À noitinha, quando deita a cabeça no travesseiro, a diarista Valquíria Augustineli, de 28 anos, é tomada por pensamentos negativos em relação à maternidade. Além da culpa que ela sente por não poder dar aos filhos a atenção e a condição financeira que acha que são ideias, a paulistana sofre por ter aberto mão da carreira em prol das três crianças, de seis, quatro e três anos.
Valquíria é formada em análise de sistemas, mas não conseguiu fazer estágio durante a faculdade porque, no último ano, engravidou de seu primeiro filho. O tempo passou e, após a chegada dos outros dois, ela começou a trabalhar como diarista. “Eu não tenho dinheiro para pagar cursos e me atualizar na minha profissão e, ao mesmo tempo, tenho três crianças para alimentar. Não posso me dar ao luxo de deixar de trabalhar”, diz.
“Me arrependo todos os dias de ter sido mãe. Eu vivo numa corda banda. Abri mão da minha profissão e, mesmo assim, sinto que não sou uma boa mãe, que não dou o que meus filhos precisam. Se eu pudesse voltar no tempo, não teria tido nenhum. Para tentar sustentar a casa, trabalho muito, ganho pouco: então não consigo me dedicar à rotina deles, nem dar a eles uma vida melhor”, continua.
A paulistana se separou do pai das crianças após um relacionamento conturbado. Hoje, ela está casada novamente e se alegra ao lembrar como a relação do atual marido com as crianças é boa. “Ele me ajuda muito. Saí da casa dos meus pais porque lá eu não tinha nenhum apoio, eles exigiam que eu vivesse 24 horas por dia pelos meus filhos. Me sentia ainda mais culpada. Minha filha caçula chama meu marido de pai. Isso me alivia. Ainda assim, não consigo deitar para dormir sem me sentir angustiada, triste, pensando no que poderia ter sido a minha vida se eu tivesse agido de forma diferente”.
Para Valquíria, a pouca dependência que os filhos têm dela nas atividades cotidianas mostra que ela já não é mais tão necessária. “Minha filha mais velha faz a lição de casa sozinha porque eu não tenho tempo de ajuda-la. Isso me mata. A caçula, de três anos, já se troca, já escolhe as roupas sozinha. Eu sinto que eles sabem fazer tudo isso porque eu não sou presente”, diz.
De acordo com a psicóloga, especialista em psicopatologia pela PUC-PR e mestre em antropologia social Barbara Ferraz de Campos, o arrependimento tem a ver, também, com a culpa de uma maternidade idealizada desde a infância para as mulheres. “Esse arrependimento ainda é tabu, as mulheres não se sentem à vontade para pedir ajuda porque lhes foi imposto que mãe tem que aguentar tudo e que se você não aguenta, não é boa. E isso está errado. A visão perfeita da maternidade idealizada socialmente faz com que muitas mães sintam uma angústia que não acaba”, diz.
“Geralmente, quando uma mulher aceita suas limitações como mãe, a maternidade se torna menos pesada e mais feliz. Ainda, há os casos de mulheres que abriram mão de coisas que lhes davam prazer em função dos filhos. Isso atrelado à culpa que toda mãe sente gera o arrependimento, a vontade de voltar atrás. Não significa que essas mulheres não amem seus filhos. Precisamos desmistificar esse tabu e acolher essas mulheres”.
“Não queria ser mãe, mas abortar não era uma opção”
Foi o que aconteceu com a tatuadora Daiane Araújo, de 25 anos. Depois da chegada do filho, de dois anos, ela teve de abrir mão de um monte de atividades que, a ela, davam prazer. “Sempre fui muito aventureira, vivia acampando e viajando, fazendo trilhas. Depois que meu filho nasceu, começaram as restrições e eu tive que parar de fazer tudo que amava”, explica.
