Por Madeleine Lackso, jornalista especializada em Cidadania Digital. Artigos, treinamentos, mentorias e consultoria.
Ontem recebi de um colega um vídeo, gravado da tela de uma televisão exibindo CNN. Era um discurso do presidente Bolsonaro. Enviou uma frase comemorativa, algo como “BH mostrando com vaias a vida real fora do cercadinho”. Estranhei na hora, fui ver o vídeo da própria CNN e entendi o que ocorria. No meio da claque havia uma pessoa que foi protestar, ela gritou seu protesto e foi vaiada pela claque.
Eu pensei em mentir para deixar o texto emocionante e dizer que quase compartilhei, até criaria um vínculo de identidade com quem compartilhou de boa fé. Ocorre que minhas redes sociais são como os perfis de tiozão da lancha. Gente do sexo oposto eu só compartilho se for linda e bem mais jovem que eu. Antes que o vídeo fosse viralizado, compartilhei mais um capítulo de pregação no deserto.
Não estranhei o vídeo da suposta vaia contra Bolsonaro porque seja esperta ou vidente, mas pela experiência assessorando políticos. Há alguns anos, eventos do Poder Executivo – presidente, governadores e prefeitos – servem também como material de redes sociais ou de campanha. Aqueles comícios abertos do século passado não existem mais nos grandes centros. A assessoria trabalha duro para manter o ambiente controlado e não perder o material.
Quem acompanha meus vídeos de Cidadania Digital também não caiu. Ontem foi o dia do cidadão comum alertar jornalistas nas redes sobre “Fake News”. Nós não somos seres racionais e objetivos, somos seres emocionais que também raciocinam. Quando queremos muito que algo seja verdade, ainda mais quando sugestionados, nossos sentidos nos enganam. Acontece com todos nós e é natural.Isso não quer dizer que estamos condenados a ser manipulados pelo primeiro aventureiro. Na era digital tomamos decisões rápidas e isso exige que nos aprofundemos em autoconhecimento. Acabou o luxo de pensar que somos quem gostaríamos de ser, precisamos perder a vergonha de ser quem somos. Se a pessoa não gosta de um político e recebe um vídeo dúbio com a informação de que ele se deu mal, é capaz de realmente ver e ouvir coisas que não estão no vídeo e ignorar coisas que estão.
Tendo a consciência sobre nossos vieses somos menos vulneráveis à manipulação. Ao receber algo que coincide exatamente com as nossas opiniões, já sabemos que podemos nos induzir a ver e ouvir coisas que não estão no material. Dessa forma podemos respirar e ver de novo a informação com olhos críticos. É por meio desse processo que muita gente que é antibolsonarista percebeu que não foi ele o vaiado no vídeo, foi uma militante. Muitos jornalistas não perceberam, imaginam-se objetivos, o que é impossível na espécie humana.
Vários senhores de meia idade que usam óculos escuros na foto de perfil vieram me chamar de “gado” quando eu disse que Bolsonaro não foi vaiado. Ossos do ofício de pregadora no deserto. Havia sim um grupo que queria protestar contra o presidente e o vaiou bastante, mas foi impedido de entrar no evento. Fizeram o protesto na rua, do lado de fora. Dentro, a gigantesca maioria era bolsonarista e estava ali para aplaudir qualquer coisa que fosse dita.Houve, no entanto, quem conseguiu se infiltrar na multidão de apoiadores de Jair Bolsonaro. Assim que o evento começou, uma pessoa começou seu protesto, chamando o presidente de genocida. Não estamos diante de um campeão em lidar com o contraditório, ele fica vermelho. Os bolsonaristas começam a vaiar a manifestante. Minutos depois, ele critica a esquerda e é aplaudido efusivamente. Mesmo assim, as manchetes ostentam que ele foi vaiado.
A técnica utilizada para justificar o casamento com um erro chama-se “moving the goal post”, mover a trave do gol. Depois da bola chutada, a trave é tirada do lugar e então a bola não entra. Aponta-se que o vídeo veiculado não é o da vaia contra o presidente e então move-se o gol, não é mais sobre o vídeo. Agora diz-se que a história da vaia é verídica porque havia gente vaiando em outro lugar. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome.
Dizer, nesse contexto, que Bolsonaro foi vaiado é Fake News? Claro que não, seria caso envolvesse o Lula, por exemplo. Vídeos circulando nas redes bolsonaristas viram tema de checagem de fatos em um segundo. É tentador para alguns dizer que vídeos circulando em redes de esquerda não são checados. Não é bem assim. Pode verificar que há muita checagem de fatos de diversas agências apontando vídeos em que falsamente se diz que Bolsonaro foi vaiado.
Há dois pontos: fazer a checagem de fatos e distribuir. Uma única publicação, o UOL Confere, fez um texto sobre isso. Talvez você não tenha visto porque a distribuição foi bem tímida. Aliás, não foi suficiente nem para fazer jornalistas e políticos respeitados corrigirem suas postagens. Órgãos de imprensa continuaram noticiando a versão falsa mesmo depois da publicação da checagem. E não estou falando aqui de blogueiro que virou paquita de político, mas de empresas tradicionais.
Neste caso, no entanto, temos um fator complicador. Nomes incensados da imprensa nacional divulgaram a publicação e, em vez de admitir o erro, casaram com ele. Alguns fazem o malabarismo de “mover a trave do gol”, justificando que falaram da vaia por outro motivo, o protesto fora do evento. São poucos os que escolhem dizer que erraram. Na era do cancelamento, é um risco enorme defender a verdade.
Há os que argumentam a favor da divulgação de informações falsas que sejam contra o adversário. Aliás, muita gente vive disso hoje, é um mercado rentável e suprapartidário. As plataformas de redes sociais lucram bilhões com isso anualmente. A sensação imediata de vingança é tentadora e mais ainda num ambiente que incentiva o tempo todo a agir por impulso. Diante da ameaça de cancelamento ao voltar atrás, insistir no erro é quase uma regra universal.
É possível que a checagem de fatos seja feita quando baixar a poeira da divulgação maciça de uma informação falsa por jornalistas. Qualquer um que aponte a mentira publicamente será citado como resposta a jornalistas. Eu fui, inclusive em resposta a amigos pessoais meus. Nem todo mundo compreende que era uma postagem do meu trabalho em Cidadania Digital e não uma indireta para uma pessoa específica. Levar para o lado pessoal é um risco real e que fecha portas profissionais.
Não insisto nisso por heroísmo, mas por senso de sobrevivência. Usar fatos reais como base para relatos fantasiosos deu poder a políticos, empresas, Big Techs, grupos formados dentro de redes sociais e marketeiros. Deu poder até à turma do primeiro emprego, que hoje vive às nossas custas no reality show “House of Carguinhos”. Quem perdeu poder? O jornalismo. Sempre acreditei que poder não se dá, se toma. A vida surpreende, jamais imaginei que jornalistas fossem tão generosos.
Madeleine Lacsko
Madeleine Lacsko é jornalista desde a década de 90. Foi Consultora Internacional do Unicef Angola, diretora de comunicação da Change.org, assessora no Supremo Tribunal Federal e do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alesp. É ativista na defesa dos direitos da criança e da mulher. **Os textos da colunista não expressam, necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.
Fonte: Gazeta do Povo
Créditos: Madeleine Lacsko