O Brasil atingiu, nesta sexta-feira, 8, a trágica marca de 600 mil mortos por covid-19. O número foi informado pelo consórcio de veículos de imprensa nesta tarde. Após mais de um ano e meio desde a confirmação do primeiro caso de coronavírus no país pelo Ministério da Saúde, mais de 21 milhões de brasileiros foram infectados. A média é de cerca de 1.016 vidas perdidas diariamente desde então. Globalmente reconhecido por conceber um dos piores planos de gestão durante a pandemia, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os países com mais vidas perdidas durante a pandemia, atrás apenas dos Estados Unidos.
“O povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”, foram as palavras do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no dia 22 de março de 2020, 25 dias após a confirmação do primeiro caso da doença no país. O desprezo em relação à gravidade da pandemia se juntou com a aposta fracassada em remédios ineficazes contra a covid-19 e a uma política contrária ao isolamento que, por muito tempo, foi a única medida comprovadamente eficaz no combate ao vírus.
Para Hermano Castro, pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), o Brasil iniciou a pandemia já sabendo quais as diretrizes conhecidas, já que o vírus acometeu outros países primeiro. No entanto, o negacionismo das autoridades foi fatal para que a crise sanitária fosse controlada. “Naquele momento precisávamos reduzir a circulação de pessoas na rua, exatamente para retirar o contato. O ideal era que tivéssemos ali, e durante um bom tempo, 30% das pessoas trabalhando e 70% em casa, principalmente os idosos e os que tinham comorbidade. Isso foi mal feito no Brasil”, explica.
Com o anúncio dos primeiros imunizantes para a covid-19 ao redor do mundo em 2020, o Brasil, gravemente acometido pela pandemia, vislumbrou diversas oportunidades de traçar um caminho que evitasse o panorama atual. Em agosto de 2020, a farmacêutica Pfizer fez sua primeira oferta ao Brasil, de 70 milhões de doses do seu imunizante Pfizer/BioNtech. Pela proposta, a entrega das primeiras doses seria em dezembro daquele ano. O país, no entanto, não aceitou a oferta.
Além disso, segundo informações apuradas pela CPI da Covid, ao todo, o governo de Jair Bolsonaro deixou de responder a 53 e-mails da fabricante envolvendo a oferta de vacinas. Alvo de piada nas redes sociais, o desprezo em relação às vacinas custou caro ao país. Somente em março deste ano o governo assinou o acordo com a Pfizer, e a primeira remessa de cerca de 1 milhão de doses chegou ao Brasil no fim de abril.
“A falta de políticas de restrições necessárias. A falta de política de suporte às famílias mais pobres para que pudessem ficar em casa. A falta de vacinas e, com isso, a presença de variantes. Tudo isso são fatores que levam o Brasil a chegar a essa marca horrorosa”, afirma o pneumologista.
A ‘vacina chinesa de Doria’
Os questionamentos acerca da imunização ainda continuam por parte do presidente. Ao todo, mais de 65% da população já foi vacinada com a primeira dose da vacina anticovid, e mais de 36% está imunizada com as duas doses. A queda no número de mortes e nas taxas de ocupação de leitos em UTI ilustram perfeitamente a importância da vacinação. Dados divulgados pelo Fiocruz mostram que, com exceção de Espírito Santo e Distrito Federal, entre 13 e 20 de agosto, o indicador de ocupação de leitos de covid-19 no país continua apresentando sinais de queda ou estabilização. Além disso, segundo o instituto, nenhum estado está na zona crítica, com taxa superior a 80%. O presidente, no entanto, segue exaltando o fato de não ter se vacinado (oficialmente).
“Eu estou melhor, no tocante à imunização, do que todo mundo que tomou Coronavac. Explica isso aí”, alegou Jair, no dia 16 de setembro, em live com o ministro Marcelo Queiroga. “CoronaVac tem registro emergencial, não tem comprovação científica”, completou. A vacina do Butantan, no entanto, passou por testes e recebeu autorização da Anvisa após comprovação de sua eficácia e de sua segurança, assim como os outros imunizantes utilizados em território nacional.
Durante a live, o presidente também defendeu a decisão publicada no dia 15 do mesmo mês, pelo Ministério da Saúde. Em nota técnica, a pasta recomendou a estados e municípios para que suspendessem a vacinação de adolescentes de 12 a 17 anos. A nota informava que um dos motivos para a revisão da imunização desse grupo seria a diretriz da Organização Mundial da Saúde (OMS), que não defende a vacinação nesta faixa etária – informação que foi reverberada pelo presidente durante a live. A entidade, no entanto, apenas diz que “crianças e adolescentes são menos propensos a ter complicações por causa da doença” e, por isso, é “menos urgente” a vacinação desses grupos.
