A elite econômica brasileira saiu da toca na pandemia. A maior parte respeitou o isolamento físico, é claro, mas muitas das famílias mais ricas do País vieram a público anunciar que tinham doado milhões de reais individualmente, como pessoas físicas. Foi um número inédito de bilionários que assumiu ter tirado do próprio bolso grandes quantias para o combate ao coronavírus e seus efeitos, mesmo com as empresas que controlam tendo feito o mesmo movimento. A doação mais recente foi feita pelas famílias Trajano e Garcia, controladoras do Magazine Luiza. Na quinta-feira, 6, elas anunciaram mais um cheque de R$ 20 milhões, que se somará aos R$ 10 milhões já doados anteriormente. O valor é superior, inclusive, aos R$ 20 milhões que a própria empresa já havia colocado na causa.
“As demandas continuam gritantes e não acabaram”, diz Carlos Renato Donzelli, diretor da holding e membro do conselho de administração do Magalu, que coordena as doações. “Não dava simplesmente para parar: precisamos continuar ajudando.”
A doação por parte dos muito ricos não é exatamente uma novidade. “É algo que sempre existiu e, por isso, não pode ser classificado como tendência”, diz Fábio Mariano Borges, professor da ESPM. “No campo das artes plásticas, por exemplo, sempre tivemos grandes mecenas que construíram alguns dos museus e dos acervos mais importantes do País.” A novidade é que, na pandemia, alguns dos principais empresários do País colocaram seus rostos e assinaturas na benemerência.
O movimento não é por acaso. “Houve um amadurecimento das lideranças econômicas”, afirma Rodrigo Pipponzi, vice-presidente do Instituto ACP, entidade de investimento social de sua família, que é dona da RaiaDrogasil. “Assumir a doação e fazer isso de maneira natural é um passo importante para entender e desenvolver a cidadania e a recorrência, que não podem ser apenas iniciativas paliativas em emergências.”
Para Pipponzi, o fato de muitos grandes doadores não quererem aparecer está ligado ao incômodo com a desigualdade social. “Doar volumes muito grandes significa ter muito dinheiro e isso evidencia ainda mais o abismo social do País”, diz ele.
Mais e melhores exemplos
O que começa a mudar é um mea culpa e a conscientização de que a cultura da doação – e de cidadania pelo envolvimento em projetos nos quais se acredita – só acontecerá a partir de exemplos concretos. “Toda elite é culpada da situação que passamos hoje, seja ela econômica, política, intelectual”, diz Rubens Menin, fundador da MRV Construtora e do banco Inter. “A elite é um reflexo da sociedade com mais poder de fogo e cabe a ela essa missão, prioritariamente. Não adianta achar que a culpa é dos outros.”
Ele não é o único a pensar assim. “A elite tem de assumir o papel de contribuir e conscientizar”, afirma Elie Horn, dono da Cyrela. “É nossa obrigação moral, social, de igualdade e justiça. Por que tenho dinheiro e o outro não tem? Sou o tesoureiro de Deus para distribuir esse dinheiro e se não dou, estou fazendo pouco caso da minha posição e da minha missão.”
Segundo alguns entrevistados, a nova geração vem tendo papel importante para fazer os mais velhos mostrarem a cara. Para os mais novos, os valores mais significativos vão além da acumulação. Também ajudou o fato de o coronavírus ter atingido a todos – e sensibilizado quem costuma ser protegido pela riqueza. “Como o coronavírus afetou e fragilizou mesmo quem tem muito dinheiro, a solidariedade foi maior”, diz Beatriz Bracher, do Instituto Galo da Manhã, que concentrou as doações das famílias Botelho Bracher na pandemia. “O mundo é muito ameaçador e, quando se enxerga que muita gente está sob essa ameaça o tempo todo, é natural o aumento das doações.”
Descoberta de causas
Mais importante do que doar o dinheiro, dizem, é descobrir as causas que se quer apoiar e acompanhar a transformação promovida pelo dinheiro bem aplicado. “O prazer não está em doar, mas em ver realizado”, diz ela.
É o que eles esperam refletir em toda a sociedade. Durante as entrevistas, muitos dos bilionários falaram sobre o pequeno envolvimento dos brasileiros nos problemas da comunidade. Para alguns, é uma consequência do Estado paternalista, que dá sem exigir nada em troca. Para Menin, por exemplo, é uma mistura que vem dos tempos da colonização e da formação religiosa da população. Muitos citam os EUA, com seus eventos de arrecadação de fundos e seus líderes que empregam seu tempo e imagem às causas, como modelo.
