente daquele dia (1). A calmaria na área externa escondia o terror do lado de dentro: o estado trava uma guerra discreta contra a pandemia. Não há mais leitos de UTI em nenhum dos hospitais da capital, nem mesmo na maternidade Carmela Dutra – que, teoricamente, não se dedica a esses casos.

A porta de emergência se abre rapidamente. A três metros de distância, há uma ambulância do SAMU. De lá, os técnicos em enfermagem Jonas Burdo Jr, 40, e Jonatan de Souza, 44, saem selados pelo EPI: macacão branco translúcido, máscara PFF2 com adesivo curativo para firmá-la, touca branca e escudo facial. Juntos, carregam uma maca com um cilindro de oxigênio de volta à ambulância.

Estão cansados. Têm trabalhado há quase 12 horas (duração de um turno do SAMU), atendendo somente casos de covid-19 . Jonas já vinha de um longo dia de trabalho na ambulância de casos graves, um ambulante de UTI. Diz que o corpo só aguenta por ter contas a pagar.

A maca que guardavam havia acabado de transportar o último paciente que o hospital aceitou internar. Sem leitos há alguns dias, o Hospital de Florianópolis ainda encontrava jeitos criativos de comportar conforme ocorrido de covid-19, chegando ao extremo de acomodá-las em poltronas. A última poltrona livre foi ocupada por um homem de 42 anos que, durante a viagem de ambulância, necessita de 10 litros de oxigênio por minuto – o que significa receber 100% do gás. O caso é gravíssimo.

Jonas pega o cilindro e mostra a diferença entre liberar três e 10 litros do gás. No primeiro caso, que serve para quem está com dificuldade de respirar – mas ainda tem controle sobre os próprios pulmões -, o gás é eliminado suavemente, como a própria respiração humana. No segundo, o ar gera um barulho agressivo de vazamento sob alta pressão. Quem precisa disso já tem um leito de UTI com seu nome. “Mais que 10 litros de oxigênio, normalmente, só para quem está expirando demais, senão é só jogar fora”, explica Jonas.

A rotina de atendimento não anula o choque que sentem ao entrar nos hospitais. “É uma guerra [lá dentro]. É muita gente … muita gente”, exclama Jonatan. O colega afirma que, oficialmente, não há mais para onde levar os pacientes. “Aqui [Hospital Florianópolis], a gente entregou o último. Só abre vaga aqui se alguém falecer”, diz Jonatan.

Depois da ocorrência, os dois iniciariam um processo de quase três horas de desinfecção da ambulância, tornando-a adequada para uma eventual ocorrência padrão (fratura, enfarte etc), o que, como eles mesmos expressaram, dificilmente aconteceria. O normal é atender a dois três casos de covid-19 por dia – o expediente é o suficiente para ocupar até 12 horas de turno.

Na porta do hospital
Na entrada principal do Hospital Florianópolis, um servidor coberto por EPI mede temperatura e oferta álcool em gel direto de um tubo de cinco litros. Ao redor dele, nos bancos sob uma marquise, três ou quatro pacientes se acomodam à espera de atendimento. O sol é fraco ali, quase nada, e já são 15h. Ruídos de tosse são ouvidos no ambiente. Quase todo mundo está com covid-19 – e quase todos estão na faixa dos 30 a 40 anos.

Ana Paula Juttel, 40, se aninhava nos ombros do marido. Sua debilidade estava entregue na voz fraca e miúda. O corpo doía muito – em especial as juntas e o couro cabeludo. A febre a dominou na mesma madrugada, surrupiando-lhe o sono, cansaço nítido nas olheiras profundas. Chegou àquele banco após se infectar pelo companheiro, que por sua vez adoeceu na quinta feira (25), e assim começou uma odisseia entre hospitais das cidades vizinhas de Florianópolis: Palhoça, onde residem, e Santo Amaro da Imperatriz, contígua.