Segundo Alberto Chebabo, diretor da Divisão Médica (DMD) do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ), um dos motivos para o agravamento da pandemia foi exatamente esta falta de centralização no comando da crise, com diretrizes divergentes acerca das medidas a serem tomadas.
“O Ministério da Saúde e o próprio presidente da República sempre bombardearam as medidas que eram recomendadas cientificamente. O próprio tratamento precoce foi incentivado ao invés de medidas de proteção individual e coletiva”, explica.
Para Alberto, muitas pessoas buscaram por uma alternativa “fácil” para sair da pandemia e, embora ela não existisse, o respaldo do governo para a utilização de medidas sem eficácia comprovada ou comprovadamente ineficazes ajudou a potencializar esse movimento.
“No começo [da pandemia] a busca por esse medicamentos fez um estrago muito grande, principalmente aqui no Brasil onde isso foi incentivado por gestores, pelo próprio Ministério da Saúde de forma irresponsável”, pontua.
Na mira da CPI
Fake news, contratos escusos, recusa de vacinas, medicamentos sem eficácia comprovada e falta de oxigênio para pacientes internados com covid motivaram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid a buscar respostas. Em 27 de abril de 2021 foi instalada a comissão, que realizou sua primeira oitiva em 4 maio, quando os senadores receberam o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele foi o primeiro de três ministros da Saúde a deixar o governo de Jair Bolsonaro desde o início da pandemia.
Ao longo do curso da CPI, diversas denúncias surgiram, dentre elas a feita pelo deputado Luís Miranda (DEM-DF), junto ao seu irmão Luís Ricardo Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, no dia 27 de junho. Segundo os relatos ouvidos pela CPI, houve pressões internas no Ministério da Saúde para que a importação da vacina indiana Covaxin fosse aprovada, além de suspeitas de irregularidades na compra.
Na condição de testemunha, Luis Miranda afirmou ter alertado Bolsonaro acerca de irregularidades na aquisição da vacina. A conversa com o presidente teria ocorrido presencialmente, no dia 20 de março. Ainda segundo Miranda, Bolsonaro, ao ouvir os relatos, teria citado o nome de Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara dos Deputados, ligando o parlamentar ao caso. A conversa foi finalizada com uma promessa de acionamento à Polícia Federal (PF), fato que nunca ocorreu, deixando o presidente sob suspeita de prevaricação. O crime ocorre quando o agente público não toma as decisões e medidas corretas em defesa do bem público.
A comissão segue nas investigações em relação à Covaxin e às empresas envolvidas na compra da vacina. Dentre elas a Precisa Medicamentos, que intermediou o fechamento do contrato com o laboratório indiano Bharat Biotech para a aquisição da Covaxin. A negociação em questão levanta diversas suspeitas, dentre elas está o preço alto, de US$ 15, na negociação, e o fechamento do contrato antes da autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O caso também abriu os olhos dos senadores para um fator que se tornou recorrente: a participação de empresas intermediárias em negociações envolvendo o combate à pandemia. Nesse contexto, a Davati acabou entrando na mira, após o diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, ser apontado como autor de um pedido de propina em negociação com a empresa na compra de 400 milhões de doses da vacina AstraZenenca.
Em depoimento à comissão, o policial militar de Minas Gerais, Luiz Paulo Dominguetti, afirmou que o suposto pedido de propina ocorreu em fevereiro deste ano e partiu “exclusivamente” do então diretor de Logística da pasta. Ferreira Dias foi exonerado do cargo no dia 30 de junho, após as denúncias.
Dominguetti se apresentou como representante brasileiro da Davati, no entanto a própria empresa desmentiu a afirmação. A Davati, por sua vez, atuou como intermediadora da AstraZeneca na oferta das 400 milhões de doses do imunizante, porém, segundo a própria fabricante “se uma organização está oferecendo o fornecimento privado de nossa vacina, provavelmente não é uma oferta legítima”.
Para além das diversas nebulosidades envolvendo a aquisição de vacinas ou insumos para a contenção da covid-19 no governo Bolsonaro, a CPI da Covid também chamou atenção para o famoso ‘tratamento precoce’, defendido pelo presidente. As controvérsias vão desde a utilização de estudos paralelos para a justificativa do uso de remédios, até a lucratividade exorbitante de empresas envolvidas na venda desses fármacos. É o caso da farmacêutica Vitamedic, que teve as vendas da ivermectina multiplicadas em 29 vezes entre 2019 e 2020, além de um salto no faturamento de 200 milhões para 540 milhões no mesmo período. A ivermectina é um antiparasitário indicado para sarna e piolho, que faz parte do chamado ‘kit covid’.