Apesar de dizerem também que seria bom ter incentivos fiscais como acontece naquele país, todos afirmam que a falta de uma legislação mais favorável não pode servir de desculpa para negar a doação. “O Brasil não tem incentivo e nem é preciso ter”, diz Menin. Hoje, a menos que a entidade beneficiária tenha imunidade tributária, qualquer doação acima de R$ 60 mil recolhe Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). Nem é preciso dizer que, na urgência da pandemia, boa parte das doações foi para o Estado, em vez da causa apoiada. O marco legal também é considerado confuso e inseguro.
O desejo de todos é que o movimento permaneça após o fim da pandemia. “Não é preciso acreditar em Papai Noel, mas esse movimento deixará bons reflexos na cultura de doação”, diz Pipponzi. “As organizações da sociedade civil saem fortalecidas, as pessoas aprenderam que não é tão difícil doar e a transparência cresceu.” Para Paula Fabiani, diretora presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), ficou claro que cabe a cada brasileiro construir seu caminho como cidadão. “A sociedade civil respondeu rapidamente com soluções em um ato de cidadania e participação social”, diz ela. “Parte disso vai ficar.”
“Meus filhos me falaram: papai, doe em vida”
Há cerca de cinco anos, o diretor de uma ONG chamou Elie Horn, o fundador da construtora e incorporadora Cyrela, de covarde. “‘O senhor doa, faz o bem, mas não quer que ninguém saiba e faça’, ele me disse. Daquele dia em diante, comecei a falar (das doações) e nunca mais parei”, diz Horn, de 76 anos de idade, dando risada.
Para ele, tornar pública a imagem de doador foi um sacrifício. Por toda a vida, Horn preferiu uma postura mais discreta, reservada e conservadora. “Quem gosta de aparecer é pop star”, afirma. “É mais difícil vir a público e tomar pauladas, mas é preciso cutucar o sentimento das pessoas, para que façam o bem.”
Assim, Horn se tornou o primeiro bilionário latino-americano, ao lado da mulher, Susy, a assinar o Giving Pledge. Criado por Bill Gates, o movimento tenta angariar donos de grandes fortunas a doar à caridade 60% de seu patrimônio em vida. Os doadores precisam ter, ao menos, US$ 1 bilhão. Horn ainda é o único brasileiro do grupo de 210 bilionários, que inclui o gestor Warren Buffett e o dono da Tesla, Elon Musk.
“Quando eu falei para meus filhos (sobre a doação), eles disseram: ‘papai, doe em vida'”, afirma. “Quando eles ganham dinheiro, também dão um porcentual para a caridade. Meu pai também doou a fortuna no fim da vida. O importante é multiplicar essa corrente de doações.”
Com o exemplo, ele diz ter motivado algumas pessoas, que prefere não dizer o nome, a doar.
Por isso, Horn se irrita quando fala em crescimento de doações durante a pandemia. “Na crise, pode-se até fazer um pouco a mais, mas não pode ser só nessa época porque as pessoas comem, bebem e vivem todo dia, o ano inteiro”, diz. Em seu caso, a maior parte do patrimônio já estava destinada a obras sociais e é alocada de acordo com a demanda. Mudou com o coronavírus, como já aconteceu com outras emergências. “Não sou mais dono, mas gestor desse dinheiro”, afirma.
Assim, não houve um momento no qual toda a família se sensibilizou em torno da causa – mas sim das causas, ao longo de anos. Ele acompanha o dinheiro de perto, como se fosse seu próprio negócio. “Visito, conheço, tomo informações, faço lição de casa”, afirma. “Como empresário, se não souber controlar o dinheiro, está morto.”
Para ele, seria bom se o País tivesse uma legislação tributária favorável também a essa área. Mesmo sem essa ferramenta, porém, é necessário dar dinheiro e acompanhar seus efeitos. “Não pode virar uma desculpa para não doar”, diz.
Horn se diz um capitalista-socialista: para ele, é preciso que todos tenham a oportunidade de trabalhar muito, ganhar muito – e doar muito. “Se não doa, o dinheiro fica fútil e passa-se a ser escravo, em vez de escravizar o dinheiro”, afirma.
“A pandemia mostrou que muita gente vive sob ameaça o tempo todo”
“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”, escreveu João Cabral de Melo Neto, no poema que inspirou a escritora Beatriz Bracher a batizar o Instituto Galo da Manhã. “Eu não conseguia achar um nome”, afirma ela. “Sempre achei esse poema lindo e ele diz o que a gente acredita: ninguém salva o mundo sozinho.” Foi uma escolha natural para a entidade que ela criou no fim do ano passado. O objetivo era organizar suas doações, priorizando os eixos da defesa da democracia, dos Direitos Humanos e da mulher.
