“Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça/ Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”, solta o vinil, o blues espiritual do Chico Science, e lá vai o homem-caranguejo vestido de petróleo em vez da lama do mangue. Os tambores da Nação Zumbi pesam uma tonelada de denúncia desde os anos 1990. É história, bróder.
Lascou a tabaca de Xôla, linda e folclórica cadela recifense, a autêntica e verdadeira travesti canina que representa hoje o cão sem plumas do poeta João Cabral de Melo Neto. Xôla sem pelo e sem esperança foi vítima do vinhoto das usinas que matou muitos rios e riachos de Pernambuco.
“Uma vida sururu”, emenda o marisqueiro que disso vive, ostra oleada, repetindo o Luis da Silva do livro Angústia e sua existência entre a burocracia da repartição e o ostracismo — obra universal do gênio russo-alagoano chamado Graciliano Ramos, o melhor livro brasileiro de todos os tempos.
O marisqueiro esmorecido diante de tanto piche nas beiras do Manguaba e do Camaragibe, o marisqueiro já não enfia as ventas na fartura faz é tempo, imagina agora, só imagina a riqueza, qual Baleia sonhando preás, no que chegamos a Vidas Secas, o segundo maior livro da humanidade depois de Angústia.
Ah esse mundão que já foi a lagoa do Mundaú.
Xola me lambe a cara, no carinho das arruaças mundanas, que cachorra, e sigo nessa crônica sampleada: “O que não tem governo, nem nunca terá”, eis o scratch do outro Chico, didáticos arranhões de um DJ no disco de cera de carnaúba, a santa palmeira que está sendo demolida. “Deus é uma coisa brasileira, nordestinamente paciente./ Oh! blood moon.”, deixou aí uma raspinha vinilizada do santo Belchior.
E sabe quem baixa no terreiro agora? O Gog, rapaz, meu Victor Hugo lá das quebradas de Brasília, cabra forte de Riacho Fundo, também autor de Os Miseráveis, lembro bem do nosso encontro na quebrada do DF no ano da graça de 1997, esse poeta sempre teve a palavra desigualdade como relâmpago de tempestade sobre o cerrado, você já se molhou com uma chuva forte sobre o federal distrito?
Desigualdade, repete o coro dos descontentes.
Entre todas as palavras do momento, a mais flamejante talvez seja: desigualdade. E nem é uma boa palavra, incomoda. Começa com des. Des de desalento, des de desespero, des de desesperança. Des, definitivamente, não é um bom prefixo.
Desigualdade.
A danada pisca qual um velho neon da rua Augusta, que me desculpem a infâmia. Haveremos de falar dos nossos velhos inconscientes envelhecidos e fosforescentes. A vida é a palavra que brilha.
A palavra do ano, talvez da década, doravante ouviremos falar muito dela. No dicionário Oxford? Pouco importa. A palavra que demole as estatísticas do mercado.
Babélica e falante quais os mendigos e povos de rua da cidade mais rica do pais, você, palavrinha maldita, já andava pela São João com a Ipiranga, você já viu que alguma coisa acontece.
Tal vocábulo acaba de ser reescrito, com fumaça, nos céus da América Latina, por aviões de uma certa esquadrilha. Não apenas no Chile do gênio-mor Roberto Bolaño, o incrível & superlativo monstro que nos deixou o legado da Estrela Distante e A Literatura Nazista na América, entre outras ideias selvagens que fazem terremotos na estante.
A diferença é que nem todo mundo consegue olhar para cima e ler nos céus como se fosse uma lousa azul do professor Paulo Freire. De-si-gual-da-de.
Como se fosse a faísca, o corisco da sabedoria, quase um Pentecostes bíblico, um bacurau pedagógico. A palavra mágica que fez o milagre de Angicos, no Rio Grande do Norte, quando o método Paulo Freire, em apenas 40 horas de aula alfabetizou 300 extraordinários seres humanos. Maio de 1963.
Há quem mire os céus e não veja nada ainda, como se morasse em São Paulo e a ideia de paraíso fosse o termômetro da Faria Lima.
Há quem não veja nem soletre, mas está escrita no destino de todos os busões da cidade, sentido centro/subúrbio, está na linha reta dos trens e nas curvas da avenida Sapopemba. Está igualmente nas letras garrafais do desespero dos alcoólatras.
“Não espere nada do centro se a periferia está morta”, já dizia a banda “mundo livre s/a” quando o modelo escola de Chicago começou a gerar o ovo do desastre.
Desigualdade, quem te escreveu com muita força, furando o papel caborno da história, foi o poeta mineiro Adão Ventura, me contou o Ricardo Aleixo lá no “Além da letra”, o festival de literatura e música de Gonçalves, serra da Mantiqueira, Minas Gerais. A palavra desigualdade dança no vento e ventre das águas do Jequitinhonha, recitou o redemoinho.
Solano Trindade, no semáforo, sinal fechado, fez seu primeiro rap, “tem gente com fome, tem gente com fome”, somente com substantivos deste mesmo dicionário. Você ainda não conhece o Solano? Corra, dá tempo.
Dá tempo para você entender que vivemos uma desigualdade fela da puta. Pegue um busão da Paulista para a Cidade Tiradentes, nem carece recorrer às estatísticas do Nordeste, passe o vale-transporte (enquanto ele ainda existe sob o comando de Paulo Guedes) na catraca e simbora. Dos Jardins ao extremo leste há uma viagem no tempo, sem direito a ficção científica. O patrão jardinesco vive 23 anos a mais, em média, do que um humaníssimo habitante da CT, por todas as razões sociais que a gente bem conhece. Que merda.
Evitei as estatísticas nessa crônica. Poderia matar de desesperança os leitores, os números rendem manchetes, mas carecem de rostos humanos. A ideia era apenas refletir sobre a palavra desigualdade nesse perigo da hora. E repare que é a visão de um brasileiro que veio das vidas secas e vive hoje uma situação privilegiada diante da maioria dos viventes.
Pega a visão, imprensa, só há uma possibilidade de fazer a grande cobertura: mire-se na desigualdade, talvez não haja mais jeito de achar que os pontos da bolsa de valores signifiquem a ideia de fazer um país.
**Xico Sá, escritor de jornalista, é autor do romance Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros. Na televisão, é comentarista do programa Redação Sportv.
Fonte: El País
Créditos: Xico Sá