“Muitos têm sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato, neste prédio mesmo, mais de 200 pessoas contraíram a covid e quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscou esse tratamento imediato com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Anita, a Azitromicina, vitamina D, entre outros, que não tiveram sucesso, desconheço que uma só pessoa deste prédio tenha ido ao hospital para se internar”, disse o presidente no dia 10 de março de 2021, no Palácio do Planalto, em mais um dos muitos discursos defendendo o uso de medicamentos com ineficácia comprovada.
Durante o estudo, exaltado por Bolsonaro publicamente, nove pacientes ‘cobaias’ morreram, mas os autores da pesquisa só mencionaram duas mortes. A denúncia também afirma que a Prevent realizou uma série de tratamentos experimentais em seus pacientes, muitas vezes sem que houvesse consentimento deles. Além disso, médicos teriam sido forçados a prescreverem medicamentos do chamado “kit covid” a pacientes, mesmo aqueles com comorbidade, sob ameaça de demissão.
A CPI da Covid ouviu a advogada responsável por representar os ex-médicos que fizeram a denúncia. O depoimento de Bruna Morato ampliou todos os detalhes do dossiê, inclusive a posição de vulnerabilidade dos médicos em relação à operadora e o consequente risco enfrentado por pacientes.
“Chegou a um ponto tão lamentável que os plantonistas entregavam o kit ao paciente e diziam ‘eu preciso te dar, porque se eu não te entregar o kit eu posso ser demitido. Mas eu te oriente, se você for tomar algo daqui, tome só as proteínas ou as vitaminas. Os outros [medicamentos], além de não terem eficácia, são muito perigosos”, relatou.
Victor Kallut, de 20 anos, é morador de Duque de Caxias e conta que perdeu seu tio-avô em agosto de 2020. Com 83 anos, o tio Joel, como era chamado, não tinha muitos problemas, além da idade mais avançada. Victor conta que a relação com ele era muito boa e, como ele morava no mesmo terreno de seu avô, o patriarca da família, os encontros eram frequentes para eventos familiares antes da pandemia.
“Sempre que eu ia até lá, ele ficava me contando histórias de como ele gostava de simplesmente entrar em um ônibus e ir a algum lugar que nem ele sabia. A gente conversava muito sobre futebol, escola de samba (…) Eu gostava muito dele, era uma pessoa por quem eu tinha um carinho muito grande”.
O jovem conta que, assim que o seu tio-avô faleceu, o susto foi a primeira reação. O estado de Joel já era crítico quando a doença foi identificada e, desde a internação até o falecimento, passaram apenas dois dias. Hoje, quando a família se encontra, a sensação é de que falta mais um.
“Eu particularmente tenho muita dificuldade de lidar com a morte, no sentido de que eu nunca me acostumo com ela exatamente. Eu só me acostumo com o fato de não ver alguém: é como se você tivesse um amigo na escola e ele, de repente, muda de escola, sabe? Não parece que a pessoa deixou de existir, só que ela não está mais por perto”.
Victor também enfatiza que as mortes não foram meras fatalidades e o que se faz presente é um sentimento de que o cenário poderia ser outro.
“É um sentimento ruim de você saber que ele poderia estar vivo se não fosse por e-mails ignorados e um projeto, não só do Governo Federal, de décadas de não-incentivo à pesquisa, extremo atraso e bloqueio a qualquer evolução do sistema educacional e de pesquisa. O sentimento que fica é que a culpa não é só da doença, dá para atribuir culpados”.
“Em parte, meu cérebro não aceitou. Tem dias que você acorda, pensa em mandar mensagem para aquela pessoa, pensa em tudo que você poderia ter feito, em todos os planos que ele estava fazendo antes de falecer”, relata. A jovem explica que a sensação é de ter nadado e ‘morrido na areia’ pois, após quase dois anos de pandemia, a partida de seu avô não pode ser evitada. Ela conta que a família inteira foi afetada com a dor da perda, inclusive seu pai, que agora luta contra a depressão.
“Não era pai dele, era pai da minha madrasta, mas está sendo uma perda chocante para todos nós, principalmente por não esperarmos essa perda, estão todos vacinados. Nada que eu fale para a minha família, que falem para mim, vai fazer eu me conformar ou diminuir nossa tristeza (…) Só apoio psicológico e profissional para amenizar tudo isso que a gente sente, toda a revolta que se camufla em tristeza”, completa.
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O Brasil atinge a marca dos 600 mil mortos pela covid-19.
Fonte: O Dia
Créditos: Polêmica Paraíba