Só, que chegou a pandemia. O mundo virou de cabeça para baixo e a prioridade para as novas doações tornou-se outra. Beatriz, os quatro irmãos e outros membros da família começaram a conversar. “Quando percebemos que teríamos de nos isolar, nos identificamos com quem não conseguiria fazer a mesma coisa”, afirma. “Resolvemos que, em vez de ajudar as pessoas doentes, tentaríamos possibilitar o isolamento.”
Descendentes do Barão do Pinhal, um grande proprietário de terras no interior de São Paulo no século 19, filhos de Fernão Bracher, ex-presidente do Banco Central e um dos fundadores do Itaú BBA, e irmãos de Cândido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, a família Botelho Bracher já tinha o hábito de doar. Só que, desta vez, se juntaram. Também aumentaram o valor dos aportes. Apesar de não falar sobre a quantia total da doação, Beatriz diz que, no seu caso, o valor triplicou em relação ao inicialmente programado.
Simbolicamente, tudo o que juntaram ficou concentrado no Galo da Manhã. Segundo Beatriz, era uma forma de ter voz na hora de decidir e acompanhar o uso dos recursos. “Recebemos um pedido da Cufa (Central Única de Favelas) para doar 4 mil cestas a 4 mil mães”, diz. “Neste caso, por exemplo, decidimos que seria mais efetivo entregar dinheiro a elas.”
Segundo Beatriz, além de acompanhar o uso do dinheiro, quem doa começa a entender melhor a precariedade das condições que as pessoas vivem. Passa a pensar mais nos políticos que apoia e em como fazer de diferente. A doação de tempo e dinheiro passa a ser feita para que aconteça uma mudança estrutural e não apenas pontual.
Discretos, os Bracher pediram que não fossem publicadas fotos da família na reportagem. Decidiram, porém, falar sobre suas doações para incentivar a que outros donos de fortuna façam o mesmo. “Sempre achamos cabotino nos expor, mas é assim que as coisas começam”, diz. Para ela, como a pandemia atingiu a todos da mesma maneira, inclusive quem tem muito dinheiro, todos se perceberam frágeis. “Isso significa uma solidariedade maior, porque muita gente passou a perceber que há quem viva sob ameaça o tempo todo.”
“É preciso ter cultura de comunidade, como os americanos”
No mesmo dia em que deu entrevista ao Estadão/Broadcast, Rubens Menin, sócio da MRV Engenharia, do banco Inter e da CNN Brasil, entre outras empresas, reuniu-se virtualmente com 13 dos maiores doadores do Brasil. Era um encontro chamado “Diálogos do Bem” e, naquele dia, discutiram os prós e os contras de assumir publicamente a doação de recursos. Prova de que a preocupação sobre o tema está em alta. “Foi quase um encontro filosófico”, diz Menin. “Eram várias famílias discutindo as diferentes formas de doação, o que fazem, os problemas que encontram, as sugestões…”
Ao fim do encontro virtual, a conclusão foi que, apesar dos contras, é importante que os doadores tornem públicas suas ações. “É preciso internalizar essa cultura na comunidade, como o americano faz”, diz ele. “Temos a obrigação não só de doar, mas também de mostrar e incentivar que mais pessoas trilhem esse caminho.”
Com esse propósito, Menin falou mais sobre a experiência de sua família. Segundo ele, apesar de sua filha, Maria Fernanda, ser a gestora das doações feitas pelo grupo, todos discutem em casa os projetos a serem apoiados de maneira estruturada e o impacto alcançado.
Na prática, é quase como se fosse um outro negócio no qual os Menin “investem”. Há estratégias e prioridades, funcionários, planejamento de doações quinquenais e crescentes. No caso de emergências – como aconteceu na pandemia –, os aportes aumentam.
Por outro lado, assim que o isolamento começou e houve a expectativa de meses de redução de faturamento e aumento de custos em todas as empresas da família Menin, o dinheiro não faz o caminho de volta. É um dinheiro separado para as causas. Em nenhum momento, diz ele, cogitou-se em usar os recursos das doações para o resgate de operações corporativas. “O dinheiro das empresas é das empresas, o que doamos é da família”, afirma. Segundo a Forbes, apenas Rubens Menin é dono de uma fortuna de US$ 1,3 bilhão.
Nos últimos cinco anos, os Menin haviam doado R$ 10 milhões por ano. Antes da pandemia, o plano era de aumentar o valor para R$ 20 milhões, nos próximos cinco. Em 2020, porém, a soma já chega a R$ 30 milhões. “Filantropia é igual droga, só que os efeitos e os trabalhos que estão sendo feitos são maravilhosos”, diz ele.
“Aqui, doação não é número em planilha de Excel”
Em uma das doações da pandemia, o entregador do Magazine Luiza percebeu que a família beneficiária em Guarulhos precisava de muito mais do que o colchão recebido para a criança especial. Na casa, faltava simplesmente tudo. Até comida. Pouco depois, o carregamento voltou completo, com direito a móveis e cesta básica.
