Por Eduardo Cunha/Poder360
Enquanto nos aproximamos das próximas eleições, quando serão disputadas as vagas de presidente e de governadores, é bom lembrar: também estaremos escolhendo vice-presidente e vice-governadores. Já tivemos a oportunidade de escolher mais de 5.500 vice-prefeitos em 2020, nas eleições municipais.
Já tivemos 2 impeachments de presidentes. Mais recentemente, presenciamos o impeachment do governador do Rio de Janeiro e outras tentativas de impeachment de governadores de outros Estados. O vice tornou-se muito importante: pode ser o sucessor de quem o eleitor realmente escolheu para governar depois de um eventual processo de impeachment.
Antes a curiosidade se dava mais em função da possível ausência do titular em caso de morte. É o caso de Bruno Covas, ex-prefeito de São Paulo: com sua morte prematura, deixou para os paulistanos um vice em seu lugar, que deve ocupar o posto pela quase totalidade do mandato no lugar do nome escolhido pelo povo.
Todos sabemos que o vice faz parte da chapa e é eleito junto com o titular –pelo artigo 77 da Constituição, “a eleição do presidente da República importará a do vice-presidente com ele registrado”. Mas não é pelo vice que a população decide seu voto. Quando muito, ele pode atrapalhar a eleição do titular por ter acusações ou posições que possam constranger a chapa. Mas somar votos, isso nunca aconteceu.
Na cidade de São Paulo, o eleitor já deve estar traumatizado. São muitos os exemplos que abandonam os seus cargos e deixam os seus vices, como José Serra e João Doria, que largaram a Prefeitura pela ambição de disputar o governo estadual. Isso também acontece em outras cidades: titulares renunciam para disputarem outros cargos e deixam as suas cidades com os vices.
Eventualmente, governadores também deixam os cargos pela necessidade de se desincompatibilizar, pré-requisito para a disputa de algum cargo que não a própria reeleição. Nesses casos, o vice assume a função por 8 meses de mandato, e, com frequência, torna-se o candidato à sua sucessão. Foi assim com a renúncia de Geraldo Alckmin em São Paulo em 2018: assumiu o vice-governador Márcio França.
Dentro desse quadro, fica a pergunta: para que precisamos de vice?
Problema está na Constituição
A Constituição estabelece o papel do vice em seu artigo 79: “Substituirá o presidente no caso de impedimento e suceder-lhe-á no caso de vaga”. O mesmo se aplica aos vice-governadores, pelas disposições das respectivas Constituições estaduais.
Já o artigo 81 da Constituição diz: “Vagando os cargos de presidente da República e vice-presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga”. Reparem: a eleição viria não simplesmente depois de aberta a vaga, mas depois de aberta a “última”. Essa sutil diferença significa que só com a abertura das duas vagas, de presidente e vice, realiza-se nova eleição.
O parágrafo 1º desse mesmo artigo diz que “ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei”. No caso de governadores e seus vices, é praticamente da mesma forma –fora algumas diferenças nas respectivas constituições estaduais.
Em 1º lugar, é preciso definir bem o que é impedimento do presidente ou do governador. Uma simples viagem de trabalho do presidente para fora do país é impedimento?
Os Estados Unidos são o maior país do mundo que adota o presidencialismo e tem um vice-presidente eleito com o presidente. Alguém já viu o presidente dos Estados Unidos passar o cargo para o seu vice quando viaja ao exterior? No Brasil, chega a ser contraditório: o presidente viaja, representa o país no exterior e passa o cargo para o vice. Então, no exterior, ele nem estaria no exercício da Presidência? Como poderia representar o país, então?
Nos Estados Unidos, o presidente só passa o cargo ao vice em caso de efetivo impedimento do exercício do cargo –por exemplo, quando vai se submeter a uma cirurgia, e, diante da anestesia geral, fica momentaneamente sem condições de responder pelo país. Uma simples viagem não o impede de exercer o seu mandato. Para isso, usa-se a tecnologia: o presidente está sempre ao alcance de um telefone ou internet para decidir qualquer coisa.