O casal saiu de casa às 17h, rodou por diferentes unidades de saúde e só alcançou algum atendimento no Hospital Florianópolis por volta das 22h. Pelo menos, não esperaram mais do que 40 minutos entre chegada e atendimento.

Na receita dada ao marido, constava hidroxicloroquina e ivermectina – o kit-covid alardeado pelo governo cuja eficácia não foi comprovada pelos cientistas . No final de junho de 2020, o governo de Santa Catarina distribuiu hidroxicloroquina aos municípios. Agora, o remédio compõe o kit receitado em diferentes unidades de saúde. Consultada, a secretaria de saúde de Santa Catarina encaminhou à reportagem do TAB a mesma nota oficial que foi distribuída desde novembro de 2020: “a cloroquina 150mg é disponibilizada pelo Ministério da Saúde e distribuída aos Estados que, por sua vez, distribui aos municípios e hospitais com leitos para tratamento de covid-19, tanto públicos quanto privados. Santa Catarina já realiza a distribuição aos hospitais desde abril e, aos municípios, a distribuição no mês de julho “.

Acompanhado de sua esposa Juliana Gurniak, 36, Diego Duarte, 36, caminhava de forma arrastada, com três receitas médicas distintas nas mãos. Numa delas, recebido após uma consulta no Centro de Atenção à Terceira Idade (CATI), dentre os tantos remédios, constava ivermectina. Desde julho de 2020, a Anvisa desautoriza o uso para tratamento de covid-19.

Nada do que vinha tomando diminuía a dor. Sua saturação estava em 90%. O corpo latejava e a respiração estava densa como chumbo. Ficou instantâneo no banco, sonolento, durante a hora e meia que aguardava, ao lado de sua mulher. “Ele só sabe ficar assim”, lamentou ela.

Diego fraquejou durante o processo de triagem. Com ajuda da esposa e sem auxílio dos enfermeiros, voltou para a área externa, onde aguardou até ser chamado novamente. Torciam, ele e ela, para conseguir um leito, alguma coisa, caso fosse necessária uma internação. Contudo, por pior que estivesse, não foi considerado caso grave, fechando o ciclo com mais uma receita médica – dessa vez, sem o kit-covid.

No dia seguinte, a esposa e os dois filhos fariam exame para saber se foram infectados. Juliana torcia para não ser imobilizada pelo vírus.

No centro de Florianópolis, agonizam também os pacientes do Hospital Governador Celso Ramos, o segundo mais afetado na pandemia, logo atrás do Hospital Florianópolis. Segundo Jonatan, o técnico em enfermagem do SAMU, muitas pessoas na faixa dos 30 anos anteriores falecendo ou entrando no hospital, em quadros gravíssimos.

Por lá, os corredores servem de via de transporte de pacientes sob auxílio de respiradores. Médicos e enfermeiros correm de uma ala à outra empurrando macas para onde for mais cômodo, às vezes tentando, por meio de realocações, abrir novas vagas de leitos. Girlene Santos de Jesus, 32, observou esse caos de perto enquanto esperava pelo atendimento para fazer o teste de covid-19. “É assunto”, definir.

Começou com uma dor por todo o corpo, tosse, e lentamente evoluiu para uma dificuldade de respirar branda, mas progressiva; agora, doem até os olhos. Sem paladar nem olfato, tem certeza de que pegou a doença, mas não conseguiu o exame pelo hospital, recebendo encaminhamento para o posto de saúde. Tudo que lhe deram foi uma receita com meia dúzia de remédios. Como toda sua família mora na Bahia, não terá quem contar o caso o quadro se agrave.

Há desespero por todas as unidades de saúde em Florianópolis. Centros de atendimento a idosos e maternidades abrem ai para o combate à covid-19. Em como hospitais o Nereu Ramos, também no centro, para atendimento a portadores de HIV foi suspenso temporariamente. Todos que visitam algum hospital – onde o trânsito é estritamente restrito a profissionais da saúde – descrevem as mesmas cenas de pavor.

Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba