O Brasil tem, ao menos, 11 projetos de candidatas a vacina contra a Covid-19, de acordo com levantamento do G1. Todos estão sendo desenvolvidos em universidades e instituições de pesquisa públicas do país.
Os projetos para criar um imunizante nacional contra a doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2) ainda estão em fases iniciais de pesquisa. Não há previsão de que entrem em testes com humanos ou de que tenham seus estudos concluídos antes das candidatas estrangeiras que já passam por ensaios clínicos no país.
Os entraves são vários: desde a dificuldade do acesso a parte da tecnologia necessária até a falta de vontade política, segundo os pesquisadores que lideram os projetos mapeados pelo G1. Outro fator é a a falta de parcerias com a iniciativa privada – em parte por causa do risco da empreitada, já que potenciais investidores não têm como prever se os estudos vão dar certo.
Se uma das candidatas funcionar, será a primeira vacina desenvolvida totalmente do zero no Brasil.
Nesta reportagem, você lerá sobre:
Os projetos: quais são e onde estão os centros de pesquisa?
As candidatas: como são os projetos de pesquisa?
Os obstáculos: que cenário os cientistas precisam enfrentar para obter avanços?
Abaixo, veja os detalhes:
Onde estão?
Os 11 projetos têm participação de ao menos 9 instituições de pesquisa – em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná:
Instituto Butantan (SP): 3 projetos + 1. Este último é desenvolvido em parceria com a Fiocruz em Minas Gerais, a UFMG e o Instituto de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV), também em Minas. Também tem participação do Instituto de Ciências Biomédicas e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ambos ligados à USP.
Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP: 3 projetos
Fiocruz/Manguinhos (RJ): 2 projetos
Universidade Federal do Paraná (UFPR): 1 projeto
Instituto do Coração (Incor) da USP: 1 projeto
As candidatas
As vacinas pesquisadas em todo o mundo (não só no Brasil) contra a Covid-19 apostam, basicamente, em quatro processos de manufatura, ou seja, quatro plataformas: vetor viral, proteínas, a genética e a de vírus inativado (que é a da maioria das vacinas no mercado hoje, contra qualquer doença). Entenda mais sobre elas.
Infográfico mostra quatro plataformas de desenvolvimento de vacinas e quais institutos brasileiros trabalham em quais propostas — Foto: Guilherme Luiz Pinheiro/G1
Apesar de ser uma referência mundial em produção de vacinas – com transferência de tecnologia, principalmente, para Butantan e Manguinhos –, o Brasil nunca conseguiu desenvolver, do zero, uma vacina 100% nacional.
Os entraves são vários: desde a dificuldade do acesso a parte da tecnologia até a falta de vontade política, segundo os pesquisadores que lideram os projetos mapeados pelo G1. Também há a questão do risco para quem investe em uma vacina – que o faz sem saber se ela vai dar certo.
Abaixo, você verá detalhes sobre as pesquisas em andamento no país. Ao final da reportagem, poderá ler mais informações sobre os entraves que elas precisam encarar.
Butantan
Dos 4 projetos do Butantan, 2 são baseados em ovo – um dos quais está mais adiantado e é feito em parceria com a rede de hospitais Mount Sinai, nos Estados Unidos, com apoio do governo americano e da fundação Bill e Melinda Gates. Essa versão usa o vírus inativado.
“É o mesmo princípio da vacina da gripe – você inocula uma cepa viral no ovo, que cresce no ovo embrionado e, depois, ele [o vírus] é purificado a partir desse ovo. Então, na verdade, a fábrica da vacina é o ovo – o embrião da ave, o pintinho, que produz os vírus que depois são transformados em vacina”, explica Dimas Covas, diretor do Butantan.
O projeto em parceria com os americanos já foi testado em camundongos e aguarda a próxima fase, a ser feita em macacos. A vacina apresentou uma “resposta interessante” nos roedores, de acordo com Covas.
A segunda proposta baseada em ovo está sendo feita em parceria com as institutições de Minas Gerais (veja abaixo).
As outras apostas, menos avançadas, combinam uma proteína do coronavírus com uma da BCG – a vacina da tuberculose –, mas ainda está em fase bastante inicial, segundo o diretor. A quarta pesquisa recombina o coronavírus com o vírus Influenza, e também ainda é inicial.
Butantan + Fiocruz-Minas:
O foco da pesquisa é o uso de vetores virais, explica o pesquisador da Fiocruz-Minas e plataforma Fiocruz-FMRP/USP, Ricardo Tostes Gazzinelli, que lidera o grupo.
A proposta da vacina inclui o gene da proteína S (de “spike”), que o Sars-CoV-2 usa para infectar as células, no genoma do vírus Influenza, que causa a gripe. Do Influenza são usadas duas outras proteínas: a hemaglutinina e a neuraminidase (na sigla H1N1, por exemplo, o H representa a hemaglutinina e o N, a neuraminidase).
Ambas mudam muito de ano para ano, diz Gazzinelli, e, por isso, é preciso fazer a vacinação da gripe todos os anos.
“A hemaglutinina é importante para o vírus entrar na célula, e a neuraminidase é importante para o vírus sair da célula”, explica Gazzinelli. “Nós pegamos o gene da neuraminidase e cortamos. No lugar dele, colocamos o gene que codifica a proteína spike. Ele [o vírus] entra, mas não sai da célula, então não gera vírus de replicação – mas é capaz de induzir a resposta imunológica”, afirma.
A ideia, de acordo com o pesquisador, é que a vacina seja bivalente – que sirva tanto para o Influenza como para o Sars-CoV-2.
“Escolhemos o vírus Influenza porque ele infecta muito bem as células das vias aéreas. São as mesmas células que o coronavírus infecta. Se conseguir induzir uma imunidade local, talvez induza uma proteção maior”, diz Gazzinelli.
No momento, o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP faz testes de proteção com o Sars-CoV-2 em camundongos, que têm um gene alterado para que possam ser infectados com o novo coronavírus. A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, também da universidade paulista, testa o imunizante em roedores com comorbidades pulmonares.
Os testes são necessários para que os pesquisadores definam a melhor forma de aplicar a vacina, o melhor vírus e o melhor regime de vacinação – em uma ou duas doses.
Nas próximas semanas, a candidata será enviada para o Butantan para testes de farmacocinética e segurança.
Instituto de Ciências Biomédicas da USP
O ICB tem 3 estratégias, todas em condição experimental e que estão sendo testadas em camundongos, segundo o diretor, Luís Carlos Ferreira:
Os pesquisadores colocam a informação genética do Sars-CoV-2 em bactérias para que elas produzam três proteínas do vírus: A, S e N. A vacina é combinada com adjuvantes (que reforçam o efeito imunizante) e testada nos animais.
As nanovacinas: as proteínas são organizadas em nanopartículas – em vez de ser a proteína “pura”, é como se fosse um complexo – e testadas em animais.
As vacinas genéticas: com material genético. São duas plataformas: uma usa DNA (de plasmídeos, uma molécula que ocorre normalmente em bactérias) e a outra, um tipo de RNA (mensageiro).
“Todas foram testadas em camundongos e são seguras e geram uma resposta imunológica”, afirma Luís Carlos Ferreira. “A próxima etapa é mostrar que a vacina confere proteção”.
Em Manguinhos, há duas propostas:
Uma é a de uma vacina sintética, com base em pequenas moléculas sintéticas de proteínas do Sars-CoV-2 capazes de induzir a produção de anticorpos específicos e ativar as células T, um tipo de célula de defesa do corpo, contra o coronavírus.
A outra é uma vacina de subunidades, que utiliza (outros) pedaços de proteínas capazes de estimular a resposta imune. Essa versão testa diferentes construções da proteína S, que é a que o novo coronavírus usa para infectar as células do paciente. A ideia é que o corpo crie os anticorpos necessários para se defender quando tem contato com essa proteína.
Segundo o vice-diretor de desenvolvimento tecnológico de Manguinhos, Sotiris Missailidis, ambas já passaram por uma primeira etapa de estudos pré-clínicos, com camundongos, e foram seguras para os animais.
Agora, os cientistas avaliam a geração de anticorpos e as respostas das células de defesa dos animais. A melhor das construções e das doses testadas vai para estudo de desafio – quando cientistas infectam os animais com o vírus e verificam se a vacina conferiu proteção.
O próximo teste será em hamsters, previsto para novembro, e depois vêm, possivelmente, os macacos.
“Se a gente conseguir achar laboratório que faça, seria já em dezembro [o teste] em macacos. No final do ano ou em janeiro podia completar a fase pré-clínica”, diz Missailidis. Ele avalia que é difícil dizer quando seriam os testes clínicos, porque pode haver atrasos.
Universidade Federal do Paraná
O grupo da UFPR retira uma proteína do Sars-CoV-2, e transfere para uma bactéria, que produz mais proteínas. Depois, associa as proteínas a uma molécula grande (polímero) chamada de polihidroxibutirato (conhecida pela sigla PHB).
Segundo o líder da pesquisa, o professor Marcelo Müller, o uso do PHB tem 3 motivos:
Para que a proteína do vírus não entre “sozinha” nos animais. “Normalmente, quando você injeta o antígeno – no caso, essa proteína – sem estar fixada em algum material, ela pode ser rapidamente degradada”, afirma Müller.
Para que a proteína seja reconhecida mais facilmente pelo corpo. “Quando o antígeno está fixado em alguma superfície, ele vai ficar muito mais próximo do que naturalmente se encontra no vírus. Então é como se nós estivéssemos mimetizando o vírus sem utilizar o vírus”, diz o pesquisador.
O terceiro motivo ainda não é totalmente estabelecido, mas há estudos que indicam que o próprio PHB pode reforçar o efeito da vacina.
Os cientistas já estão fazendo testes em camundongos para descobrir o melhor composto capaz de induzir a resposta imune. A previsão é que os resultados saiam até o final do ano. Depois, os pesquisadores vão precisar de parcerias para infectar os animais com o Sars-CoV-2 e descobrir se os anticorpos gerados protegem os animais.
Instituto do Coração (Incor)
“Nós estudamos a resposta de anticorpo e celular de mais de 200 pessoas que tiveram a doença e selecionamos os melhores alvos que desencadeiam uma resposta [imune] eficaz contra esses fragmentos virais – que chamamos de peptídeos. Tem pedaços da spike [proteína S] também”, explica Jorge Kalil, que chefia o Laboratório de Imunologia do Incor e lidera a pesquisa.
O composto ainda está sendo testado em camundongos para que os pesquisadores cheguem ao melhor protótipo. Depois, eles pretendem desenvolver uma versão nasal da vacina – ao invés de intramuscular – que Kalil pretende que seja a definitiva contra a doença.
“A gente quer desencadear uma resposta bem forte, além de para todo o orgnanismo, para o sistema respiratório, tanto na produção de anticorpos que são específicos da resposta de mucosa – o tecido aveludado que forma todo o sistema respiratório – como também para estimular a resposta das células de defesa que estão no sistema respiratório”, explica.
“Buscamos uma vacina que dê uma grande cobertura – que tenha uma eficácia muito grande em muitas pessoas e que seja muito eficaz porque tem uma resposta local muito importante”, afirma.
Quais os obstáculos?
Ricardo Tostes Gazzinelli avalia que o problema é estrutural: quem investe em vacinas – as farmacêuticas, os empresários, o Estado – não quer correr riscos, e, por isso, aposta em países que já têm experiência e expertise para desenvolver vacinas do zero. Ele afirma que esse temor é um erro.
“Se tiver um investimento e sair com um produto seu, você vai ter um retorno grande. O empresário brasileiro não quer ter risco, quer garantia. Ninguém sabe se essas vacinas [de fora] vão funcionar e quão bem vão funcionar – por que não investir numa ideia brasileira?”, questiona.
O investimento é caro: o projeto de Gazzinelli, por exemplo, já recebeu financiamento de R$ 4,6 milhões – vindos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), da própria Fiocruz e das fundações estaduais de apoio à pesquisa de Minas (Fapemig) e São Paulo (Fapesp). Outros R$ 4,5 milhões, também do MCTI, foram destinados à pesquisa no Incor, e, no Paraná, o aporte do ministério foi de R$ 2,4 milhões. Em Manguinhos, são mais R$ 2 milhões.
(A importação da tecnologia também sai cara: ao anunciar a compra da vacina da CoronaVac, o Ministério da Saúde previa um gasto de R$ 2,6 bilhões).
Outro gargalo é a tecnologia, aponta Luís Carlos Ferreira, diretor do ICB-USP.
“Por isso tanto Butantan como Fiocruz são totalmente dependentes de transferência de tecnologia: ou compram de fora ou licenciam e tentam produzir a vacina aqui. Todas as vacinas que nós produzimos são assim – ou compra ou importa tecnologia. Não tem condições de fazer a cadeia completa”, afirma o diretor do ICB.
Ele aponta como exemplo a falta de capacidade de produzir antígenos com o grau de pureza necessário para fazer testes da vacina. Segundo o diretor, apenas Butantan e Fiocruz têm condições de fazer isso – mas ambos estão comprometidos com a produção de vacinas de fora.
Sotiris Missailidis, da Fiocruz, entende que é importante que o Brasil apareça na corrida pela vacina como um ator importante.
“O Brasil tem cientistas de peso, com conhecimento tecnológico para levar esses produtos. Eu acho que é muito importante chegar, registrar, produzir nosso produto e ficar no mapa mundial como um dos grandes players que podem dar esse tipo de resposta para apoiar a saúde publica do país e da América Latina ou mundial nesse acordo de fornecimento”, opina.
Fonte: G1
Créditos: G1