O vice-presidente dos Estados Unidos também tem a atribuição importante de presidir o Senado Federal. Aqui ele não tem qualquer atribuição que não seja a de esperar e as vezes até trabalhar para virar presidente.
No Brasil, o presidente viaja e temos uma ordem de assunção provisória do seu cargo: vice-presidente, presidente da Câmara, presidente do Senado Federal e presidente do STF. Eles assumem o cargo de presidente de forma provisória. É um espetáculo de exercício de poder por quem não foi eleito para aquele cargo. Chega a ser ridículo.
A questão da legitimidade
Além dos casos de impedimento, temos um problema nos casos de sucessão: ao assumir o cargo, o vice tem a mesma legitimidade política do titular, que foi efetivamente votado?
A história nos mostra que não.
Os eventuais vices que assumem no lugar dos titulares são aceitos apenas como um “tapa-buraco” até a próxima eleição. Só quando eles disputam a reeleição e vencem eles adquirem a legitimidade para o 2º mandato.
No caso do ex-prefeito Bruno Covas, o infortúnio da população de São Paulo foi completo. Ele era vice de João Dória; assumiu a prefeitura pelo abandono de Doria, que deixou a função para concorrer ao governo do Estado. Legitimou-se ao disputar e vencer a reeleição, mas acabou morrendo e deixando um vice para governar.
Não seria sido melhor ter tido uma nova eleição? Imaginem só se acontecer algo com o vice que assumiu a prefeitura. Vai ser o caso de São Paulo pedir música no “Fantástico”.
No caso de impeachment, muitas vezes o vice assume depois de ser uma peça política importante no processo. Foi assim com Michel Temer no impeachment de Dilma, um exemplo de que a importância da pessoa que vai ocupar o posto de vice na chapa pode ser um fator de instabilidade para o titular.
Sem um vice forte, jamais haverá impeachment de quem quer que seja. Mostrei isso no meu livro “Tchau, querida”: não se tira presidente, coloca-se presidente. Se Dilma tivesse um vice como o atual, de Bolsonaro, seguramente o seu impeachment não teria acontecido.
Certamente, daqui para a frente todos os candidatos a presidente ou a governadores vão escolher os seus vices pensando na possibilidade de serem traídos em um processo de impeachment. Essa lógica não pode prevalecer. Não é saudável para a democracia e nem para a própria administração. Um vice às vezes fica sem qualquer papel. Só serve para ser uma sombra, para um futuro exercício de um poder advindo, ou de um impeachment, ou de uma desgraça que ocorra. Para que precisamos disso?
Nós simplesmente poderíamos viver bem melhor sem vice de qualquer espécie. Também economizaríamos bastante dinheiro com as despesas que eles acarretam.
A economia já é grande se levarmos em conta o vice-presidente da República, com o seu salário e os de seu gabinete, além de todo o seu aparato de segurança e aviões da FAB. Mas vamos adiante: se contabilizarmos também as despesas dos 27 vice-governadores, e, principalmente, as despesas dos mais de 5.500 vice-prefeitos pelo país afora –alguns municípios sequer têm como pagar os seus salários e de seus assessores–, o custo de manter a figura do vice é enorme.
Já pararam para pensar quantos cargos serão extintos em todo o país? Já viram o tamanho da economia que isso dará?
Como fazer a mudança
Algumas mudanças na nossa Constituição são necessárias para acabarmos com o cargo de vice e estabelecermos quem responderá pelo impedimento do titular –na forma definida corretamente, como ocorre nos Estados Unidos. Também precisamos definir quem assumirá em caso de impeachment ou morte por um período necessário até a nova eleição, que deverá ser imediata.
O cerne da questão está em que o presidente não precisa ser substituído quando viaja e nem ser sucedido por um vice em caso de impeachment ou morte. Nós precisamos da legitimidade de uma nova eleição.
