O medo dela é ligado à eleição de Jair Messias Bolsonaro, candidato do PSL à Presidência da República eleito no último domingo com 55,54% dos votos válidos. Entre outras polêmicas, o político ficou famoso por tecer publicamente comentários de teor homofóbico. Por exemplo em 2011, em entrevista à revista Playboy, quando disse: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. Na mesma entrevista, afirmou: “Se um casal homossexual vier morar do meu lado, isso vai desvalorizar a minha casa! Se eles andarem de mão dada e derem beijinho, desvaloriza”.
Para o casal, ter um homem que declara sem pudores esse tipo de fala como chefe de Estado seria uma ameaça aos direitos conquistados pela população LGBT. Além de temer por seus direitos, as duas também têm medo da violência que as palavras de Bolsonaro “autorizam”. No dia 8 de outubro, segunda-feira seguinte ao primeiro turno, Mariana ouviu ameaças nas ruas. “Toma cuidado, Bolsonaro vai ganhar e você vai ver”, gritou um homem para ela. Por isso, casar foi também um ato político. “Uma forma de demonstrar nossa resistência e dizer que ninguém vai nos silenciar”, diz.
A cerimônia foi realizada no terreiro de umbanda que frequentam, na zona norte de São Paulo, seguida de uma festa na qual o casal fez questão de ostentar a bandeira do arco-íris, símbolo do movimento LGBT. “O casamento foi maravilhoso. A gente ainda ficou domingo numa nuvem de amor, até às sete da noite, quando saiu o resultado das eleições e aí ficamos mal”, conta Gabrielle.
“Decidimos então adiantar os papéis”
Mariana e Gabrielle são parte de um movimento de casais homossexuais que estão decidindo casar “no papel” antes da posse do novo presidente (prevista para 1º de janeiro de 2019). No dia seguinte ao casamento delas, foi a vez da influenciadora Jéssica Tauane, 27 , criadora do Canal das Bee, e da relações públicas Julia Stangari, 28. Elas também planejavam fazer um casamento com festa em 2019, mas o medo levou a adiantarem e fazerem apenas a união civil em um cartório, sem celebração. “Como a gente não sabe se o direito de nos casarmos vai continuar sendo garantido no ano que vem, porque é uma jurisprudência, acabamos adiantando”, conta Jéssica, que considera essencial terem os papéis assinados, para que possam responder legalmente uma pela outra.
É que devido à exposição que tem por causa do canal no Youtube, o excesso de trabalho e o grande número de comentários violentos que sempre recebeu, Jéssica teve um problema de saúde sério em 2017. “Eu dei uma enlouquecida por causa de estresse e de tanto preconceito que encarei sorrindo esses anos todos. Fiquei um mês sem saber quem eu era e cheguei a ser internada numa clínica psiquiátrica”, lembra.
Durante o período, Julia largou seu emprego para poder cuidar da então namorada, que precisava de atenção 24 horas. Isso fez com que elas questionassem quem tem a permissão legal para responder pela outra em momentos de crise. Agora que Jéssica está recuperada, tomaram a decisão de se casar. “Antes a gente achava que não ia precisar envolver o Estado, era só a gente se unir, mas depois da Jéssica ter adoecido e, pela situação política, mudamos de ideia”, diz Julia.
“Se algo acontecer comigo, ela fica sem nada”
Em Brasília, a professora Bárbara Ferraz, 25, e a técnica em radiologia Natália Campos, 24, decidiram esperar o resultado das urnas para tomar a decisão. Na segunda-feira, após a confirmação da eleição de Bolsonaro, foram levantar seus documentos para dar entrada no cartório. “A gente não tinha pretensão ainda de oficializar, porque queríamos juntar dinheiro para uma festa. Mas o atual cenário nos forçou a adiantar a papelada. Ele assinou um acordo com um pastor e isso me deixou muito preocupada”, diz Bárbara.
Ela se refere ao um acordo que o presidente eleito assinou com o arcebispo do Rio, Dom Orani, em que se compromete, entre outras coisas, a defender a “família”. Para Bárbara, o discurso do candidato já deixou claro que casais homosseuxais não se encaixam em seu conceito de família. Além da perda de direitos, ela tem medo de sofrer violência e quer deixar a namorada como sua representante legal e também herdeira. “Se algo acontece comigo, a Natália fica sem nada. Então esse é mais um motivo pra gente casar.”
No domingo, ela foi votar usando uma camisa em que se lia “Ele Não”, de mãos dadas com a namorada e conta que sofreu ameaças no caminho para a zona eleitoral. “Faziam sinal de armas e diziam que a gente vai morrer.” Apesar do medo, as duas não deixam de fazer planos. “Vamos ainda ter três filhos, eu vou engravidar de um, ela de outro e o terceiro vamos adotar.”
O casamento homossexual pode deixar de ser um direito?
Informações da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo, os dados nacionais do Registro Civil mostram que os números de casamentos homoafetivos nos cartórios vêm aumentando desde 2013, quando foram 3.701 registros. Em 2017, o número chegou a 6.746. Neste mês de outubro, foram 81 processos de união afetiva confirmados.
Atualmente, a união civil de pessoas do mesmo gênero é permitida no Brasil por jurisprudência. Isso quer dizer que não existe uma lei que estabeleça os direitos dos casais homoafetivos, mas que eles estão estabelecidos por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. “Desde 2011, quando houve a decisão do STF que reconheceu a união estável homoafetiva, foi entendido que os direitos dos casais homo são os mesmos dos casais héteros. Depois disso, o Conselho Nacional de Justiça editou um provimento que permitiu que os cartórios fizessem os casamentos”, esclarece a advogada Adriana Galvão, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB São Paulo.
Ela reforça que a decisão do supremo tem força de lei. “Não pode uma pessoa, de uma hora para outra, retirar um direito garantido.” Mas isso não quer dizer que o direito não possa ser revogado. “Há a possibilidade de alguém acionar o STF por via judicial para reverter a decisão de 2011. Ou de acionar o CNJ também. Se isso acontecer, as pessoas que já se casaram não vão ter anuladas suas certidões. O problema será para os novos casamentos”, completa a advogada.
Outra possibilidade que preocupa à Adriana está nas nomeações para o STF feitas pelo presidente. “Ele pode nomear juízes mais conservadores e que tenham uma interpretação mais restritiva das jurisprudências.” Ela tem trabalhado, ao lado de diversos outros órgãos, na criação do Estatuto da Diversidade, um projeto que visa tornar lei os direitos LGBT. “Ficamos 20 anos debruçados em estudos e pesquisa, está tudo certinho pra caminhar e reconhecer direitos sem depender de interpretação jurisprudencial. Mas agora estamos numa sinuca de bico e esses projetos não vão caminhar”, diz.
Apesar dessas possibilidades, a advogada diz que é preciso conter o pânico. “A gente vai ter que entender o que se espera do novo presidente em relação aos direitos de pessoas LGBT, assim como negros e mulheres. É algo que não podemos prever. Mas se ele tiver intenção de mexer em conquistas de direitos civis, vai gerar uma instabilidade muito grande. Não podemos instituir o pânico. São direitos reconhecidos.” Só no final de semana, Adriana foi convidada para quatro casamentos homoafetivos.
Fonte: Marie Claire
Créditos: Marie Claire