“Aqui, doação não é só número numa planilha de Excel”, diz Carlos Renato Donzelli, diretor da holding e membro do conselho de administração do Magalu. “Como temos uma operação muito pulverizada, presente em todo o País e com os funcionários envolvidos, ninguém fica indiferente e a agilidade é muito grande.”
A multiplicação de demandas também. Esse foi um dos motivos pelo qual as famílias Trajano e Garcia doaram mais R$ 20 milhões esta semana. No início da crise, elas já haviam tirado do próprio bolso R$ 10 milhões. O Magalu, outros R$ 20 milhões.
“Os pedidos vão se espalhando conforme a pandemia se agrava nas diferentes regiões”, diz ele. “No meio do caminho, percebemos que a demanda não iria acabar e precisamos acelerar o processo de doações porque as necessidade ficaram grandes e urgentes.” Donzelli cita a doação de 20 mil tablets a alunos das escolas públicas sem acesso ao ensino virtual. “Será ótimo tê-los em janeiro, mas é preciso colocá-los nas mãos dos alunos agora”, afirma.
Há mais de 25 anos próximo às famílias controladoras do Magalu, Donzelli disse que a necessidade das doações pessoais foi percebida pouco antes da pandemia, por causa da sensibilidade junto aos clientes do varejo. Importantes nas cidades em que estão presentes, as lojas e os centros de distribuição viraram centrais de pedidos das comunidades.
“Quando vimos que o efeito do covid não seria de curto prazo, sentamos com a presidente do conselho (Luiza Helena Trajano) e as famílias (dos controladores), e começamos a fazer um planejamento para que as doações tivessem efeito rápido e tentar diminuir as sequelas.”
Segundo ele, Luiza é a capitã do time, recebe pessoalmente cada demanda e avalia cada doação. Ela não conseguiu atender ao pedido de entrevista. A empresa e a família cederam uma equipe que cuida dos aportes. Assim, antes de doar um raio-X, por exemplo, o time tenta entender se a necessidade da instituição é apenas pelo equipamento. “Seria mais fácil apenas doar o dinheiro”, afirma. “Mas quando se faz a diferença na vida de alguém, as pessoas mudam para sempre e a cidadania ganha outro patamar.”
“Não posso guardar para mim o privilégio que tenho”
Desde que a pandemia começou, Rodrigo Pipponzi diz que se sente mais ouvido. À frente do Instituto ACP, entidade de investimento social de sua família, que é dona da RaiaDrogasil, ele é profissional da área há mais de uma década. Odiava o termo herdeiro, até descobrir seu papel como empreendedor social. “Não posso guardar para mim o privilégio que tenho”, diz Pipponzi.
Na pandemia, um número grande não só de pessoas, mas também de companhias começou a querer aprender com sua experiência. “É até compreensível as empresas entrarem numa corrida para ampliar sua reputação social”, afirma. “Mas passei a receber muito mais pessoas físicas querendo botar a cara.”
Antônio Carlos Pipponzi, presidente do conselho da RaiaDrogasil e controlador da empresa, tem nome e obra conhecida no mundo das doações. A trajetória de outro Pipponzi, o filho, na área começou em 2007, com a fundação da Mol. Inicialmente voltada a publicações customizadas para empresas, a editora ganhou outro objetivo quando ele percebeu a oportunidade de fazer revistas vendidas no varejo que revertam o lucro para instituições e causas. De lá para cá, elas chegaram a 14 grandes redes, como Extra, Vivara, St. Marché, além da RD, é claro, e doaram R$ 35 milhões a projetos variados.
No IACP, o trabalho prioriza o fortalecimento do terceiro setor. Tanto de organizações específicas quanto do ecossistema, com eventos, estudos e pesquisas. Um dos segmentos essenciais de combate aos efeitos à pandemia, era uma área que precisava mais do que nunca dos recursos. A família não mexeu nas doações, mas ficou inquieta com a perda de renda imediata de milhões de famílias no Brasil. Criaram então o movimento Família apoia Família no qual, por meio de uma plataforma, doadores contribuem a partir de R$ 50. O dinheiro se transforma em cestas básicas para 70 comunidades. “A ideia era conectar quem queria ajudar com quem precisava da ajuda”, diz ele.
Em três semanas, foram R$ 3 milhões captados. Alguns tíquetes somavam R$ 300 mil e R$ 500 mil. Em funcionamento desde o fim de abril, já arrecadou R$ 11,6 milhões. Mais de 6 mil indivíduos contribuíram. “As pessoas não sabem o caminho para doar”, diz ele. “Quando se simplifica o ato de doação e se melhora a transparência, o resultado é muito bom.”
Fonte: Estadão
Créditos: Estadão