Mesmo que a opção seja manter o cargo de vice, com todas as despesas que isso acarreta, nós precisamos mudar o seu papel. Teríamos de alterar a Constituição para impedir que o vice suceda o titular no caso de vaga, como indica o artigo 79 da Constituição. Seria necessária a supressão da expressão “suceder-lhe-á no caso de vaga”.
Além disso, teríamos de efetuar também a supressão, no artigo 81 da Constituição, da palavra “última” no texto. Com isso, fica determinada a eleição caso seja aberta a vaga de presidente ou a de vice-presidente.
O vice, assim, ocuparia a presidência apenas momentaneamente nos casos de efetivo impedimento do titular. Também caberia a ele acionar o processo eleitoral em caso da vacância da presidência, permanecendo ele como o vice-presidente que foi eleito para esse cargo.
Outro ponto que precisa ser alterado: o parágrafo 1º no artigo 81 da Constituição estabelece que, no caso de vacância da Presidência nos 2 últimos anos de mandato, o Congresso deve escolher o novo titular.
Isso não faz o menor sentido e teria acontecido em 2017, depois do impeachment de Dilma Rousseff, se a Câmara não tivesse barrado duas vezes o afastamento de Michel Temer. O sucessor seria eleito pelo Congresso, pois já era o 3º ano depois das eleições, e isso agravaria ainda mais a falta de legitimidade política do ocupante da presidência.
No meu entender, a decisão mais importante a ser tomada é que o vice não sucede o titular e que deverá haver eleição para o sucessor, sempre de forma direta, independentemente do tempo de mandato que faltar. Por óbvio que parte do problema já estaria resolvido ao se dispensar a presença de um vice na chapa. Mas ainda restaria a necessidade de se retirar esse parágrafo 1º do artigo 81 da Constituição.
A substituição provisória necessária ao efetivo impedimento do presidente pode ser delegada aos chefes de outros Poderes, ou pode-se definir desde já um ministro do gabinete, que institucionalmente já responda pelo afastamento –o chefe da Casa Civil ou o ministro da Justiça, por exemplo.
Nos Estados Unidos temos até o sobrevivente designado (designated survivor), como registra uma famosa série de TV: um ministro fica em um lugar secreto e seguro quando o presidente, o vice-presidente e os outros ministros participam de algum evento simultaneamente. Isso serve para proteção. No caso de alguma tragédia coletiva ou ataque terrorista, o designated survivor é alguém para reconstruir o país.
Superando a instabilidade
Por mais incrível que possa parecer, o papel do vice, usado em composição política de chapas candidatas, acabou se tornando em um ambiente de instabilidade. Um impeachment ou uma morte prematura alteram toda a lógica de poder. A cada dia que passa, essa situação terá mais influência no processo político.
É difícil até para os candidatos favoritos escolherem os seus companheiros de chapa. Fica o medo de que esse companheiro possa atuar para a sua futura desestabilização política e acabe tomando o seu lugar. A mudança que impede a sucessão do titular pelo vice acaba com esse componente de conspiração, ou no mínimo de torcida pelo infortúnio do companheiro de chapa.
O tal “superpedido” de impeachment protocolado na Câmara por oposicionistas e ex-aliados do governo mostra o quanto isso é grave. Diferentemente do que ocorreu com Dilma Rousseff, não há qualquer acusação de um efetivo e comprovado crime de responsabilidade. A base do pedido está em opiniões externadas pelo presidente. Essa instabilidade criada por achar que o impeachment é a solução para resolver uma situação política só serve para referendar a dificuldade de se escolher um vice para uma chapa.
Mas, de qualquer forma, o melhor para todos é acabar com o cargo de vice. Além de economizar um caminhão de dinheiro dos cofres públicos, evitará que sejamos brindados com governos de pouco lastro de legitimidade –em alguns casos, medíocres– de vices que não foram eleitos, mas que acabaram com o poder em seu colo, seja pelo infortúnio, seja por sua atuação política visando a impedir aquele que foi o seu cabeça de chapa.
Afinal, para que precisamos de vice
Fonte: Eduardo Cunha
Créditos: Poder360