“Meu arrependimento começou logo na gestação porque eu nunca tive o desejo de ser mãe. Eu não tinha um relacionamento com o pai do bebê, nos conhecemos e, logo em seguida, eu engravidei. Até tentamos engatar um namoro, mas não deu certo, claro. Abortar nunca foi uma opção para mim, apesar de, por crenças pessoais minhas, eu não querer colocar uma criança no mundo sabendo que a realidade dele seria a mesma que a minha: sou pobre, nasci e moro na periferia. Ralo muito para me sustentar e sustentar meu filho. A vida não é fácil economicamente”, diz.
Segundo Daiane, o momento em que o arrependimento mais a atormenta é a hora das birras. E a cobrança vem junto, quando percebe que não consegue agir como acha que deveria.
“Educar é muito difícil, eu tenho pouca paciência. Meu filho está naquela fase comparada à adolescência do bebê, sabe? Birra o tempo todo. Tento educar sem perder a linha, sem gritar, para não repetir as situações que vivi quando criança. Apanhei muito, tive uma educação bem rígida por parte da minha mãe, que engravidou de mim com 14 anos. Mas não consigo. A sensação é horrível. É como um amargor ao lembrar que eu não precisaria estar passando por isso se não tivesse engravidado”.
“Toda vez que eu engravidava, era um sofrimento extremo”
Na vida da dona de casa Vanessa Gomes, de 34 anos, a falta de apoio da família foi crucial para que as três gestações fossem agoniantes e a maternidade, triste. Ela engravidou pela primeira vez aos 17 anos e, conta, sofreu humilhações da família, dos parentes do então namorado e até violência obstétrica. “Toda vez que eu engravidava, era um sofrimento extremo”.
“Dez anos depois, já em outro relacionamento, engravidei tomando anticoncepcional. Pouco tempo depois, nasceu o terceiro. Eu não tenho identidade, não tenho hobbies, sou mãe 24 horas por dia. Minha filha mais velha tem 16 anos e eu tenho muita inveja do pai dela: nada mudou na vida dele, ele fez duas faculdades, trabalha no que gosta, é engenheiro. Eu tive que abrir mão de tudo para cuidar dela”, conta.
Vanessa, com bolsa pelo ProUni (Programa Universidade para Todos), se formou em enfermagem mas nunca trabalhou na área. Para sustentar a filha, ela tentou trabalhar com telemarketing, mas não tinha com quem deixar a menina. Abriu mão. “Se ela adoecesse, eu precisava sair do trabalho para levar ao médico, qualquer problema que ela tivesse era eu quem tinha de resolver. Então, não me seguraram no trabalho. Hoje, estou procurando emprego. Quero muito voltar a trabalhar”.
Ela conta que o anticoncepcional faz com que ela tenha enxaquecas superfortes. Ainda assim, Vanessa mantém os comprimidos na rotina por medo extremo de engravidar de novo. “Amo meus filhos, mas penso que deveria ter esperado, tido uma vida, exercido minha profissão, viajado e depois, quem sabe, pensado em engravidar. Estou muito deprimida e as pessoas, para me consolar, dizem que eu tenho uma família linda e não posso deixar me abater. Meu Deus, eu me resumo a isso?”, questiona.
“Me arrependo todos os dias. Não consigo ser a mãe que eu queria ser e isso me dói muito. A culpa é o maior fardo que a maternidade traz. Meus filhos mereciam uma mãe melhor e eu, uma vida melhor”.
A médica psiquiatra e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Denise Gobo, explica que a frustração está relacionada ao fato de que a mulher se prepara emocionalmente para o parto, para os perrengues da gravidez, mas não para o pós. E isso causa, muitas vezes, arrependimento e culpa.
“A maternidade gera muita culpa porque, se você abre mão da parte profissional, se frustra. E, se abre mão da maternidade para focar no trabalho, a mulher sente culpa. Muitas pacientes se arrependem de terem tido filho, o que gera uma eterna insatisfação”, diz.
“A melhor forma de amenizar isso é conversar com outras mães que também passaram por essas escolhas. Encontrar um grupo de apoio ajuda muito a mulher a ter uma sensação de acolhimento”, conclui.
Fonte: Universa
Créditos: Universa