Carpe diem, então?
“Carpe diem” é um dos lemas mais antigos da história ocidental. Cristalizada pelo poeta romano Horácio (65-8 a.C.) — “colhe o dia, e deixa o menos possível para amanhã” — diz a tradução moderna dos versos —, a expressão latina foi popularizada ao longo da história, traduzida comumente como “aproveite o dia”. Aliás, não só popularizada, mas “sequestrada”.
É o que critica o filósofo australiano Roman Krznaric, autor de “Carpe diem: resgatando a arte de aproveitar a vida” (Zahar, 2018), que investiga a trilha histórica da expressão, de Horácio a Hollywood, das ruas da antiga Kyoto (Japão) às vielas do Rio de Janeiro, da campanha da Nike “just do it” (apenas faça) à hashtag #yolo, que quer dizer “you only live once” (só se vive uma vez).
“Extraordinário que essa expressão de uma língua morta há muito tempo gere mais de 25 milhões de resultados numa busca online. Mas igualmente impressionante é o fato de que, embora a maioria das pessoas consiga explicar o que carpe diem significa para elas, a resposta varie enormemente de uma pessoa para outra”, diz o livro.
Para Krznaric, o carpe diem foi sequestrado pela cultura de consumo, que historicamente transformou o ideal filosófico em sinônimo de festas, farras de compras na Black Friday ou experiências de entretenimento digital 24 horas por dia, 7 dias por semana. E, como provocou a jornalista Lidia Zuin, colunista do TAB, será que estamos vivendo ou apenas fazendo lives?
Carpe diem raiz
“O carpe diem se popularizou na cultura pop e passou a ser pregado como mantra para aproveitar oportunidades do presente imediato, sem se preocupar com o futuro”, diz o filósofo Charles Feitosa, professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop). Mas o acadêmico lembra que, na raiz do poema, Horácio na verdade alerta que é um erro grave tentar antecipar o que o destino reservou — e é melhor aprender a suportar o que quer que aconteça. “Há aí uma crítica a uma atitude específica, mas muito comum: a incapacidade de aceitar o caráter imprevisível do futuro. Só conhecemos duas estratégias, ambas calculadoras. O medo, que antecipa o mal; e a esperança, que antecipa o bem. Carpe diem é um outro jeito de lidar com o futuro”, assinala.
Carpe é uma palavra forte e indica o gesto de cultivar e colher. Cultiva, colhe, saboreia delicadamente o fruto no tempo de sua maturação, não o desperdice, nem o arranque à força. Diem não nomeia pura e exclusivamente o agora pontual, mas durações de intensidade indefinida, uma hora, um ano, uma vida inteira. É um protesto poético contra quem quer controlar o porvir ao invés de se preparar para que ele possa acontecer em sua pluralidade
Charles Feitosa, filósofo
Nas distorções do carpe diem, porém, imagina-se a ideia de gozar o presente absoluto e apostar no puro prazer pois, afinal, já que não há futuro e a morte é o destino de todos, “tanto faz” — o que pode, por vezes, atiçar comportamentos imprudentes e inconsequentes. Mas a ressaca, meu amigo, sempre vem depois.
Carpe diem, assim distorcido, pode se relacionar com dois “ismos”, também antigos e também atualizados: hedonismo e niilismo. De um lado, hedonismo é a atitude de elevar o prazer (“hedoné”, em grego) como meta de toda ação, maximizando o prazer e minimizando a dor. De outro, niilismo quer dizer, literalmente, não ter nada de vontade ou vontade de nada (“nihil”, em latim).
Assim como o carpe diem, o hedonismo também foi capturado pela cultura atual e confundido com uma busca desenfreada por prazer passageiro. Mas, nas páginas de “A potência de existir: manifesto hedonista” (WMF Martins Fontes, 2010), por exemplo, o filósofo francês Michel Onfray defende a volta de um hedonismo não vinculado ao consumo, mas à ética de buscar o máximo de alegrias sem fazer mal a ninguém (nem a si mesmo).
Há também uns 50 tons teóricos de cinza no niilismo, mas duas definições traçadas pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) vêm marcando o Brasil atual, segundo Feitosa, que é um dos organizadores da série de livros acadêmicos “Assim falou Nietzsche”: o niilismo ativo (quando, por vontade de nada, odiamos e atacamos tudo e todos que quiserem afirmar a vida de um modo diferente do nosso) e o passivo (quando, por nada de vontade, nos afundamos na indiferença, não nos importamos).
Viver é político
O xis da questão é que a vida e a morte não são questões apenas de foro íntimo, mas têm dimensões políticas. O filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), associado ao hedonismo, dizia que “contra todo o resto consegue-se garantir segurança, mas, diante da morte, habitamos todos uma cidade sem muros”.
A frase pode ser simplesmente interpretada como a afirmação da inevitabilidade da morte, mas também como a indicação de que somos todos mortais e habitamos o mesmo mundo. “Sei que não estamos no mesmo barco, pois embora a tempestade pareça a mesma, há poucas pessoas sozinhas em iates e há muitas outras em canoas superlotadas. Mas a máxima de Epicuro indica que uma das maneiras mais efetivas de lutar contra a morte é investir as energias para tornar a pólis [a cidade, o espaço] onde habitamos um lugar melhor para nós e para os outros. Fazer política é resistir à morte”, define Feitosa.
Isto é: carpe diem não quer dizer coronafest, covid party ou mandar mensagem “oi, sumido” para furar a quarentena e transar — o que, como resumiu a médica Gloria Brunetti, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, “é irresponsabilidade em relação ao nosso corpo e ao corpo do outro. O vírus não perdoa”. Mas há outras maneiras mais sublimes para aprender a “colher o dia” na lavoura que se tem.
“Pense, por exemplo, na duração do tempo, quando estamos brincando, ouvindo música ou quando nos descobrimos apaixonados. Isso vale também para situações de tristeza e luto. Nenhuma dessas situações dura só um instante, mas nenhuma dura para sempre também”, exemplifica o filósofo da Unirio.
Para a psicanalista e filósofa Viviane Mosé, autora de “Nietzsche hoje” (Vozes, 2018), a filosofia de viver o dia se encaixa perfeitamente no contexto de pandemia. “O vírus é parte da vida, da natureza. Estar isolado devido a uma doença é parte da vida. Viva o seu dia, viva o isolamento, viva o estar sozinho. Viva a angústia, o medo, o momento de euforia. Viva da melhor maneira possível. Viver o seu dia é a melhor referência que nos posiciona no tempo, no instante e no agora. Fugir do instante, planejando projetos e futuros que podem nunca se concretizar, é viver em uma bolha”, analisa.
Como saltar de uma nebulosa niilista para um respiro nesses tempos tumultuados? Como compreender que o mundo é injusto, a Covid-19 é grave e a vida é finita, mas que para não enlouquecer precisamos parar, respirar e viver um dia de cada vez?
“Tudo isso é fato. O que está em jogo é como você escolhe viver esses fatos”, responde a médica Ana Claudia Quintana Arantes, autora de “A morte é um dia que vale a pena viver” (Sextante, 2017), desdobramento de um TEDx Talk na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). “Aproveite o dia não diz pra você ser tolo de só olhar para o prazer que o dia te traz. É mergulhar em tudo o que o dia oferece, inclusive dor, fracasso, medo. Aproveite o dia com todos os aprendizados que ele oferece. O que podemos fazer de melhor é ir na direção de tudo o que nos permite acessar nossa coragem para cultivar esperança no mundo que vamos ter de reconstruir depois desta pandemia.”
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Polêmica Paraíba
Fonte: UOL
Créditos: UOL